Fatias
do tempo: O baú de Pedro Nava
Pedro
Nava legou uma das mais importantes obras memorialísticas já
escritas no País. O interessante é que o autor, apesar de
sua intimidade com grandes escritores brasileiros, lançou seu
primeiro livro - “Baú de Ossos” - quando tinha 69 anos.
Editada pela Nova Fronteira em 1972, a obra causou grande
impacto no meio intelectual brasileiro. Se
vivo fosse, Pedro Nava completaria no próximo cinco de junho,
quinta-feira, 100 anos. E a data não passará em branco. Dois
dos seus amigos e parentes, Paulo Penido e Joaquim Nava
Ribeiro, estão definindo o que será um dos principais
acontecimentos literários do ano. Para Penido, sobrinho do
escritor, “Nava é uma enorme catedral barroca que merece
ser descoberta”
Na
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, haverá uma série de
eventos em torno do escritor e médico mineiro (Nava dedicou
praticamente toda a sua vida à Medicina. Foi um dos maiores
reumatologistas do País). Está prevista uma série de
palestras de estudiosos da obra de Nava, bem como de amigos
fraternos do “fazendeiro do tempo”.
E
mais: nos corredores da Biblioteca, em pontos estratégicos,
computadores vão oferecer um panorama completo dos escritos
de Nava. Ainda na Biblioteca Nacional, a programação inclui
exposição de manuscritos e quadros pintados por Nava. Haverá
programação também em Juiz de Fora e Belo Horizonte. Está
sendo programado um concurso literário de âmbito nacional
sobre a obra de Nava.
As
editoras paulistas Ateliê Editorial e Giodarno, que fecharam
negociação com Paulo Penido, detentor dos direitos autorais
de Nava, lançarão manuscritos inéditos do escritor e reedições
de toda a sua obra. O projeto já começou com a edição de
“O Anfiteatro” (146 páginas, R$ 25), uma série de
retratos dos momentos vividos por Nava como estudante e
profissional de Medicina. Em Fortaleza, na próxima
quarta-feira, às 17 horas, o curso de Mestrado da
Universidade Federal do Ceará promoverá, no auditório do
Centro de Humanidades, palestra coordenada pela professora
Celina Fontenele Garcia sobre a escrita de Pedro Nava.
O
primeiro livro de memórias de Pedro Nava, “Baú de
Ossos”, foi forjado em plena ditadura militar - entre 1968 e
1970. Eram os anos de chumbo. No poder, Emílio Garrastazu Médici.
Nos porões da ditadura, a tortura corria solta. A literatura
pós-64 no Brasil começa a tomar outros rumos diante da
censura implacável. Segundo Silviano Santiago, tornou-se
bastante complicado classificar o romance dentro daquele
contexto. Novos anseios eram colocados diante de uma situação
dramática. E os padrões comuns que, durante um longo tempo
determinaram a estética do gênero literário, foram para o
espaço.
REEDIÇÕES
O monumento literário de Nava
Em que Brahmas, em que brumas Pedro Nava se afogou?, lamentou
Vinícius de Mores depois do suicídio do amigo perto da
meia-noite de um domingo, dia 13 de maio de 1984. Tinha 80
anos. Quinze anos depois de ter descarregado na têmpora o
Taurus calibre 32, Pedro Nava ressurge da pólvora e começa a
ser reeditado.
Agora,
sua obra está sendo reeditada pelas editoras Ateliê e
Giordano, inclusive seus cadernos, onde Nava desenha
caricaturas de pessoas, anotava frases, pensamentos e poemas.
Nava era mineiro e morava no Rio, mas os cadernos foram
publicados em São Paulo pelas editoras Giordano e Ateliê
Editorial, já que o sobrinho Paulo Penido retirou furioso, há
dois anos, os direitos da Nova Fronteira. “Eles lançaram a
biografia leviana “A Solidão Povoada”, da francesa
Monique Le Moing, que confinou Nava ao segmento gay”,
reclama, referindo-se ao clima de chantagem e boataria sobre
homossexualismo que envolveu a memória do escritor depois do
suicídio.
Ilustrado
com desenhos de Nava - que o amigo Mário de Andrade
considerou numa carta ao amigo “uma delícia” -, esses
cadernos devem ser consumidos como quem persegue a construção
de um monumento literário, desses que se levantam de cem em
cem anos´” como disse Francisco de Assis Barbosa.
Os
cadernos trazem pistas preciosas sobre personagens de Nava -
como Persombra e Ronairsa -, homenagens aos craques do
Botafogo, uma série de caricaturas que incluem as irmãs,
mulher e cunhadas de Afonso Arinos identificadas com as
iniciais, o carão enorme de gesso do marechal Odílio Denys e
comentários sobre o “covardão” general Costa e Silva.
Traz colagens de Millôr, “médico que investe (no
verdadeiro sentido da palavra) em cem doentes lucra 10% de cadáveres”
- Nava era reumatologista. Traz notícias macabras do
dia-a-dia incluídas na classificação Brasil Cão e
considerações sobre os números: “6-bunda grande e magra,
9 -peito grande em mulher magra, o nariz grego do 4...”
Há
o poema que ele qualifica como “fabuloso” de Affonso
Romano de Sant´Ana, “Que País É Esse”, e crônicas dos
amigos Otto Lara Resende, que cita Lima Barreto “´Eu temo
mais matar do que morrer”), e Drummond.
Com
os cadernos vem a reedição das obras completas de Nava. São
seis livros: “Baú de Ossos”, “Balão Cativo”, “Chão
de Ferro”, “Beira-Mar”, “Galo-das-Trevas”, “O Círio
Perfeito” e 35 páginas do inacabado “Cera das Almas”,
que surpreenderam os amigos. Quando Nava publicou o primeiro
tinha 69 anos e ninguém imaginava que se escondia ali um
mestre da arte de escrever memórias. As palavras colhidas
como pérolas, as memórias pinçadas sem restrição ou
piedade, a verdade crua do passado e aqueles segredos de família
que ninguém ousa divulgar valeram ao escritor ao mesmo tempo
fama, glória, ódio e vingança - um contraste que era o próprio
Nava.
Cáustico,
pândego, brincalhão, ele caricaturava médicos que
infernizaram sua vida na Policlínica Geral do Rio de Janeiro.
Chamava-os nos livros de Sacanagildo de Lima Goiaba, Diabolô
Cabresto, Merdioso, Colérico e Sabugosa. Com Drummond, seu
companheiro de juventude, ele incendiou “de brincadeira” o
porão de uma namorada, Eunice Vivacqua. O sobrinho Paulo
Penido, também médico, hoje aposentado, com 62 anos, jura
que quando o conheceu pensou que Nava fosse o mágico das
festas. “Eu devia ter uns 5 anos e ele usava chapéu de
tirolês e bigode desenhado”, descreveu.
Nava
tinha fixação mórbida por defuntos e morte. Drummond foi um
dos seis amigos que recebeu, nove anos antes da morte dele,
uma carta suicida: “Desejo que meu cadáver seja embalsamado
com uma grande injeção (dois litros) de formol na artéria
femural ou, de preferência, carótida...” Foi também um
dos muitos que, como Pablo Neruda, julgavam seu poema “O
Defunto” o maior da língua portuguesa: “Meus amigos,
tenham pena,/ Senão do morto, ao menos/ Dos dois sapatos do
morto!/ Dos seus incríveis, patéticos/ Sapatos pretos de
verniz.”
Ele
passou seu último Natal, em 1983, conversando com o sobrinho,
meio sério, meio brincando, sobre técnicas de suicídio.
“Em mim, a depressão representa-se por um polvo que me
estrangula e sufoca com seus oito tentáculos e me esvazia de
corpo e mente com suas ventosas inumeráveis, “Nava escreveu
num dos Cadernos. Não há melhor momento para debruçar-se
sobre o “completo, lúdico, sério, imprevisível... Esse
Pedro”, como o chamava Drummond.
Além
dos Cadernos e da Obra Completa, os editores Claudio Giordano
e Plinio Martins Filho querem editar a correspondência entre
Mário de Andrade e Nava, depositada no Instituto de Estudos
Brasileiros da USP. São 25 cartas trocadas entre 1925 a 1944.
No ano passado, os editores já lançaram as anotações
desenhadas do Nava viajante em Viagem ao Egito, Jordânia e
Israel. E a entrevista do sobrinho Paulo Penido sobre o tio,
incluindo a seleção de textos e poemas, “O Bicho Urucutum”,
título tirado de um poema de Nava.
As
teses pululam. Sobre a avó e a mãe de Nava, “Mulheres
Reveladas e Veladas”, de Ilma de Castro Barros e Salgado.
Sobre a escritura, “A Escrita Frankestein”, de Pedro Nava,
de Celina Fontenelle de Garcia. Sobre o tal casarão que ele e
Drummond incendiaram quando jovens, “Salão Vivacqua”, de
Eunice Vivacqua. Sobre a cozinha nos livros do glutão Nava e
outros, “Cozinha do Arco-da-Velha”, por Nazareh Costa e
outros. A comparação da escrita de Nava com a de Lúcio
Cardoso, “De Próprio Punho”, de Marilia Rothier Cardoso.
Mas
o melhor são as seis caixas depositadas na Casa de Rui
Barbosa do Rio, onde se podem ver os originais dos livros em
papel almaço datilografado de um lado e minuciosamente
desenhado do outro. Há também objetos pessoais. A única ausência
é uma cadeira que Nava inventou ser do fantasma. Tanto falou
que quem dormisse perto da cadeira teria pesadelos que o
sobrinho Paulo Penido começou a tê-los e descartou a
cadeira. Foi para a casa de outro sobrinho e o casamento dele
acabou. A cadeira foi parar na casa de uma irmã, mas uma
barreira caiu em sua casa no Alto da Boa Vista. O objeto
voltou à Casa de Rui Barbosa, mas a diretora Eliane
Vasconcelos a despachou. Ela pode ser vista de perto no ateliê
do editor Claudio Giordano, em Santo Amaro, por quem possuir a
fina ironia de Nava e, claro, não tiver medo de fantasma.
AUTO-CONHECIMENTO
De memória em memória...
Se a anarquia formal dominou o
cenário da prosa no Brasil nos anos 70 e 80, tudo indica, no
entanto, que os nossos romancistas, levados por um desejo de
reencontrar as raízes do gênero para readaptá-lo à
realidade brasileira, guardam em comum a preocupação com o
auto-conhecimento revelado pela experiência da escrita
romanesca. Se existe um ponto de acordo entre a maioria dos
nossos prosadores da época, este é a tendência ao
memorialismo (a história de um clã) ou à autobiografia,
tendo ambos como fim a conscientização política do leitor.
Vide a febre dos livros-reportagem e das biografias, com
sucesso no mercado editorial. Pedro Nava destacou-se e marcou
com as suas memórias um rarefeito momento da Literatura no País.
É
claro que essa tendência não é nova dentro das letras
brasileiras. Mas ela nunca foi tão explícita na dicção da
prosa, deixando ainda mais abaladas as fronteiras
estabelecidas pela crítica tradicional entre memória afetiva
e fingimento, entre as rubricas memórias e romances. Sabemos,
por exemplo, que a preocupação memorialística é um
componente forte e definitivo dentro de nossa melhor prosa
modernista.
A
prosa de Nava, no entanto, estaria longe dos
romances-reportagens ou das autobiografias dos ex-exilados. A
narrativa de tipo autobiográfico já estava sendo, a partir
da década de 60, a principal herança que os velhos
modernistas legavam às gerações mais novas, e isso de
Carlos Drummond de Andrade a Pedro Nava.
Há,
no entanto, algumas diferenças básicas entre os textos
tardios dos modernistas e os dos ex-exilados. “No caso dos
modernistas, a ambição era recapturar uma experiência não
só pessoal, como também do clã senhorial em que se inseria
o indivíduo; nos jovens políticos, o relato descuida-se das
relações familiares do narrador/personagem, centrando todo o
interesse no desenvolvimento político do pequeno grupo
marginal”, reflete o crítico e escritor Silviano Santiago.
Pedro
Nava, em suas memórias - “Baú de Ossos”, “Balão
Cativo”, “Beira Mar”, “Chão de Ferro”, “Galo das
Trevas” e “O Círio Perfeito” - resgata a história de
seu próprio clã, bem como de seu contexto social e político.
Partindo do seu núcleo familiar, faz um panorama da sociedade
brasileira no final do Século XIX e do Século XX. Sua obra,
como registra a professora Celina Fontenele Garcia, autora de
“A Escrita Frankenstein de Pedro Nava”, é gerada a partir
de documentos, retratos, genealogias, retalhos da memória,
histórias ouvidas e lidas, de livros lidos e apropriados,
guardados nos arquivos da memória. Entre as “apropriações”
está certamente “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel
Proust. Segundo Celina, Nava aprende, na última parte da obra
de Proust - “O Tempo Redescoberto” - “que a elaboração
de uma obra pode ser semelhante à construção de uma
catedral. Em Proust, a amplidão da catedral era tamanha que
se estenderia ao infinito: o escritor jamais terminaria
algumas partes, as quais seriam apenas esboçadas”.
No
seu último livro, na parte final, Proust consegue recuperar o
tempo e atingir seu objetivo ao compreender a matéria da
escrita e a sua relação com a obra de arte, enquanto Nava
deixa a sua obra inacabada, ao mesmo tempo em que
paradoxalmente encerra a narrativa com o “Foda-se e agora
escute”, de “Círio Perfeito”.
Literatura e História
Há muito são estudadas perspectivas e convergências entre
Literatura e História. Durante séculos, a Literatura fez da
História um dos pilares da ficção. E nada melhor que as
obras autobiográficas ou de memórias para atestar esta relação.
Dentro da obra de Nava, a história brasileira é uma referência.
Em “O Círio Perfeito” e “Galo das Trevas”, por
exemplo, Nava rememora os primeiros passos da Revolução de
30. Em “Beira Mar”, ele retoma os anos 20 embalados pela
revolução modernista paulista. Além de discorrer sobre a
vida cultural brasileira da época, ele descreve em Beira Mar
a relação do Brasil com a Europa após a Primeira Guerra
Mundial, dentro dos primeiros movimentos relacionados a uma
tomada de consciência da identidade brasileira.
Dentro
de sua visão de mundo, segundo a professora Celina Garcia,
Pedro Nava elabora para o leitor um conceito de história,
“ponto essencial de sua visão de homem”. Para isso, parte
do presente e utiliza a ironia para mascarar suas intenções.
Faz afirmações sobre os fatos atuais, dizendo-se contra
qualquer tipo de arbítrio, contra todo tipo de violência e a
favor da liberdade. Faz seu julgamento a partir das próprias
opiniões e emoções: violenta as pessoas ao transformá-las
em personagens/marionetes, que manipula com a força de seu
desejo de poder. Poder cuja realização torna-se possível
pela escrita.
Nessa
perspectiva, o que é verdade para Nava, quando declara que
escreve, tendo presente o espírito da primeira geração
modernista? Esse é o questionamento que o autor faz em
“Beira Mar”, na tentativa de justificar a sua escrita, com
a qual fará o seu ajuste de contas.
A
cada novo volume, Nava volta às questões do papel do
memorialista e do valor da verdade na escrita memorialística.
Segundo afirmações suas, memorialismo é interpretação de
fatos. Sua pergunta mais constante é: “como interpretar o
acontecido, se ele tem relevância extrínseca e depende da
reação piscológica de quem o recebe?” A verdade para Nava
é relativa. O fato muda ou se altera dependendo de quem o vê.
Como exemplo, recorre a “Macunaíma”, de Mário de
Andrade. A mesma história pode ser uma rapsódia alegre - a
obra de Mário - ou um filme duro - o filme de Joaquim Pedro
de Andrade. Mas um fato é incontestável: o contexto histórico
influi sobre as orientações historiográficas, e isso
qualquer que seja o período estudado. O contexto de Mário ao
escrever “Macunaíma” era bem diverso do de Joaquim Pedro
ao filmar “Macunaíma”. O mesmo ocorre na obra naviana.
Isso sem falar na visão particular de mundo de cada artista.
Segundo
Celina Fontenele, Nava parece divertir-se quando coloca a
questão da verdade, da sinceridade do memorialista. Ele chega
a invocar Pilatos ao lavar as mãos diante das verdades dos
outros. “O espelho pode refletir a verdade ou o que queremos
passar por verdade: por isso ele, o espelho, é comparado a
Pilatos e a Narciso”, escreve Celina em “A Escrita
Frankenstein”.
Retalhos da memória
Celina Fontenele assinala que o duplo projeto de escrita e de
vida de Pedro Nava foi que conferiu valor de obra de arte às
suas memórias. Diz que o escritor levou seu projeto às últimas
conseqüências, não se limitando a fazer a narração de sua
vida ou do que com ela se relaciona, “mas exercita sua
escrita frankenstein e apresenta um panorama da vida social
brasileira desde o século XIX até 1980.”
Para
Celina, esse projeto é baseado numa divisão binária e ao
mesmo tempo na mistura de elementos de sua história e de seus
sentimentos em relação às pessoas e aos acontecimentos:
“Ceará e Minas, amor e ódio, ironia e ternura, liberdade e
arbítrio, passado e presente, vida e morte, tempo e espaço,
atração e medo, remédio e veneno, prisão e liberdade são
algumas dessas dicotomias“.
—
‘Baú de Ossos’ é, assim, a recriação do passado e do
presente, construídos pela memória de um Frankenstein que
desarquiva fatos, lembranças e leituras, como nas metáforas
da construção da obra empregada por Proust: metáforas da
catedral, uma construção feita de pedras reajuntadas de
cimento, secular, anônima; do vestido feito de retalhos de
tecido, onde mal se enxergam as costuras, ou do livro, grande
cemitério, onde mal se podem ler os nomes apagados na maioria
dos túmulos. Assim é a construção de ‘Baú de Ossos’:
construção de retalhos da memória, retalhos de tecidos de
textos.
Nas malhas do tempo perdido
Nava recorreu a muitos artifícios para escrever sua obra. E não
era para menos. Na infância, o autor viveu uma conjuntura
familiar opressiva, numa Minas provinciana. E, na idade
adulta, vivenciou duas ditaduras políticas - a de Getúlio
Vargas, de 30 a 45, e a dos militares, de 64 a 84. Por isso,
como aponta a professora Celina Fontenele, a sinceridade e a
verdade em Nava são mascaradas através de um texto descontínuo
e fragmentado. Consciente dos perigos da escrita - é mais difícil
escrever sobre os vivos do que sobre os mortos -, Nava busca
outras vozes, textos de amigos, narradores de outros livros.
Nava nunca foge ao seu modelo - Marcel Proust - no estilo, no
vocabulário, nas questões relativas ao tempo, à
incomunicabilidade entre as pessoas, na solidão, no
esquecimento e na morte.
A
professora Celina Fontenele pontua várias relações entre as
obras de Nava e de Proust - “a preferência pelos mesmos
pintores (Boticelli e Giotto, por exemplo), pelos mesmos
livros (‘As mil e uma noites’, ‘Athalie’ e ‘Phedré’),
os mesmos escritores (Vilon, Balzac, Flaubert, Anatole France)
e a repetição das mesmas palavras (caleidoscópio, tempo,
memória, inconsciente, puzzle)”.
Como
Proust, Nava recheia suas memórias de citações. Utiliza em
demasia a intertextualidade - cita Balzac, Stendhal, Zola,
Baudelaire, Verlaine, Machado de Assis, Oswald de Andrade, José
Lins do Rego, Manuel Bandeira, entre muitos outros. Como
Proust, Pedro Nava escreve períodos longos, mistura presente,
passado e futuro ao contar a genealogia de amigos, lembrar as
coisas, falar de culinária, discutir questões como a revolução
de 30, o movimento em favor do petróleo, uma bandeira de
Monteiro Lobato, ou a revolução constitucionalista paulista.
Lança mão da ironia e do sarcasmo quando fala dos médicos
sem caráter, os profissionais marrons. Ou da Academia
Nacional de Medicina. Entre um momento e outro da narrativa,
Nava joga uma epígrafe.
A
multiplicação dessa epígrafes na obra de Nava manifesta o
grande arsenal de leituras e o domínio que o autor possui de
todos os níveis de seu texto. Texto no qual se percebe um
grande número de apropriações e intertextualizações. Nava
nos dá, através das epígrafes, em primeiro lugar a definição
do papel do escritor/leitor; só depois elas se tornam para nós,
leitores, instruções de leitura.
O DUPLO
Nava jamais faz uma revelação sobre a sua intimidade. Entre
os muitos artifícios do seu texto, chega a criar outro
personagem, Egon, facilmente identificado com o próprio
Nava-narrador.
Mas
é através de Egon, no final de “O Círio Perfeito”, do
Comendador, que Nava esconde a sua privacidade, principalmente
no que se relaciona às questões amorosas e ao sexo. O desejo
de privacidade e de construir uma imagem irretocável de si
parece ser um dos motivos por que ele não assume nenhuma
aventura amorosa em suas memórias. Em “Chão de Ferro”,
atribui à personagem Egon, em sua primeira aparição na
narrativa, a aventura com Maria, a criada das casas dos tios
Ennes e Eugênia.
Em
“Beira Mar”, Egon aparece novamente, para viver as
aventuras mais livres nos cabarés ou para assumir o caso com
uma prostituta, que o faz desaparecer do serviço do hospital
durante uma semana. Ela será uma paciente em estado grave que
Egon encontra tempos depois e que, em cena de extrema emoção,
ajuda a morrer. Egon é também utilizado para as cenas mais
comoventes e mais graves, como aquela em que espia o
Comendador no cabaré da Olympia, fato que volta com importância
fundamental no final de “O Círio Perfeito”: Nava/Egon é
o voyeur que descobre o segredo do Comendador, como
Proust/voyeur descobre o segredo de Charlus/Jupien, ao mesmo
tempo em que o leitor /voyeur supõe descobrir, numa narrativa
ambígua, o segredo do narrador/Egon.
Outro
ponto a destacar na obra naveana é a sua narrativa, quando
resgata, através da história dos mais velhos, um baú de
lembranças. A professora Celina Fontenele Garcia atesta que
Nava, quando recorre à experiência dos mais velhos,
justifica sua narrativa benjaminiana e proustiana. “Na
experiência, na evocação e na associação, o memorialista
removeu seu baú de memórias e o passado de sua família, que
junto a livros herdados, móveis e objetos vão constituir
toda uma herança familiar concreta”, destaca.
Uma
das personagens mais fascinantes das memórias de Nava é a
personagem Rosa. A literatura popular é recontada por sua
boca. Para Celina Fontenele Garcia, Rosa ocupa o lugar do
narrador de Benjamin - do popular contador de histórias, que
tudo sabia e podia. Foi através de Rosa que Nava recontou a
fala e a ideologia dominante.
O
narrador, segundo o crítico Walter Benjamim, entra na
categoria dos professores e dos sábios. Ele dá conselho - não
como autor de provérbios, mas como um verdadeiro sábio,
aquele que fala para muitos. “Pois lhe é dado recorrer a
toda uma vida. Uma vida, aliás, que abarca não só a própria
experiência, mas também a dos outros. Àquilo que é mais próprio
do narrador acrescenta-se também o que ele aprendeu ouvindo.
Seu talento consiste em saber narrar sua vida; sua dignidade
em narrá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar
a mecha de sua vida consumir-se integralmente no fogo brando
de sua narrativa. Reside nisso o incomparável estado de ânimo
que envolve o narrador. O narrador é a forma em que o Justo
encontra a si mesmo”.
Dentro
dessa concepção de Walter Benjamim, Nava, através da
personagem Rosa ou quando recorre às experiências dos mais
velhos, coloca no centro de sua obra uma questão maior - a da
identidade brasileira através da literatura. As memórias, as
autobiografias, as biografias compõem um expressivo pano de
fundo histórico. E mais: dentro de um contexto de oralidade,
reafirma os mitos e símbolos do processo civilizatório de
determinada comunidade. É sabido que a tradição oral
resgata o passado, uma rede tecida há anos e conservada pela
memória dos mais velhos.
O
estudioso dos gêneros do discurso Tzvetan Todorov, em sua
“As Estruturas da Narrativa”, reafirma com uma frase-símbolo
essa questão, ao analisar “As Mil e uma Noites”, uma das
obras preferidas de Nava: “Inútil procurar a origem das
narrativas no tempo. É o tempo que se origina nas
narrativas”.
NO
CONJUNTO DE OBRAS
O pacto da sinceridade de Nava
Mesmo com tantos artifícios, Pedro Nava reafirma em seu
conjunto de obras o pacto de sinceridade com o leitor. Logo no
início de “Baú de Ossos”, ele se define como “um pobre
homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”.
Principalmente em “Baú de Ossos”, Nava reafirma em
diversos pontos da narrativa seu pacto de sinceridade consigo
mesmo e com os leitores. Em Nava, o narrador é o personagem
principal. A perspectiva da narrativa é retrospectiva.
A
questão da verdade, seja no romance, seja no memorialismo/autobiografia
não deixa de ser polêmica. No romance, existe uma espécie
de pacto fantasmagórico - o romance é uma ficção que
remete a uma verdade de natureza humana, mas também como
fantasmas reveladores do indivíduo. A autobiografia/memória,
ao contrário, diante de um pacto firmado entre o autor e o
leitor, não deixa duvidas sobre a identidade do autor.
Pedro
Nava escreve em várias passagens de suas memórias sobre
livros, artes plásticas, música, escultura. E traça
apurados perfis de personalidades brasileiras. Em “O Círio
Perfeito”, por exemplo, quando Egon/Nava aborda a obra de
Afonso Arinos, coloca sua obra no terreno da biografia, história,
lembrança e memória. E para Nava/Egon tudo isso pode ser
literatura.
—
Sim, é literatura quando escrita com a surpresa e o mistério
da poesia. Com as qualidades da clareza e do estilo original.
As discussões daquelas diferenças não conduzem a nada. Em
Balzac e Proust, onde acabam os romancistas e começam os
memorialistas de suas respectivas épocas? Leon Tolstoi, em
“Guerra e Paz”, é autor do maior romance contemporâneo,
ou da crônica prodigiosa da Europa Napoleônica (...) Na
opinião do que fala, é ocioso discutir os limites da
literatura. Literatura é tudo aquilo feito com bom estilo,
tudo que é bem escrito e que é tocado, ainda que de leve,
pela mão da poesia”.
Diante
de seu pacto de sinceridade com o leitor, Nava, a partir da
história de sua família, narra com maestria a trajetória de
personalidades, reconstrói ruas, cidades - Fortaleza, Juiz de
Fora, Belo Horizonte, Rio de Janeiro -, relembra marcas da
história de seu País. Proust nunca é esquecido por Nava e o
processo da teoria reminiscente da madelaine. Nava numa
passagem de “O Círio Perfeito” escreve:
—
Idéias, lembranças que tornam cada quina, cada pedaço dum móvel,
duma casa, duma rua, duma praia - outra madelaine. Suprimi-los
é tornar impossível seu encontro com o que detém cada cada
como uma lembrança e fechar para sempre uma catadupa de
poesia que é obrigada a não renascer porque jamais dos
jamais será encontrada pelo único que neles depositara seu
segredo de lembrar. Uma demolição, o aterro que fez a nova
praia de Copacabana - suprimem assim milhares de coisas,
interrompem, bloqueiam a memória. Há desse jeito um momento
de guardar certos ambientes nos seus ínfimos detalhes - todos
importantes porque qualquer unzinho deles poderá disparar o
gatilho das recordações.
Dessa
forma, Nava vai reconstruindo suas memórias. A partir, às
vezes, de pequenos objetos. Assim como Proust introduz através
da escrita uma radical relativação do mundo, dos seres, das
situações, das paisagens. Para ele, o universo é verdadeiro
para todos nós e diferente para cada um. Ao admitirem uma
infinidade de pontos de vista, Proust e Nava redimensionam a
realidade. Para ambos, a vida só vale por instantes - e o
tempo perdido já não tem espaço na realidade. E somente a
arte pode resgatar este tempo. Proust, em “O Tempo
Redescoberto”, discorre em vários pontos da obra sobre o
valor, o objetivo da arte - “O que importa desvendar, tornar
claro, são os nossos sentimentos, nossas paixões, isto é,
os sentimentos e paixões de todos”.
Tanto
para Proust quanto para Nava, somente uma percepção
grosseira e viciada coloca tudo no objeto, quando tudo está
no espírito. Por isso, a obra de ambos foi forjada nas experiências
passadas, reconstruídas também através das sensações -
gustativas, auditivas, visuais. O texto de Nava encontra-se,
como aponta o crítico Antônio Candido, em dois pólos: o
memorialismo e a escrita romanesca.
Seja
como for, constatamos que o importante é a condição humana
refletida de forma poética, literária e estética no texto.
A obra de Pedro Nava, como quer Antônio Candido, e diante de
alguns postulados teóricos, passeia entre o memorialismo
(numa tênue fronteira com a autobiografia) e o romance. E
mais: em Nava a memória é, ao mesmo tempo, individual e
coletiva. Ao escrever a sua própria história, o autor relata
a história da sociedade da qual participa. Novamente
recorrendo à professora Celina Fontenele Garcia, mais
importante que a semelhança formal é a reconstituição
feita por Nava, à maneira de Proust, “do mundo social, político,
literário e artístico do Brasil, nesses dois séculos de
narrativa, na pintura dos costumes, na descrição de situações
e de acontecimentos, e na recriação de tipos carregados com
traços de humor, ironia, ódio ou inveja”.
Enquanto
isso, no plano individual, Nava se apropria de Proust - da memória
involuntária. Por isso, a busca da verdade da vida através
do tempo, tanto em Nava quanto em Proust, é a maior obsessão.
A obra naveana contém ingredientes do romance, do
memorialismo e da autobiografia; algo difícil, às vezes,
para os mais ortodoxos aceitarem. O conselho tecido na substância
viva da experiência tem um nome: sabedoria.
E
foi com sabedoria e arte que Nava resgatou a história da sua
vida, do seu clã, da sua comunidade, do seu País. Tomando a
memória por matéria-prima e inspiração, Pedro Nava
eternizou fatias de tempo, para sempre salvas do efêmero por
um relicário literário.
O
SUICÍDIO
O irônico fim de Pedro Nava
Como alguém fascinado por memórias decide acabar com sua própria
vida? Essa pergunta sobre o remate final da trajetória do
escritor Pedro Nava é, ainda hoje, uma dúvida que não se
desfaz entre os admiradores de sua obra. O trabalho do
memorialista consiste, justamente, em dar continuidade a um
tempo que parece ter ficado para trás. Entretanto, um olhar
mais interessado pode perceber em seu suicídio uma certa
cartada de mestre de Nava, que põe fim à incongruência em
torno do ato. O enigma de sua morte acaba por mantê-lo vivo
na memória de leitores, amigos e parentes.
O
escritor tinha uma vida bastante tranqüila e, aos 80 anos,
estava no auge do seu prestígio como escritor. Nava dedicou
grande parte de sua vida ao ofício da medicina, só tendo se
voltado exclusivamente para as letras já na maturidade. Seu
primeiro livro, “Baú de Ossos”, é de 1972, quando estava
aos 69 anos. Com efeito, em apenas 11 anos Pedro Nava produziu
uma das mais poderosas obras da literatura brasileira.
Uma
personalidade inquieta e multifacetada, é assim que muitos o
definem. Sua morte inesperada, na noite do domingo 13 de maio
de 1984, foi um verdadeiro choque. Os familiares negaram
qualquer sinal de depressão, e a autópsia não detectou
nenhuma doença grave que tivesse motivado o artista a
precipitar sua hora final.
Nava
suicidou-se aos 80 anos, a menos de um mês de fazer aniversário.
A razão para que cometesse tal ato foi atribuída a um
telefonema anônimo recebido naquela noite de domingo. O dia
havia transcorrido normalmente na vida do casal Pedro e
Antonieta, casados havia quatro décadas. Antes de o telefone
tocar, eles se preparavam para assistir a uma entrevista do
poeta Carlos Drummond de Andrade em um programa de televisão.
Logo após falar ao telefone, Nava saiu de casa sem que ninguém
percebesse.
Horas
depois, o corpo do artista foi encontrado, com um tiro na cabeça,
sob uma árvore a apenas 200 metros do prédio onde morava
desde que se casou. O suicídio de Pedro Nava deixou amigos,
leitores e admiradores atônitos com o mistério que sempre
envolveu o incidente. Até hoje não se sabe, ao certo, o que
determinou essa postura tão abrupta. O fato é que, de certa
maneira, o suicídio contribuiu para que o artista ficasse
imortalizado.
SAIBA MAIS
Obra completa
“Baú de Ossos”
“Balão Cativo”
“Chão de Ferro”
“Beira Mar”
“Galo das Trevas”
“Círio Perfeito”
Sobre Pedro Nava, a editora Ateliê ainda publicou:
- “Bicho Urucutum”, livro que contém entrevista de Paulo
Penido, sobrinho de Nava. Na obra, Penido descreve sua
convivência com o tio e esclarece pontos nebulosos na vida do
autor. Ele também seleciona desenhos que retratam melhor quem
foi Nava: o escritor, o cidadão, o médico, o esposo, o tio;
- “Viagem ao Egito, Jordânia e Israel”, reprodução do
caderno de anotações que Nava fez quando viajou para o
Oriente. Nele, o escritor faz observações agudas dos
costumes daquelas sociedades, além de caricaturas e desenhos;
- “Cadernos 1 e 2”, edição fac-símille dos cadernos de
Pedro Nava arquivados na Casa Rui Barbosa;
- “Anfiteatro”, livro em em Paulo Penido seleciona textos
das memórias e artigos de jornais e revistas que retratam
Pedro Nava como médico remautologista, que se impunha e
brigava por suas idéias.
José Anderson Sandes é
editor do Caderno 3 do Diário do Nordeste.
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