Prefácio de Zé Limeira,
o poeta do
absurdo,
de Orlando
Tejo
Tomado de amores pela poesia
popular, a manifestação mais viva da inteligência do
Nordeste, Orlando Tejo escreveu este livro.
É
uma excelente contribuição para o conhecimento íntimo
da musa matuta, representada por um dos seus curiosos exemplares.
A literatura
de cordel está, hoje, universalmente consagrada, como um dos testemunhos
mais fiéis da tradição. A pobreza de mitos regionais
é suprida por essa fonte de comunicação imediata.
Começa
o autor enquadrando sua pesquisa no domínio do folclore, cujo conceito
traduz com familiaridade e solidez.
Finalmente,
elege, um estudo, o tipo que representa, no seu entender, a revelação
mais original da sobrevivência dos antigos trovadores: Zé
Limeira, paraibano do Teixeira (l 886-1954).
Esse
Zé Limeira, chamado o Poeta do Absurdo, era doido ou um vidente.
A figura humana encarnava um misto de excentricidade e simpatia. Alto,
forte, sorridente, impressionava pelo físico e maneiras destabocadas.
Andarilho
de sete fôlegos, trazia o matulão a tiracolo e não
largava a bengala de aroeira, feita um bordão.
Meio
carnavalesco, usava roupa de mescla com um lenço encarnado no pescoço.
Seus dedos eram grossos de anéis.
Cantando,
com uma bonita voz, erguia, desdenhoso, o rosto guarnecido de grandes óculos
escuros. Este retrato denuncia o estado interior:
Sou o cantador malhó
Que a Paraíba criou-lo.
Eu me chamo Zé Limeira,
Cantor de Sabedoria.
Não tem homem cuma eu.
Sou o vátis das glórias desta terra.
O auto-elogio
é próprio dos repentistas. Nos desafios, cada um procura
superar o rival com suas pabulagens. Mas o Poeta do Absurdo, por
seus exageros, desafia um diagnóstico.
Singularizava-se
ele por sua independência e altivez. Enquanto os outros cantadores,
sempre louvaminheiros, exaltavam os "donos da festa", Zé Limeira
era irreverente e pornográfico dentro dos ambientes mais austeros.
Na casa
de um agrônomo, que o chamara para cantar, escandalizou a família
e os convidados com estas liberdades ao celebrar as virtudes da senhora
do anfitrião:
Eu sou um homem de fé
Mais só conheço a muié
Olhando a parte de baixo.
Na presença
de um governador de Estado, saudou a primeira dama, depois de ter ouvido
o parceiro esbofar-se em suas loas, com esta porcaria imprópria:
Doutô, como eu não tenho um brinde em nota,
Que possa oferecer à sua esposa,
Dou-lhe um quilo de merda de raposa
Numa casca de cana piojota.
Tinha
momentos de um saboroso realismo:
Muié só presta arpejada,
Porém só presta bem feme,
Do jeito que foi Noeme
Cum cinco mês de casada.
E no
mesmo tom
Só gosto de duas coisas:
Vida boa e muié feme.
Ainda o ano passado
Fui pai dum casá de geme
Rebenta
um imprevisto:
Fui casado e bem casado,
Cum quem, num digo cum quem.
A muié ainda é viva,
Mas morreu, mora no Além,
Se um dia vortá à terra,
Vai morá no pé da serra,
Não casa mais cum ninguém.
Criou
um lirismo rude:
No dia que eu me zangá
Mato você de carinho.
E mais
temo:
Minha muié chama Bela,
Quando eu vou chegando em casa,
O galo canta na brasa;
Cai o texto da panela,
Eu fico olhando pra ela...
Morena de meu amor,
Cabo de minha bengala,
Segredo de minha mala,
Meu cavalo corredor.
Admira
esta fluência poética:
Eu e o mestre na festa
Canto até ficá de dia.
Na terra só tem tristeza,
No Céu só tem alegria.
Se um dia eu fosse chamado
Prá cantá no Céu eu ia.
E esta
novidade de construção:
Eu briguei com um cabra macho
Mais não sei o que se deu:
Eu entrei pru dentro dele,
Ele entrou pru dentro deu,
E num zuadão daquele
Não sei se eu era ele
Nem sei se ele era eu.
O que
singularizava Zé Limeira era ser o antilógico:
Casemo no ano de quinze,
Na seca de vinte e três.
Ela parece um limão
Rodeado de cebola,
Uma goiabeira verde
Enfeitada de ceroula...
Eu me lasco mas faço uma ferida
No toitiço da velha madrugada.
Quando uma vez eu cantava,
Bem cedinho, à meia-noite,
Quando eu de dia falava,
Passou uma besta-fera
E meus versos declamava.
Baralhava
ele as noções de tempo e de espaço. E ainda
pior, era a deformação pessoal.
Nos
desafios, fugia do assunto, deixando de estabelecer o diálogo.
Perdia o fio das respostas e prosseguia, desatento, distante, desarrazoado,
sem ligar para o companheiro. Fazia de conta que não ouvia
a deixa.
Abusava
da distorção histórica. Não havia glória
profana ou santidade que escapasse de suas caricaturas:
Napoleão era um
Bom capitão de navio:
Sofria de tosse braba
No tempo em que era sadio,
Foi poeta e demagogo,
Numa coivara de fogo
Morreu tremendo de frio.
Dom Pedro teve um enfarte,
Tomou um chá de jumento,
Vomitou, botô pra dentro,
Tornô goipá outra vez...
Quando Jesus veio ao mundo
Foi só pra fazê justiça.
Com treze ano de idade
Discutiu com a doutoriça,
Com trinta ano depois
Sentô praça na puliça.
O Marechá Floriano
Antes de entrá pra Marinha,
Perdeu tudo quanto tinha
Numa aposta cum cigano.
Foi vaqueiro vinte ano,
Fora os dez que foi sargento.
Nunca saiu do convento
Nem pra lavá a corveta,
Pimenta só malaqueta,
Diz o Novo Testamento.
Quando a Princesa lsabé
Escapou do cativeiro,
Arrodiou pru Monteiro
Vei se escondê em Sumé.
Foi quando uma cascavé
Mordeu-lhe a junta dá mão.
Foi morrê lá no Feijão,
Dum jeito de fazê pena...
Um dia Augusto dos Anjo,
Junto com São João da Barra,
Foram fazê uma farra
E tivero um desarranjo.
Jesus nasceu em Belém,
Conseguiu sair dali,
Passou por Tamataí,
Por Guarabira também.
Nessa viage de trem
Foi pará no Entroncamento.
Não encontrando aposento
Dormiu na casa do Cabo,
Jantou cuscuz com quiabo,
Diz o Novo Testamento.
Era
assim que interrompia os torneios. Seria uma fuga? Um recurso
de ocasião? Um enxerto preconcebido para encontrar a rima?
Essa
incoerência não é um pensamento sem controle e, sim,
uma agressão ao real. Uma visão deformada e não
o abstrato, o subjetivismo criativo.
É
exato que ele também se apresentava como inventor da linguagem: filosamia, filanlumia, pilogamia e outros termos que ninguém pescava.
Deverá ser levado para o campo psiquiátrico ou seria um fenômeno
de intuição realista?
Ele
mesmo disse:
Eu sou um nego moderno,
Foi não foi, estou pensando.
De fato,
era um repentista; a composição elaborada tinha outro valor. Orlando Tejo examina bem esse aspecto.
Sabemos
o que significa o automatismo contra a reflexão. Mas não
se encontra nessa poesia plebéia nenhum laivo do subconsciente ou
do onírico; o que se observa é mera confusão.
Há uma exatidão intrínseca que não se deturpa.
Uma coisa é ser hermético e outra é ser desconexo.
Temos
mostras de surrealismo em alguns dos nossos melhores poetas: João
Cabral de Meio Neto, Jorge de Lima, Murilo Mendes. Um analfabeto
não teria essa sensibilidade.
Ou seria
simplesmente uma intenção humorística, um jogo de
crioulo doido? isso, sim. O poeta não levava as coisas
a sério, trocava as bolas, procurando o pitoresco.
Mas
que imaginação picaresca!
É
um livro digno de estudo.
O poeta
Orlando Tejo expõe uma matéria nova para ser analisada ela
crítica moderna.
Link para a page de Tejo
Cláudio Aguiar,
Soares Feitosa e
o poeta Orlando
Tejo (Zé
Limeira, o Poeta
do Absurdo); a
esposa de Tejo,
Josimara, a quem
ele chama "Minha
Prinspa". O
cenário é a
Livra Livro 7,
do Recife, mais
ou menos de
1997. Foto de
Majela Colares. |