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Adrianne Fontoura


 

Insônia

 

 

Logo adormecerei, vendo o sol suave e determinado.
Cumprirá o grande astro sem tristeza nem alegria
o seu papel de luz para este mundo amargo.
Terei sonhos tranqüilos e o desejo de vida.
Serei parte da manhã que se inicia
numa realidade paralela, desmedida.
Sonharei o calor que me envolve
e me verei Sol. E serei Dia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

Adrianne Fontoura


 

Insônia II

 

 

Escrevo uma linha, meia palavra
e uma voz se aquieta, outra se agita,
o Universo fala.
Poesias escrevo, a natureza vibra
em meus olhos, mãos, ouvidos...
Palavras... quando mais nada alivia.
Linhas, entrelinhas, sujeito, verbo, verso!
E assim troco a noite pelo dia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

Adrianne Fontoura


 

Libertinagem

 

 

Eis agora este aperto
e minha garganta resseca.
Sem planos, paixões, destinos,
nada mais me resta!
Paz? Desconheço a calma.
Nada tenho com a inércia
A moral, a pouca idade e vagos deveres,
me prendem à detestável vida burguesa.
A noite é minha amiga, caros senhores!
Sirvam-me a bebida, acendam meu cigarro
que o resto é letra, melodia, composição.
Verei o sol nascer e dormirei tranqüila
sonhando com pautas e mares de criação.
Hei de ser – contra todas as vontades –
um caniço pensante que traz a cor,
a onda, a voz, o silêncio.
Pouco dinheiro, algum amparo, calor
e mais nada quero do que poderiam outros querer.
Deixem que eu seja como a poesia que escrevo!
Deixem que eu flutue como a melodia inscrita em meu ser!
Livre... Permitam que agora eu possa voar.
Aprendam com meus acertos, pois, mesmo que morra cedo,
não terei cometido o crime de nunca amar...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Exposition of Moses

 

Adrianne Fontoura


 

Arquitetura

 

 

Erguerei com minhas palavras
obscuros monumentos de angústia e paz divina.
Subirei por altas escadas
e contemplarei tuas escolhas, colherei os frutos da tua sina.
Viverei de neblina, nuvem, sonho
e trarei no meu canto lembranças do que tens esquecido.
Não haverá de ter ninguém que me alcance,
que me surpreenda em meu alto vôo invisível.
Só tua voz me trará à terra e brotará em mim o desespero...
e existirão em mim novos desejos de arquitetar o indizível.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Empire of Flora

 

Adrianne Fontoura


 

Ausência

 

 

O tempo escoa infinito
entre dedos pálidos sem ódio
e impotentes ao frio que faz lá fora...
Um sonho em minha lembrança
acaricia os minutos, afasta o perto,
traz secretamente o longe,
promove a dúvida e deixa o incerto
como única resposta.
Mágoa de quem tem as mãos atadas,
braços que envolveriam o mundo
excluindo o perdido passado que rola escadas,
atravessa desfiladeiros e mergulha no fundo.
Buscas trilhas enquanto flutuo pelos ares.
Agarras formas enquanto encontro significado.
Caminhas sobre as ondas enquanto sou tragada pelos mares...
Enxergo sem ver teu passo solitário.
Te adivinho e, assim, sonhas o meu sonho
do futuro irrealizado, arbitrário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

Adrianne Fontoura


 

Esperando a chuva

 

 

Não tenho apegos e do antigo me desfaço.
Pensar ou dizer não promove existência.
Só há valor no que sinto e neste meu passo,
no sangue que arde e anima a matéria que transita
ora terrena, ora livre, no espaço.
Com os braços abertos espero novos ventos.
Nada temo, pois eu mesma sou tempestade,
força mutante que impera por todos os tempos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rubens, Julgamento de Paris

Adrianne Fontoura


 

Quiseste meu ódio

 

 

Quiseste meu ódio, pois que farias com meu amor
e as vozes vibrantes do meu peito que, forte
bate quando pressente teus passos, teu calor?
Que farias com minhas lágrimas extraídas desse corte
largo, profundo, que tarda a sarar?
Que farias com essa minha melancolia derramada
e com essa minha fuga e vontade de nunca estar
onde me encontro? Que farias com esta que foge alada
e tomba e se ergue e, cheia de vida, vai sem norte
onde quer que o coração lhe diga?
Que farias tu desta minha confiança e boa sorte
que me liberta dos teus elos para que siga,
infinitamente?


Que dirias se te confessasse que vou adiante
por que te procuro em outros lugares
onde nem eu mesma posso permanecer?
Que grito animal moveria estes calmos mares
que são a tua fronte que não me engana!
Te adivinho como adivinhas quem sou e o que omito
nessa máscara cômica e profana
incapaz de mentir e cometer real delito.

 

 

 

 

 

 

10.11.2005