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Marco Antonio Cardoso


 

O farol


Quando os dias se passavam vagarosos,
Numa lastimável monotonia,
Eis que vi chegar rapidamente
O momento de findar os meus dias.


Caminhando do farol no rochedo
Até a praia que abaixo se estendia,
Ouvia-se o insistente marulhar
Do oceano que desde sempre existia.


As ervas rasteiras e o capim seco,
Soprados pelo vento inclemente,
Que soava como sussurro ou gemido,
Criava um tal pavor em minha mente.


Caminhava eu todos os dias
Por longo trecho de praia deserta.
Levava flores que ia recolhendo
Da encosta, de ervas recoberta.


Um caminho que me entristecia
Por já ter nele vivido as alegrias,
Quando ainda tinha em minhas mãos
Aquelas que agora já são frias.


Ao fim da praia avisto a colina,
Suas cruzes toscas e lápides brancas
Um cemitério que abriga meu passado,
Onde enterrei quase todas as lembranças.


A terra nua e pouco generosa
Do campo santo, triste e abandonado,
Nada medrava, nenhum verde havia.
Sobre um túmulo pranteio desolado.


Sob a cruz que marca minha desdita
Teço uma guirlanda com as flores,
Que arrumo sobre tua sepultura
Tentando esconder os meus temores.


Um pirilampo, ao cruzar a colina,
Recorda-me o trabalho a fazer.
Volto para o farol rapidamente,
Pois novamente virá o anoitecer.


Este farol, trabalho e guarida
Já me deu, e também felicidade,
Mas hoje é somente como grilhão
Que me acorrenta por toda a eternidade.


Sua cilíndrica e tosca torre branca
Contra o sinistro céu tempestuoso
Ergue-se medonha e imponente
Tal qual um gigante monstruoso.


Subo ao farol para acender a chama
Que alertará do perigo costeiro
Dos naufrágios que a tantos vitimou
Neste mar violento e traiçoeiro.


Enquanto raios dilaceram as nuvens,
E a chuva agita o oceano tormentoso,
Gira o farol no alto do rochedo,
E a luz se atira sobre o mar betuminoso.


Vigio a noite com olhar perdido
Num horizonte de total negrume.
É tanta a solidão que me anestesia
A alma que segue do farol, o lume.


Vaga minha lembrança até uma tarde
Que meu peito aprisionou no passado,
Quando a mulher que amor me dedicara,
Deixou vazio para sempre o meu lado.


A solidão deste lar abandonado,
Que fora feliz nos primeiros anos,
Logo a deixou tristemente insana,
E sua demência foi meu desengano.


Vagava longamente pela praia
A conversar e rir com as areias.
Seus olhos tinham algo de saudade,
Fitava o mar qual degredada sereia.


Eu a deixava cada vez mais só,
Por não suportar vê-la deste jeito.
Se não podia tê-la do meu lado,
A guardaria para sempre em meu peito.


E foi assim que a vi se encaminhar
Àquele ato que eu poderia prever.
Ela, do farol a se precipitar,
Sobre o rochedo eu a vi morrer.


Seu corpo jazia ensangüentado,
Mas seu rosto um sorriso esboçava.
Carreguei-a pela última vez,
Mas ela já não me abraçava.


Do farol eu via o cemitério,
Sua tumba constantemente vigiava.
Em meus pesadelos mais fantásticos,
Daquela tumba ela retornava.


Mas não havia amor em seu olhar,
Só o desejo de uma fria vingança.
Um tal terror de chofre me assaltava,
Que se exilava a mais tênue esperança.


Quando enfim eu acordava destes sonhos,
Um suor frio do rosto escorria.
Depressa eu espiava da janela
A ter certeza que a tumba não se abria.


Todos os dias desta miserável vida
São procissões como que penitência,
Quando rogo a Deus que me perdoe,
E faça sempre eterna aquela ausência.


A noite, a chuva, os raios e trovões,
E as ondas suicidas deste mar bravio,
São minha insone rotina vigilante,
Neste farol que habita meu vazio.


Um barulho me tira do torpor,
Desta lúgubre noite de temporal.
A porta que abre violenta,
Arrancada por incrível vendaval.


Meus ouvidos, entretanto, me alertam
Para um som que a escuridão me traz.
Os passos que avançam na escada
Lembram os daquela que não vive mais.


Meus olhos se voltam temerosos
E os medos mais profundos se confirmam.
Meu coração quase salta pela boca,
Pois são os olhos da defunta que me fitam.


Tal qual meus sonhos alertavam,
Ela voltara da horrível morte.
Para cobra a minha existência
Como paga por sua triste sorte.


Agito-me ante aquela visão macabra.
Um grito me socorre da garganta.
Meu corpo todo treme de terror,
Que até a funesta noite se espanta.


Derrubo todo o óleo incandescente,
E a chama se espalha pelo chão,
Não há como fugir deste farol,
Que agora traz a mim a danação.


Por fim pereço neste lugar triste,
Neste farol que agora arde flamejante.
Dramaticamente ilumina a noite,
Enquanto consome-se o torreão gigante.


A bela manhã, que gloriosa surge,
Vem encontrar tão somente ruínas.
Cinzas e fumaça que ainda persiste,
Sobre a minha morte repentina.


Deixo o farol enfim, para sempre,
Caminhando pela praia até a sepultura.
Que aberta espera por minha chegada,
Com aquela que ora me olha com ternura.


Sozinha ela estava em meu mundo,
E eu, solitário, sem ela vivi,
Mas a morte nos uniu para sempre,
Estamos juntos desde que morri.


Hoje eu canto no soprar do vento
Minha história perto do farol,
Para que ouça quem puder ouvir,
Desde a aurora até o por do sol.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Papai matou mamãe


Minha infância foi ofendida
Por um crime que me marcou.
Minha mãe foi assassinada
Pelo homem que mais a amou.
Não pude entender ao certo
Por que tudo aconteceu,
Mas chorei tanto ao saber
Que minha mamãe morreu.
Vi o meu pai agarrado
Ao seu pescoço, furioso.
Gritei para que a soltasse,
Enfrentei seu olhar raivoso.
Ele por fim a soltou,
Deixou-a cair sobre a cama.
Sua boca espumava, e os olhos,
Seus lindos olhos, saltavam.
Chorei, como eu chorei,
E não queria deixa-la.
Papai foi preso na hora,
Depois vieram leva-la.
Vovó então cuidou de mim,
Mas em seu rosto eu via
Que algo era mal-resolvido,
Para sempre ela me odiaria.
Dizia que a cada dia,
Com meu pai, que estava preso,
Mais e mais eu me parecia.
O tempo passava arrastado,
E minha dor anestesiava.
O frio lar que me abrigava,
Trazia-me acorrentado.
Aquele homem que me privara
Da família, da minha mãe,
Eu não conseguia odiar.
E a culpa que sobre ele pendia,
Para mim era transferida
Por quem decidiu me criar.
Alguma coisa em mim mudava,
Agora já adolescente,
À minha avó eu dedicava
Uma antipatia crescente.
Queria visitar meu pai,
Perguntar-lhe apenas: - Porque?
Mas minha avó impedia.
-É um monstro, que mais quer saber?
Um dia, porém a notícia
Que a deixou mais contente:
Morreu meu pai na cadeia,
Foi dado como indigente.
Sempre estivera só,
E assim permaneci.
Quando a doença a levou,
Deus, como agradeci.
Mas o tempo que levou,
Minhas dores e esperanças,
Tristezas e alegrias,
Do tempo que não fui criança,
Trazia ao meu vazio,
Toneladas de incertezas.
Meu ser era acometido
Por toda sorte de torpezas.
Cheguei ao fundo do poço,
Somente as sombras eu via:
Mamãe ali, estrangulada.
Papai na cela vazia.
E a avó que eu amara,
Mas que odiava me ver,
Por achar-me parecido
Com o homem que a fez sofrer.
Meus fantasmas não me deixam
Um minuto de sossego e paz,
Nem se conseguiria
Lograr tal sorte, jamais.
Até que enfim decidi
Um fim a tudo isto dar,
Nada mais vou conseguir
Pois resolvi me matar.
Numa definitiva noite,
Com uma arma engatilhada,
Segura em minha mão trêmula,
Enquanto olhava para o nada,
Vislumbrei sombras distantes.
A cadeira de balanço,
Da minha velha avó,
Novamente balouçava,
Mas não estava só.
Sua sombra, feições sofridas,
Me olhava com pesar,
Enquanto sua voz eu ouvia,
Misturada no pranto, falar:
- Perdão.
Meu coração atingido,
Por um petardo mais duro
Que uma bala de chumbo,
Tombei ali no escuro.
Lágrimas me socorreram,
Quando me aproximei,
Da sombra que me chamava,
Em seu regaço, deitei.
Uma lembrança antiga,
Uma velha dor de criança,
Minha vovó tão querida,
No teu colo me balança.
Senti que a perdoava,
E me perdoava também,
Mesmo sem dizer palavra,
Deixei-a partir em paz.
Olhei a arma outra vez,
E os pensamentos malditos,
De covardia e de medo
Que atormentam meu espírito,
Vieram tentar-me de novo.
Foi quando outra sombra
Se fez presente comigo,
Uma cela de cadeia
Guardava meu primeiro amigo.
Tanto amargor eu senti
Por ver meu pai suplicando
Meu perdão, meu amor,
De meu coração sangrando.
Detive-me no ódio outra vez,
Naquela sala vazia e escura.
Mas não pude ignorar
As lembranças da ancestral ternura.
Como pode aquele homem,
Que um dia fora um herói,
Destruir minha vida inteira,
De minha mãe sendo o algoz?
Mas eu já não era o mesmo,
Talvez, por desejar morrer,
Olhei seus olhos sem medo,
Escutei o que tinha a dizer:
- Perdão.
Não podia acreditar,
Como seria possível
Agora eu perdoar
Aquele crime terrível.
Mas o sorrateiro amor,
Acha brechas e se instala
Nos peitos mais doloridos
E ao orgulho ele fala.
Diz que de nada adianta
A persistência no ódio,
Pois só o amor alavanca
O vencedor para pódio.
E aos poucos foi amolecendo,
Deixando o amor falar,
Até perdoar o meu pai,
Mesmo sem querer lhe falar.
Vi um sorriso tristonho desenhar-se,
Em seu rosto envelhecido,
Como deveria ser quando morreu,
Triste, só e esquecido.
Mais uma sombra se vai,
Desaparece a lembrança,
E agora minha arma cai
Das mãos de uma criança.
Um disparo, um som seco,
Um clarão que logo finda,
Que não vejo vir por trás
Mais uma sombra perdida.
Uma mão carinhosa me toca,
E uma voz doce me consola,
Minha mamãe está de volta,
Com ternura ela me olha.
Em sua mão ela segura
Minha pequenina mão,
E me leva cuidadosa,
Para viver em seu coração.
 

 

 

Ticiano, Magdalena

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Francisco Perna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Paraguaçu – parte 1


E eu adentro o lago-mar.
Sua vulva liquefeita
Me recebe tão tranqüila,
Sente o meu jeito desconfiado,
Enquanto me incita a prosseguir.
A verdura se espraia em todos os lados.
A mata mexe.
É um teiú.
Quem dera fosse meu almoço.
Meti-me nessa aventura
Somente por ouvir falar
Da diamantina que há
Na nascente tão distante.
Para toda essa água
Muito longe estará.
Longe demais para mim.
Eu venho da terra da ganância,
Querendo achar u’a salvação
Para meu coração ansioso.
Uns diamantes arrancados
Do seio da terra invigilante.
Depois vou embora, não volto mais.
Será?
E esse barco, esse barqueiro,
Irá levar-me até a boca
De tanta terra, depois do mar.
Caminhos d’água que vou seguir,
Tropa de mulas, índios e escravos,
Pra me guiar, pra me levar
Até a nascente.
Paraguaçu.


A vela branca, presa num mastro,
Tosco mastro que trimilica,
Se o vento açoita a vela
Apenas um pouco nervoso.
Eu sigo. Olhos atentos.
Não desgrudo os apetrechos,
Nem a arma e o facão.
Sou desconfiado.
Uns homens gritam do lado,
Expressando sua alegria
De puxar a rede cheia,
A comida pra famía.
E a cantiga que ecoa
Da ribeira, é uma mistura
De agonia e de esperança.
A labuta das mulheres,
Enfiadas n’água fria
A lavar roupa e pecado,
Ralhando com as crianças
Que d’uma pedra se atiram
Nas convidativas águas.
Eita rio, grande avenida!
Tal e qual é na cidade,
Coração de muitas vidas.
Meus olhos não descansavam
E a tarde, essa já se ia.
- Logo, logo vosmincê tá chegano.
Assim me falava o marujo
A querer tranqüilizar-me.
Já se foram os capuchinhos,
Seu isolado recanto
Está a léguas, lá pra trás.
A maré vaza, a água rasa,
Vai encalhar!
- Vamo remando!


Já vejo os ferros,
Cerca titânica, os vejo lá.
Oi sucuiuba, vai te engolir!
- Vai boi-tatá.
Isso é do norte, mas essa morte
Não vou te dar.
Vem Cachoeira, sua ribeira
Vou aportar.
O sol vermelho me olha triste,
Descansa agora, até amanhã.
Deita na serra, acariciando
As telhas marrons dos sobrados,
Enquanto se arrasta pelas ruas,
Dando adeus às raparigas.
As luzinhas do outro lado,
Tentando cruzar o rio
Com seus reflexos frouxos,
Mergulham e vêm à tona,
Não querem mais parar.
A meninada na beira,
Atira pedrinhas nas águas
Pardas do entardecer.
Da ponte de Dom Pedro,
Movimento e folguedo
Antes de o trem passar.
Sombrinhas a se fechar
Das moças a passear
De São Félix pra cá.
Uma aguardente, uma dama,
Uma festa e uma cama,
Lembranças para guardar.
Amanhã vou partir logo cedo,
Ao primo cantar de galo,
Pegar aquela picada
Que vai pr’além do Goiás.
 

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

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Napoleão Maia Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Surra


Tão me matano, nêga,
Num güento mais.
É surra braba, nêga,
E dói dimais.
Os hômi bati, nêga,
Num tem nem dó.
É de porrête, nêga,
Morrê é mió.
Eu tava limpo, nêga,
Num tinha pó,
Mas não me ouvíro, nêga,
Batêro e só.
O sangue córri, nêga,
Empapa o chão.
Jogaro eu dentro, nêga,
Do camburão.
Tu não mi ôvi, nêga,
Nem ovirá,
Pois me mataro, nêga,
No Guarujá.
Lá no barranco, nêga,
Meu corpo istá.
Tiro na nuca, nêga,
Pra liquidá.
Tô no terrêro, nêga,
Pra te avisá.
O prêto-véio, nêga,
Vêi me ajudá.
Mando um aviso, nêga:
Tu ti mandá,
Qui os hômi aí já chêga,
Pra ti acabá.
Leva os mininu, nêga,
Protu lugá.
Some no mundo, nêga,
Pra si salvá.
Pulícia mata, nêga.
Os pobri que há.
Mai os rico sujo, nêga,
Só faiz robá.
Ficam impuni, nêga,
Tem pra pagá,
Advogado bão, nêga,
Pra si livrá.
Nóis qui é pobre, nêga,
Vai si lenhá.
Surra e tiro, nêga,
Qui é pra matá.
E qualqué canto, nêga,
Pra disová.
 

 

 

Culpa

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Luciano Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Trem


Bate a vida entre os ferros,
Verde sopro, nuvem branca.
Queima fornalha, fornece
Calor, força, movimento.
Bate o ferro, a madeira,
Sobe a serra altaneira,
Apitando a toda gente.
Vem à frente para ver,
Chega a vez e parte afora,
Vai e volta, sempre e sempre.
Alegria, saudade, esperança
Ou apenas a visão distante,
Fugaz, de um dia de lida.
Sons confusos, revoam a passarada,
Passará, passageiro vai ligeiro,
Vai e vai e vai e vai e vai.
 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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R Roldan-Roldan

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

 

 

 

 

 

Marco Antonio Cardoso


 

Um gosto de sangue


Um gosto de sangue em minha boca.
Eu sinto toda a dor do mundo,
Rasgando minha carne, vísceras à mostra.
A amargura se faz doce quando a dor é lancinante.
Sinto um gosto de sangue em minha boca,
Quando me beijas em agonia estonteante,
Vampirizando minha alma.
Leva consigo uma vida que não mais tem dono.
Com um gosto de sangue em minha boca,
Como a boca do horizonte devorando o sol,
Deixo presa em meu peito à força de uma existência,
Que se arrebenta feroz Em lutas descomunais,
Impondo-me um sofrimento atroz,
Que não me deixa jamais.
Atira-me contra os rochedos
Das costas das ilhas Hébridas.
Presenteia-me com o mundo inteiro
Mas, degredado me faz.
Estendido, à noite, no frio solo do deserto,
Olhar perdido na estrela mais distante,
Tento sorrir,
Mas nesse instante somente sinto...
Um gosto de sangue em minha boca.
 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Lauro Marques