Wagner Lemos
RESENHA
A UM PASSO DO
ESQUECIMENTO, NOVO ROMANCE DE GIZELDA MORAIS.
Wagner Lemos *
Dizem que Religião, Ciência e Arte, como práticas humanas que
são, revelam mais proximidades do que afastamentos. A primeira nos
promete em diferentes modos um prolongamento da existência, quer
seja pela tão apregoada vida eterna, reencarnações ou mesmo, na
visão das crenças indígenas, um ressurgimento sob outras formas. A
Ciência, por sua vez, busca ampliar a nossa duração nesta terra com
a cura de doenças ou a melhoria da qualidade de vida dando-nos uma
maior fruição do tempo. A Arte, por fim, é mais do que uma forma de
expressão. A menos regrada das três, mas que, assim como as demais,
guarda consigo um dos mais antigos anseios da Humanidade: vencer a
morte. Que escultor não pensou em ser eternizado nas formas que deu
ao que era informe? Que poeta ou prosador não almejou ser lido nas
gerações futuras? Que pintor não suspirou ao concluir uma tela e não
pensou em como seria visto no porvir? A Arte é a metalinguagem
utilizada pelo Homem para se revelar, mas também para fincar-se como
perenidade. “Longa é a Arte, breve é a Vida”, assim rezava o
provérbio latino, fazendo-nos lembrar do quanto somos efêmeros.
Em “A um passo do esquecimento” (Biblioteca 24 horas: São
Paulo, 2014), novo romance de Gizelda Morais, a personagem é
andarilha nos entrelugares de que a vida se perfaz e, em tom
permeado de reminiscências, lança mão da arte da palavra para
estabelecer-se neste mundo, construindo uma prosa de cunho
memorialístico trespassada pela ideia do tempus fugit.
Uma particularidade, entretanto, enriquece esse texto: a narrativa,
apesar do caráter memorial, é tecida em terceira pessoa. A autora
que nos deu excelentes páginas de prosa e poesia, desta feita, vem
com uma perspectiva inovadora: deu à sua personagem um perfil
psicológico em que o distanciamento que impregna o texto em terceira
pessoa garanta às memórias uma fluidez na reflexão e mesmo na
autocrítica. Esse jogo confere uma maior ponderação da protagonista
acerca da vida, bem como de seu espelho, a morte.
A personagem central, ao saber-se diagnosticada pela segunda
vez com um câncer, desta vez terminal, empreende sua missão
metalinguística: registrar pela palavra uma página por dia. Firmar
no papel a sua história, seus sentimentos, suas dores, suas perdas,
suas inquietações filosóficas, mas também as físicas, uma vez que os
tratamentos, na verdade, muito maltratam seu corpo que peleja contra
aquele que a personagem chama de “predador obsceno e demoníaco”. É
desse modo que a tessitura do passado alinhavando-se com o presente
nos traz um exercício de revisão da existência, não só pessoal, mas
também coletiva. Um mar de palavras em que a micro e a macro
histórias navegam juntas.
Do ponto de vista formal, é relevante destacar que os sessenta
capítulos da obra foram construídos em retábulo. Essa técnica requer
do autor uma acurada habilidade: elaborar partes que possam ser
lidas independentes umas das outras, mas que em sequência perfaçam
uma obra, como o clássico “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos. Nesse
sentido, podemos dizer que a estrutura do texto metaforicamente traz
a sutileza de que a vida pode ser retomada de múltiplas formas, em
saltos da memória ou na linearidade. Também impressiona que a mesma
força e sensibilidade poéticas empregadas para resgatar a meninice
da personagem nos cordéis da pequena cidade em que se criou,
apresentam-se nas reflexões filosóficas do doutorado da narradora ou
na comparação entre o pretérito, o presente e o que especula acerca
do futuro da Humanidade.
O romance “A um passo do esquecimento” transita nas demais
obras de Gizelda Morais. Nas suas páginas, é possível se entrever os
casarões e as senzalas das vivências humanas, o velejar dos que
navegam com esperança, as baladas de sua poesia, os espaços e épocas
regidos pelos agogôs da memória e os versos e reversos das
inquietações de tantos personagens que caminharam pelo conjunto de
sua obra. Nesse livro, Gizelda, com seus “olhos de praça triste”,
brinda-nos com que devemos considerar sua obra prima, plena de uma
pujança ímpar. Um texto que, ao contrário, do que anuncia seu
título, não há de ficar no esquecimento.
* Professor, Mestre em Letras (UFS) e doutorando em Literatura
Brasileira (USP). E-mail:
wagnerlemos@yahoo.com.br
A um passo do esquecimento
– Gizelda Morais.
Publicado em dezembro de 2014 em plataforma virtual
http://www.biblioteca24horas.com.br, endereço eletrônico em que
está disponível para compra do livro eletrônico ou impressão sob
demanda.
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