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Dimas Macedo


 

Infância


Amaram-me na infância
com uma voz chegada de outras coisas,
pois não sabiam das minhas atitudes
e eu trazia comigo uma tristeza
encarada como uma montanha
abaladora.
Minha poesia se multiplicava
num canto de urgência
e ninguém sabia
das aventuras que eu perseguia:
sonho, assim, por um vale profundo,
consumindo-me sem razão, lado a lado...
E misturaram um sabor amargo
aos meus versos
e os meus sentidos fizeram-se desatados
como sandálias na companhia
de terras poeirentas.
Aquele era meu caminho,
entre estradas batidas e fatigadas,
com rostos que imploravam,
e a fisionomia de todos era como a fome.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

Dimas Macedo


 

Argila


Em duas partes
a vida se divide
e em duas artes
o imponderável
do corpo se revela.

Pela primeira arte
o rito do amor é chamas
pela segunda
o mito da paixão é dádiva.

E a dor de não amar
o amor é devaneio torpe
porque o prazer inflama
a dor de não doar
o corpo ao precipício.

E tudo que tu dizes
o barro dos teus olhos
o brilho do teu rosto
o sal dos teus dedos
de marfim e tédio
tudo é impasse
pois tudo está exposto
à liturgia da divisão das partes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

Dimas Macedo


 

Mistério


Não sei por que destino vago
ou se vegeto.
Minha vida é qual um livro aberto
que atravesso a nado.
Minha solidão tem bases de concreto
e as minhas ânsias claras intenções.
Com as lições da dor eu teço
uma canção ao vento
e reinvento a vida.
A morte é um vendaval e em tudo
o cosmos é uma interrogação.
Meu corpo a fuga. Meu prazer o medo.
E a minha dúvida uma alucinação.
Se vago ou se vegeto, escrevo:
Minha vida é qual um livro aberto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

Dimas Macedo


 

Magia


Estrangulo-me nas mãos da primavera.
Dilacero-me na dor
das sombras que ensangüento.
Sou a ternura que se enclausurou
na angústia das pedras.

Tenho as mãos no mundo
e os olhos seguros nas mãos.
Vejo-me que sou carne e unha
quando me enveneno no vinho.

Preciso-me de sentimentos
raros e impuros
nos quais a rosa geométrica do ácido
seja um bosquejo de sonhos.

Quero trafegar na magia negra do mundo
e me purificar
na leveza da vida não passada a limpo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dimas Macedo


 

Casulo


Te amo sobretudo os lábios
e a resina viscosa dos teus seios,
pois a vulva dos teus olhos enlaça
a sedução invisível dos meus pelos,
onde começo a viver e me embaraço,
porque me mato de amor quando te vejo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

Dimas Macedo


 

Corpo


Essa voragem oblíqua
do tempo
é o teu corpo.

Essa vertigem convexa
do sol
são os teus braços.

Eis os meus musgos alados
as espadas
e a arte madura dos teus dentes.

E para sempre os teus olhos.
Mais do que nunca os meus passos
palmilhando
o casulo secreto do teu colo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos, o lado profissional de Soares Feitosa

 

Dimas Macedo


 

Tela


Olhos, olhos de Buñuel
na tela dos meus braços.
Tetos, tetos de lã
no meu pescoço.
Punhos, punhos de Deus
cravado nos meus ombros.
Línguas, línguas de lonesco,
uma canção ao vento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

Dimas Macedo


 

Sombras


Se me contento
com tudo o que não tenho:
uma sombra, uma concha,
uma praia em desalinho,
eu não terei o corpo
da mulher que sonho
nem os lábios da lua
e o sol entre os meus braços.

Se me afundo estou só
e tudo o mais suponho:
um jeito de partir
ou de ficar calado
ou a ânsia de viver
saltimbanco e feliz
entre as cores do mundo
e os caminhos de volta para casa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dimas Macedo


 

Mulher


Me segura, mulher,
que eu vou morrer de fome,
eu vou cair de sono, aqui,
nestas areias quentes
do teu corpo.

Não tenho vida, mulher;
um sonho trago nas mãos:
amar, amar o teu amor,
e as tuas carnes brancas
e os favos de mel
sangrando em tua boca.

As tuas pernas, mulher,
as tuas pernas
cravadas no meu dorso,
e assim sem jeito,
escravo do veneno,
vou navegando no anzol
de tua língua
e vou morrendo
de morte não morrida.

Foi o amor,
a harmonia do amor
em nossas bocas
sôfregas de desejo
e de pele e de osso
e de sal e de sementes,
pois que o chão da infância
já não conta,
pois que o milagre do corpo
é a cancela
da vida que se ia
e que não vai mais nunca.

Terei para ti os lábios
e as conchas do prazer
que te darei
em sois de melodia
e em estrelas de sêmen
que descerão
por entre tuas coxas.

E que seja consagrado ao vento
o brilho desta praia
e a música destas ondas
onde te vi espumas
e te beijei sereias
para a glória do amor
e a nossa dança de luz
brilhando para sempre.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

Dimas Macedo


 

São-Luís*


Vou reficar
em São-Luís
para colher estrelas
e reolhar
os poemas de Tribuzzi
e navegar
no navio eterno
de Cristório.

A parlatório
de Nauro Machado
na esquina.
Os Apanhados do Chão
de José Chagas.
E os remolejos
de Zeca Baleiro
na canção.

Águas do Maranhão.
Telhas de São-Luís.
A relembrar
o Poema Sujo de Gullar
e as histórias fatais
de Zé Louzeiro.

Um tinteiro é pouco
para O Dono do Mar
e o Cais da Sagração.

A solidão na unha.
A voz de Carlos Cunha
na calçada
e A Distância
de Todas as Coisas
numa rede.

E nas paredes
da velha Rua do Sol
minha memória
(a liturgia maior
de Luís Cassas)
e a canção de ninar
os meus sentidos
se fazendo a ponte
para a vida.

Pois que revivo
a minha revivência
aqui em São-Luís:
as minhas dunas de sal
no Araçagi;
a minha fome de amor
na Praia da Raposa.

Em Ribamar,
em Baixo Mar,
nas sereias de sol
do Olho D’água,
nos moinhos de vento
do Calhau,
vou reficar
ficando
aqui em São-Luís.


* Para Luís Augusto Cassas, que sabe a Opera Barroca de São Luís do Maranhão.