Jornal de Tributos, o lado profissional de Soares Feitosa

 

 

 

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen


 

As amoras


O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

 

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen


 

Poesia


Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.


Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.


Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.


Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos atos que vivi,


Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.

 

 

 

Ticiano, Flora

Início desta página

Natércia Campos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen


 

Liberdade


Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

Início desta página

José Peixoto Jr

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen


 

Pátria


Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exatidão
Dum longo relatório irrecusável


E pelos rostos iguais ao sol e ao vento


E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas


— Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro


Eu minha vida daria
E vivo neste tormento

 

 

 

Ticiano, Salomé

Início desta página

Caio Porfírio Carneiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion, detail

 

 

 

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen


 

Data


Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação


Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão


Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça

 

 

 

Bernini, Apollo and Dafne, detail

Início desta página

Paulo Franchetti, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

 

 

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen


 

Cantar


Tão longo caminho
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto Passo andado
País ocupado
Num quarto fechado


As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados
Naquela cidade


Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera


Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens

 

 

 

A menina afegã, de Steve McCurry

Início desta página

Iosito Aguiar

 

 

 

23.11.2004