Cecília Meireles
Noturno
Quem tem coragem de perguntar, na
noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?
Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?
Que valem a conversa apenas
murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?
Que valem as pálpebras da tímida
esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?
O sangue e a lágrima são pequenos
cristais sutis,
no profundo diagrama.
E o homem tão inutilmente pensante e
pensado
só tem a tristeza para distingui-lo.
Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistério humano:
grandes como pórticos, suaves como veludo,
mas sem lembranças históricas,
sem compromissos de viver.
Grandes animais sem passado, sem
antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos
e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas
e na seda longa das crinas desfraldadas.
Mas a noite desmanchava-se no
oriente,
cheia de flores amarelas e vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabeça,
e começavam a puxar as imensas rodas do dia.
Ah! o despertar dos animais no vasto
campo!
Este sair do sono, este continuar da vida!
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite
ao claro dia da humana vassalagem!
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