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Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Presença em Pompéia
 

Esta conta não pagarás:
— ficará sob uma cinza que não sabes.
 

Sob a cinza que ainda não sabes
ficará teu filho por nascer
e também os meninos que já sabiam desenhar nos muros.
 

Ficarão os figos que ontem puseste na cesta.
Ficarão as pinturas da tua sala
e as plantas do teu jardim, de estátuas felizes,
sob a cinza que não sabes.
 

Os gladiadores anunciados não lutarão
e amanhã não verás, próximo às termas,
a mulher que desejavas.
 

Tu ficarás com a chave da tua porta na mão;
tu, com o rosto da amada no peito;
amo e servo se unirão, no mesmo grito;
os cães se debaterão com mordaças de lava;
a mão não poderá encontrar a parede;
os olhos não poderão ver a rua.
 

As cinzas que não sabes voarão sobre Apolo e Ísis.
É uma noite ardente, a que se prepara,
enquanto a luz contorna a coluna e o jato d'água:
— a luz do sol que afaga pela última vez as roseiras verdes.
 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Noturno
 

Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?
 

Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?
 

Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?
 

Que valem as pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?
 

O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.
 

E o homem tão inutilmente pensante e pensado
só tem a tristeza para distingui-lo.
 

Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistério humano:
grandes como pórticos, suaves como veludo,
mas sem lembranças históricas,
sem compromissos de viver.
 

Grandes animais sem passado, sem antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos
e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas
e na seda longa das crinas desfraldadas.
 

Mas a noite desmanchava-se no oriente,
cheia de flores amarelas e vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabeça,
e começavam a puxar as imensas rodas do dia.
 

Ah! o despertar dos animais no vasto campo!
Este sair do sono, este continuar da vida!
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite
ao claro dia da humana vassalagem!
 

 William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


Mapa de anatomia: o olho
 

O Olho é uma espécio de globo,
é um pequeno planeta
com pinturas do lado de fora.
Muitas pinturas:
azuis, verdes, amarelas.
É um globobrilhante:
parece cristal,
é como um aquário com plantas
finamente desenhadas: algas, sargaços,
miniaturas marinhas, areias, rochas, naufrágios e peixes de ouro.
 

Mas por dentro há outras pinturas,
que não se vêem:
umas são imagens do mundo,
outras são invetadas.
 

O Olho é um teatro por dentro.
E às vezes, sejam atores, sejam cenas,
e às vezes, sejam imagens, sejam ausências,
formam, no Olho, lágrimas.
 

 William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

Bronzino, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Herbert Draper (British, 1864-1920) , Tha water nixie

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


O mosquito escreve
 

O Mosquito pernilongo
trança as pernas, faz um M,
depois, treme, treme, treme,
faz um O bastante oblongo,
faz um S.
 

O mosquito sobe e desce.
Com artes que ninguém vê,
faz um Q,
faz um U e faz um I.
 

Esse mosquito
esquisito
cruza as patas, faz um T.
 

E aí, se arredonda e faz outro O,
mais bonito.
 

Oh!
já não é analfabeto,
esse inseto,
pois sabe escrever o seu nome.
 

Mas depois vai procurar
alguém que possa picar,
pois escrever cansa,
não é, criança?
 

E ele está com muita fome.
 

(Cecília Meileles in “Ou isto ou aquilo”)
 

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


O canteiro está molhado


O canteiro está molhado.
 

Trarei flores do canteiro,
 

Para cobrir o teu sono.
 

Dorme, dorme, a chuva desce,
 

Molha as flores do canteiro.
 

Noite molhada de chuva,
 

Sem vento, nem ventania,
 

Noite de mar e lembranças..."
 

A menina afegã

 

Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravaggio, A incredulidade de São Tomé

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Cecília Meireles


É preciso não esquecer nada
 

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
 

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
 

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
 

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
 

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.
 

(1962)

Um cronômetro para piscinas

 

José Saramago, Nobel