Aníbal Beça
A Palavra Noturna
Canto 1. Parto da Palavra
Tudo é manto negro
neste meu começo.
Tudo ainda é noite
nesta luz diáfana:
calor dessa ausência
no seu firmamento.
A saliva muda
na insolvência vaga
desarticulada.
Os músculos flácidos
como mamulengos
procuram cordões
para a dança clara
da cifra da fala.
O que nomear
se desse silêncio
apenas os olhos
alcançam o giro
em dois movimentos?
Abrir e fechar
o lapso da luz
vão desse vazio
no dizer do nada.
Vastidão de coisas
que avançam rondando
prontas para o salto.
A vespa da véspera
de facho fogoso
no baile da língua
soprando veneno
em fundos ouvidos
para o precipício
do não dito mudo
medo do maldito .
Quer dizer das coisas
cantá-las uma a uma
raiz de crepúsculo
impulso bendito
o primeiro beijo
a sair da boca:
faça-se a palavra
da doce colmeia
do mel dessas vespas
molhadas de orvalho.
O primeiro grito
- parto da palavra -
se faz em sussurro
macio de gozo
veludo de ventos.
Chuvas da ventura
regai esse chão
de pegadas leves
vôo de viagem
vento inaugurando
sílaba de nuvens
desnuda no abismo
de águas invertidas.
Vertical/idade
o encanto da música
no ritmo de asas
solo de condor
Fênix rediviva.
Alteie, se alteie
no teto bem alto
asas da distância
ruflando afastadas
nesse ritmo longe
para melhor ver
e dizer dos sonhos
das tramas pequenas
e suas nervuras.
O sol da goela
na luz da garganta
vibrando seus raios
de setas vocálicas
trazendo essa música
lá do fundo da alma
no desvão escuro.
Ó raiz tão clara
meu fogo das cinzas
nomeia teu sopro
na lavra de brasas
e acorda esses sons
que são desse mundo
silêncio das coisas.
Falante palavra
fala para as mãos
decifrarem códigos
acordarem músculos
na gesta dos gestos.
A escrita se evola
na nódoa do tempo
e o turno noturno
vaza a claridade
alteando as estrelas
Eis o meu início:
a luz do meu verso
a escrita vivida
lâmina cravada
nos dedos ariscos
tangida na voz
de mãos caminhantes
na colheita branca
de folhas sedentas.
Eis o desafio :
história remota
fincando no fim
seu próprio começo:
a História da vida.
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