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Cissa de Oliveira


 

Nem o vento se atreve


o amor é do valor que têm
os meus netos que virão um dia
e as cartinhas recebidas lacradas
à saliva do bem amado

ninguém ainda os viu
e eles respiram
entre as notas de jasmim
que Deus soprou
em segredo
desde os tempos imemoriais

nem o vento se atreve
a fazer nós no meu cabelo solto
entre os raios da tarde

mas ai de mim poeta
viva
e bem amada
quando migram as areias grossas das praias
abandonadas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rubens, Julgamento de Paris

 

 

 

 

 

Cissa de Oliveira


 

Um reflexo, nada mais

“...e um ocaso
nasce dentro de mim a cem à hora
para acender-me a alma, velho motor
engripado com os versos de Óscar Wilde
e as histórias de Allan Poe..."
in : Folhas Vermelhas : José António Gonçalves



Eu gosto de pensar na graça
de caracóis pintados na face do sol,
na migração das aves na poça d´água,
na flor de lótus que buscasses,
e no fio que se repartisse em pérolas
para te demarcar a rota.

Também gosto de pensar nas fagulhas de ouro
do ocaso quando se inflama
para se guardar nas almas doces,
e nos seus laços de perfume se abrindo
como espelhos à luz de um amor contraste:
a noite, na sua morenice enfeitada
com uma profusão de estrelas.

Enfim, eu sou poeta
e gosto de pensar olhando das janelas altas,
mas ai de mim, ai,
que não sou Allan Poe e também trago
no peito um vulto cravado:
dos umbrais eu vejo crescer um reflexo,
nada mais.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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José Inácio Vieira de Melo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

 

Cissa de Oliveira


 

Algo de Imperfeito


certos anjos eu tenho minhas reservas com eles
ficam tão impávidos nas suas plasticidades
de jade barro cristais e tintas
que os prefiro em algodão que se desfaça
lá em cima
num céu de abstração

o níveo dos beijos as sedas
e os suspiros que se desprendem
dos lábios do meu amado
não há ali qualquer verso trincado
das suas mãos faz-se um lago
dos seus atos um costume verde
por onde eu respiro desde cedo
e do seu corpo a paisagem de sangue
das tardes

certos anjos
não deviam viver nas prateleiras
e certos amores
deveriam ter algo de imperfeito
serem

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Airton Monte

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rinaldo e Armida

 

 

 

 

 

Cissa de Oliveira


 

Bordado vivo


és uma música que vem ao mundo
despreocupada e inocente das partituras
ecoando ainda nos lábios adocicados dos ventos
que como o bordado vivo de um lençol
habitasse primeiro a correnteza do sangue
por onde explodem em melodia
tanto os sinos como a Filosofia

a tua incandescente luz atravessa
o fechar das pestanas as sombras
dos que têm o coração pequeno
e encantas qual caleidoscópio
aqueles que sabem florir
como os minúsculos pingos
no arco-íris depois das chuvas

és criança vestida de versos
nas páginas projetadas nos tetos
por onde viajam os meus olhos
por repetidas vezes
e eu te acaricio e endeuso
para repetir a minha única jura
- serás a fênix

porque a tua sina entremeia-se
pelo impulsionar silencioso
das asas de um pássaro
no seu bater cadenciado
que os olhos não podem alcançar
para te levar comigo
como já levo
em transparente segredo
sonhando o dia em que resplandecerás
como girassóis no jardim da casa
e na seda do travesseiro
onde enfim eu descansarei
sorrindo
pela Poesia

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Abílio Terra Junior

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

 

Cissa de Oliveira


 

O Jardim da Lua


tempos há em que mais vale
estar envolto em cachoeira
e nas noites plantar estrelas
no jardim da lua

olhar a flor dourada dos céus
a se descortinar lentamente
entre o oceano profundo
da noite em suspensão

lançar duas estrelas
para sondarem tudo
e elas por lá se prenderem
estáticas
de admiração

cantar as imensas flores alvas
desfazendo as suas pétalas de nuvens
na carícia do semblante noturno
e deixá-las invadir o verso mais ameno
como sol na areia fina ao vento

será por isso que depois
os seus cabelos de prata
cantam alto nos telhados
fazem festas e beijinhos nas vidraças
e tomam como casa o ar
que se liberta da terra molhada?

não sei
nesses dias não me peçam
versos que digam da lua
que correnteza até a cintura
é coisa que vem
e vai

 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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Luiz Rufatto, foto de Simone Rufetto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Cissa de Oliveira


 

A bruma da manhãzinha
 

a bruma de manhãzinha
eu nunca soube o que ela traz
se exércitos de girassóis
ou de dragões dourados

os dedos do vento pairam no teu cabelo
e alteram a moldura do rosto
os lábios do frio interferem na textura
das eras quando te arrepiam a pele

a água morna do chuveiro é doce demais
e a do mar - confessam-me as espumas:
suspira quando passas
- querendo o sal do teu suor

a bruma de manhãzinha
por onde a vista brinca
de adivinhar luzes
só tem um nome: ciúme

 

 

 

Ticiano, Flora

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Fábio Rocha

 

 

 

02/05/2005