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José Anderson Freire Sandes

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Ensaio, crítica, resenha & comentário:

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Vera Queiroz

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

Conceição Paranhos

 

 

 

 

 

Vera Queiroz

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ana Cristina Souto

José Anderson Sandes
 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

12.3.2007

 


 

Uma conversa ligeira

com o poeta

Gerardo Mello Mourão

 


 

A morte do poeta, escritor, jornalista e ex-deputado federal cearense Gerardo Mello Mourão, aos 90 anos, na última sexta-feira, deixa um vácuo para a literatura brasileira. Nesta edição, em homenagem ao autor de ´A Invenção do Mar´ e ´O Valete de Espadas´, republicamos uma entrevista concedida em 24 de outubro de 1996, por ocasião de sua indicação ao Troféu Sereia de Ouro, do Sistema Verdes Mares.

O senhor nasceu em Ipueiras. Que recordações guarda de sua infância?

Nasci em Ipueiras, no pé da serra da Ibiapaba. Creio que a memória da infância é a companhia mais assídua que o ser humano carrega consigo ao longo da vida. Como Rilke, creio que ninguém se despede para sempre da própria infância. Nascer e passar a primeira infância numa pequena cidade de qualqer estado do Nordeste, é um prêmio para o resto da vida. E ter nascido em Ipueiras, é um privilégio. Pude começar ali a navegação da vida e a descoberta do mundo, marcado por uma identidade singular. Ipueiras era também um núcleo vivo de minha própria vida familiar, da história de duas famílias sertanejas que, a seu tempo, dominaram toda a serra da Ibiapaba: os Mellos e os Mourões. Formaram, desde sua chegada ao Ceará, um clã parental, que dura até hoje, inserido desde o século XVII, num tronco familiar comum, com os Feitosas, os Correia Lima, os Araújos, os Albuquerques, os Veras, os Ribeiros, os Barros, os Lopes, os Teixeiras, os Sampaios. Gente de Crateús, Nova Russas, Ipu, Tamboril, Campo Grande - hoje Guaraciaba - os Martins Chaves, os Galvões, e assim por diante. Os Mellos eram, de início, a família mais rica da serra e havia trazido à colônia fumaças da mais antiga aristocracia portuguesa. Casados entre si, Mellos e Mourões eram uma família só, viviam em armas, faziam e executavam as leis, até que o infame Oyenhausen, que a insensatez do Imperador fizera Visconde de Aracati e governador do Ceará, moveu contra eles uma guerra suja, tentando exterminá-los. Depois, o coronel José de Barros Mello, chamado “O Cascavel”, quatro vezes meu tataravô, casado com sua prima carnal, entrou em luta com o cunhado e também primo carnal, ao “valoroso” Alexandre Mourão, como o chama Gustavo Barroso. Foi uma guerra fratricida de barões da Renascença cabocla, com lances no Ceará, no Piauí, no Maranhão, na Paraíba e em Pernambuco, lembrada por nossos historiadores. Para honra nossa, a guerra desses antepassados não deitou raízes entre seus descendentes, e eu mesmo juntei ao meu os dois sobrenomes, para simbolizar a unidade de uma das mais belas histórias da fundação familiar de nossa terra. Também poderia chamar-me Barros Mello ou Ribeiro Mello, como um de mus avós, ou Mello Sampaio, como outro avô, que era sobrinho de nosso General Sampaio.

Adolescente, o senhor mudou para Minas, onde estudou em um seminário. Como processou-se a mudança? O senhor pensou mesmo em seguir a carreira religiosa? E, depois, o que o fez mudar de idéia?

Não adolescente, mas menino ainda, com 11 anos, entrei no seminário holandês dos redentoristas, em Congonhas do Campo. Aos 17 anos, tomei o hábito dos Padres de Santo Afonso, no Convento da Glória, em Juiz de Fora. Eu queria ser santo. Ainda hoje, acho, como Léon Bloy, que a única desgraça do homem sobre a terra é não ser santo. Faltou-me o heroísmo. O sacerdócio e, ainda mais, a vida monástica, exigem um heroísmo de que não fui capaz. Melhor ter saído em tempo, do que acabar amancebado como o frade apóstata Leonardo Boff e os pobres padres casados que andam por aí, casados sempre com mulheres feias e tristes.

A paixão pela literatura e o jornalismo começou depois de sua saída do seminário...

Ao sair do seminário, fui viver com uns tios no Rio. Queriam que eu fosse oficial do Exército, e um primo, depois general, documentou minhas relações de parentesco com o general Sampaio, para certas facilidades, possíveis à época, em meu ingresso na Escola Militar. Mas a vida militar é quase tão dura como a vida de um monge. A idéia de me fazer general, como a idéia de me fazer papa, não prosperou. Eu estava picado pela literatura, pela poesia, opção, de resto, mais exigente que qualquer outra. Na contramão de seus desejos, deixei a casa dos tios, e pobre, seco e duro como um cactus, não pedi nada a ninguém. Fui procurar trabalho para sobreviver. Fui professor em vários colégios do Rio. Professor de línguas e de coisas que eu sabia. E até de coisas que eu não sabia bem. Tristão de Athayde me levou a entrar para o integralismo.

O senhor abraçou o integralismo como muitos intelectuais da época. Que análise o senhor faz daquele contexto histórico?

Minha geração foi uma geração dramática no Brasil. Dentro dela, pertenço àquele grupo que Mário Vieira de Melo, talvez o maior mestre de filosofia vivo neste País, chama, em seu livro mais recente, de “geração integralista” - na qual ele mesmo se inclui - para identificar algumas das mais importantes figuras da vida cultural brasileira dos anos 30. Era quase um adolescente, tinha 18 anos, paguei muito caro por esta opção, mas dela não me arrependo, como fez posteriormente nosso dom Hélder Câmara, dizendo candidamente que foi um erro da juventude. Não tenho de que me arrepender. Ao contrário: participei do mais fascinante grupo da inteligência do País. Não me arrependo da defesa dos valores morais e culturais que defendemos e que continuo a defender hoje, em nome da liberdade e da cultura, contra a ignorância e a imbecilidade dos carreirismos ideológicos. De resto, as ideologias, inclusive a ideologia marxista, estão mortas no mundo inteiro e só no Brasil uns intelectuais tolos ou carreiristas insistem em carregar nas costas, como o Zaratustra de Nietzsche, o cadáver insepulto do besteirol ideológico. Foi primeiro a militância política, depois o compromisso com a cultura, que me levaram à aventura do jornalismo.

O senhor foi também deputado federal por Alagoas, mas parece que não tomou gosto pela carreira política...

É. Fui deputado federal por Alagoas. Creio que até um bom deputado. Mas não creio mais na ação política de artistas e escritores. Numa visita que me fez na prisão, certa vez, com meu fraterno amigo o líder negro Abdias Nascimento, o grande e trágico romancista francês Albert Camus que me dizia: - “não se meta em atividades políticas. Nosso papel, como escritores e artistas, não é fazer a história. É sofrer a história”. Prefiro, assim, ficar sofrendo a história como testemunha. Os testemunhos do sofrimento são sempre fecundos. Mas o tempo de deputado federal foi importante para mim: conheci a bela terra das Alagoas de meu compadre Jarmelino e desse homem de bronze que se chamou Luís Oiticica. Conheci os “viventes” das Alagoas, como os chamava Graciliano Ramos, e este conhecimento meu deu uma consciência e uma ternura maior por nosso País do Nordeste.

Quem foi mais violento com a oposição: o Estado Novo de Getúlio ou a ditadura militar?

A ditadura do Estado Novo foi mais monstruosa que a ditadura militar. A ditadura militar praticou violência contra pessoas. De certo modo, abertamente. A ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas foi medular, básica e científica. Violou todos os conceitos fundamentais do Direito, deu um golpe de estado pelo rádio, fechou o Congresso e outorgou uma Constituição, a chamada “polaca”. Na ditadura militar, a violência contra a pessoa humana tinha, geralmente, autores conhecidos. Na ditadura getulista, a perversidade era refinada. Eu, por exemplo, fui condenado a 30 anos de prisão, não por qualquer lei ou código, mas por um decreto do Ditador. Como eu, algumas centenas de brasileiros. Creio que não há, na história da humanidade, exemplo de pessoas condenadas por dentro. Essas mal-aventuranças estão incorporadas a certa mitologia que cerca de luzes e sombras lendárias minha história pessoal. Ainda agora, o poeta Jesus Moreno, na Espanha, ao apresentar um texto meu numa grande revista cultural, e ao situar minha obra, num excesso de entusiasmo, na mesma linhagem da obra de Dante e Ezra Pound, dizia: - como o Dante, este poeta brasileiro sofreu, por motivos políticos, o cárcere, as perseguições e o exílio.

Hoje vivemos sobre a égide da tão propalada globalização. Cientistas sociais acham que a globalização colocará fim aos Estados nacionais. O senhor acredita nessa premissa?

O tema da globalização, nos termos em que está posto, é um tema de política econômica. Como tal, não me interessa. Os economistas políticos não fazem uma nação e uma história. Quem é que se lembra do nome do ministro da Fazenda ou do governador de Yorkshire no tempo de Shakespeare? Até mesmo para datas recentes: quem sabe aí quem era ministro dos Estados Unidos ou governador do Texas e do Arizona quando Ezra Pound escrevia os “Cantos Pisanos”?

Mas assistimos, porém, a uma aguda crise no capitalismo, principalmente nos países periféricos como o Brasil. O senhor é otimista ou pessimista com relação ao nosso futuro?

Não sou otimista nem pessimista. Creio no Brasil, nas virtualidades profundas dete País que um dia mandará para o lixo da história a impostura dos tecnocratas, dos economistas, das falsas lideranças administrativas e políticas, para incorporar-se à vocação do humanismo e do heroísmo que fundaram esta Nação. Não podemos tomar consciência da Nação e de sua grandeza, enquanto não se criar aqui uma Paidéia, uma educação para o desenvolvimento do homem, sem a qual não pode haver desenvolvimento da Pólis.

E o escritor Gerardo Mello Mourão. “O Valete de Espada”, por exemplo, foi qualificado de “demoníaco” por Tristão de Athayde. O senhor escreveu também a trilogia política “I Paianers” - que inclui “O País dos Mourões”, “Peripécia de Gerardo” e “Rastro de Apolo”. Que balanço o senhor faz de sua criação literária?

Não ouso fazer o balanço de minha obra. Tenho apenas aquela certeza humilde e soberba de Keats: “I think I shall be among the english poets after my death”. “Acho que meu nome estará entre os poetas de meu tempo, depois de minha morte”.

De uma maneira geral, como o senhor analisa o atual panorama cultural brasileiro?

O panorama da literatura brasileira? Não, não vou analisar. Mas de um modo geral é pobre, chato, manipulado, uma ruminação de coisas já ditas. É pobre o chamado panorama cultural. Tão pobre que até o Fernando Henrique já disse que o Caetano Veloso é o símbolo da cultura brasileira. Por que não a Dercy Gonçalves, o “romancista” Chico Buarque, o Tiririca e outros produtos similares da imbecilidade geral?

O senhor já recebeu inúmeros prêmios, inclusive foi indicato para o Nobel de Literatura. Agora, como se sente ao receber a “Sereia de Ouro”, um troféu outorgado por seus conterrâneos?

Fui indicado para o Prêmio Nobel em moção gerada na Universidade do Estado de Nova York, endossada pela Universidade de Estocolmo, por iniciativa de seu Instituto da América Latina e por várias outras universidades, inclusive o que me enternece particularmente, a Universidade Federal do Ceará, onde por proposta do professor Teoberto Landim, recebi o título de “Doutor Honoris Causa” com a gloriosa bonificação de ser saudado por um discurso antológico do poeta Artur Eduardo Benevides. Receber grandes prêmios internacionais não me importa muito. O que me enternece mesmo é receber a láurea da Sereia de Ouro no Ceará, do Sistema Verdes Mares, das mãos de Yolanda Queiroz, como um aceno que me faz da eternidade o grande e saudoso Edson Queiroz. Esta sim, é a glória que fica, eleva, honra e consola, como queria Machado de Assis.

 


Gerardo Mello Mourão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Página do editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rita Brennand

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andréa Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gizelda Morais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Christ in the Sepulchre, Guarded by Angels

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Noli me tangere

José Anderson Sandes

1.6.2003 - Caderrno 3

Fatias do tempo: O baú de Pedro Nava

 

Pedro Nava legou uma das mais importantes obras memorialísticas já escritas no País. O interessante é que o autor, apesar de sua intimidade com grandes escritores brasileiros, lançou seu primeiro livro - “Baú de Ossos” - quando tinha 69 anos. Editada pela Nova Fronteira em 1972, a obra causou grande impacto no meio intelectual brasileiro. Pedro NavaSe vivo fosse, Pedro Nava completaria no próximo cinco de junho, quinta-feira, 100 anos. E a data não passará em branco. Dois dos seus amigos e parentes, Paulo Penido e Joaquim Nava Ribeiro, estão definindo o que será um dos principais acontecimentos literários do ano. Para Penido, sobrinho do escritor, “Nava é uma enorme catedral barroca que merece ser descoberta”

Na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, haverá uma série de eventos em torno do escritor e médico mineiro (Nava dedicou praticamente toda a sua vida à Medicina. Foi um dos maiores reumatologistas do País). Está prevista uma série de palestras de estudiosos da obra de Nava, bem como de amigos fraternos do “fazendeiro do tempo”.

E mais: nos corredores da Biblioteca, em pontos estratégicos, computadores vão oferecer um panorama completo dos escritos de Nava. Ainda na Biblioteca Nacional, a programação inclui exposição de manuscritos e quadros pintados por Nava. Haverá programação também em Juiz de Fora e Belo Horizonte. Está sendo programado um concurso literário de âmbito nacional sobre a obra de Nava.

As editoras paulistas Ateliê Editorial e Giodarno, que fecharam negociação com Paulo Penido, detentor dos direitos autorais de Nava, lançarão manuscritos inéditos do escritor e reedições de toda a sua obra. O projeto já começou com a edição de “O Anfiteatro” (146 páginas, R$ 25), uma série de retratos dos momentos vividos por Nava como estudante e profissional de Medicina. Em Fortaleza, na próxima quarta-feira, às 17 horas, o curso de Mestrado da Universidade Federal do Ceará promoverá, no auditório do Centro de Humanidades, palestra coordenada pela professora Celina Fontenele Garcia sobre a escrita de Pedro Nava.

O primeiro livro de memórias de Pedro Nava, “Baú de Ossos”, foi forjado em plena ditadura militar - entre 1968 e 1970. Eram os anos de chumbo. No poder, Emílio Garrastazu Médici. Nos porões da ditadura, a tortura corria solta. A literatura pós-64 no Brasil começa a tomar outros rumos diante da censura implacável. Segundo Silviano Santiago, tornou-se bastante complicado classificar o romance dentro daquele contexto. Novos anseios eram colocados diante de uma situação dramática. E os padrões comuns que, durante um longo tempo determinaram a estética do gênero literário, foram para o espaço.

 

REEDIÇÕES
O monumento literário de Nava


Em que Brahmas, em que brumas Pedro Nava se afogou?, lamentou Vinícius de Mores depois do suicídio do amigo perto da meia-noite de um domingo, dia 13 de maio de 1984. Tinha 80 anos. Quinze anos depois de ter descarregado na têmpora o Taurus calibre 32, Pedro Nava ressurge da pólvora e começa a ser reeditado.

Agora, sua obra está sendo reeditada pelas editoras Ateliê e Giordano, inclusive seus cadernos, onde Nava desenha caricaturas de pessoas, anotava frases, pensamentos e poemas. Nava era mineiro e morava no Rio, mas os cadernos foram publicados em São Paulo pelas editoras Giordano e Ateliê Editorial, já que o sobrinho Paulo Penido retirou furioso, há dois anos, os direitos da Nova Fronteira. “Eles lançaram a biografia leviana “A Solidão Povoada”, da francesa Monique Le Moing, que confinou Nava ao segmento gay”, reclama, referindo-se ao clima de chantagem e boataria sobre homossexualismo que envolveu a memória do escritor depois do suicídio.

Ilustrado com desenhos de Nava - que o amigo Mário de Andrade considerou numa carta ao amigo “uma delícia” -, esses cadernos devem ser consumidos como quem persegue a construção de um monumento literário, desses que se levantam de cem em cem anos´” como disse Francisco de Assis Barbosa.

Os cadernos trazem pistas preciosas sobre personagens de Nava - como Persombra e Ronairsa -, homenagens aos craques do Botafogo, uma série de caricaturas que incluem as irmãs, mulher e cunhadas de Afonso Arinos identificadas com as iniciais, o carão enorme de gesso do marechal Odílio Denys e comentários sobre o “covardão” general Costa e Silva. Traz colagens de Millôr, “médico que investe (no verdadeiro sentido da palavra) em cem doentes lucra 10% de cadáveres” - Nava era reumatologista. Traz notícias macabras do dia-a-dia incluídas na classificação Brasil Cão e considerações sobre os números: “6-bunda grande e magra, 9 -peito grande em mulher magra, o nariz grego do 4...”

Há o poema que ele qualifica como “fabuloso” de Affonso Romano de Sant´Ana, “Que País É Esse”, e crônicas dos amigos Otto Lara Resende, que cita Lima Barreto “´Eu temo mais matar do que morrer”), e Drummond.

Com os cadernos vem a reedição das obras completas de Nava. São seis livros: “Baú de Ossos”, “Balão Cativo”, “Chão de Ferro”, “Beira-Mar”, “Galo-das-Trevas”, “O Círio Perfeito” e 35 páginas do inacabado “Cera das Almas”, que surpreenderam os amigos. Quando Nava publicou o primeiro tinha 69 anos e ninguém imaginava que se escondia ali um mestre da arte de escrever memórias. As palavras colhidas como pérolas, as memórias pinçadas sem restrição ou piedade, a verdade crua do passado e aqueles segredos de família que ninguém ousa divulgar valeram ao escritor ao mesmo tempo fama, glória, ódio e vingança - um contraste que era o próprio Nava.

Cáustico, pândego, brincalhão, ele caricaturava médicos que infernizaram sua vida na Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Chamava-os nos livros de Sacanagildo de Lima Goiaba, Diabolô Cabresto, Merdioso, Colérico e Sabugosa. Com Drummond, seu companheiro de juventude, ele incendiou “de brincadeira” o porão de uma namorada, Eunice Vivacqua. O sobrinho Paulo Penido, também médico, hoje aposentado, com 62 anos, jura que quando o conheceu pensou que Nava fosse o mágico das festas. “Eu devia ter uns 5 anos e ele usava chapéu de tirolês e bigode desenhado”, descreveu.

Nava tinha fixação mórbida por defuntos e morte. Drummond foi um dos seis amigos que recebeu, nove anos antes da morte dele, uma carta suicida: “Desejo que meu cadáver seja embalsamado com uma grande injeção (dois litros) de formol na artéria femural ou, de preferência, carótida...” Foi também um dos muitos que, como Pablo Neruda, julgavam seu poema “O Defunto” o maior da língua portuguesa: “Meus amigos, tenham pena,/ Senão do morto, ao menos/ Dos dois sapatos do morto!/ Dos seus incríveis, patéticos/ Sapatos pretos de verniz.”

Ele passou seu último Natal, em 1983, conversando com o sobrinho, meio sério, meio brincando, sobre técnicas de suicídio. “Em mim, a depressão representa-se por um polvo que me estrangula e sufoca com seus oito tentáculos e me esvazia de corpo e mente com suas ventosas inumeráveis, “Nava escreveu num dos Cadernos. Não há melhor momento para debruçar-se sobre o “completo, lúdico, sério, imprevisível... Esse Pedro”, como o chamava Drummond.

Além dos Cadernos e da Obra Completa, os editores Claudio Giordano e Plinio Martins Filho querem editar a correspondência entre Mário de Andrade e Nava, depositada no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. São 25 cartas trocadas entre 1925 a 1944. No ano passado, os editores já lançaram as anotações desenhadas do Nava viajante em Viagem ao Egito, Jordânia e Israel. E a entrevista do sobrinho Paulo Penido sobre o tio, incluindo a seleção de textos e poemas, “O Bicho Urucutum”, título tirado de um poema de Nava.

As teses pululam. Sobre a avó e a mãe de Nava, “Mulheres Reveladas e Veladas”, de Ilma de Castro Barros e Salgado. Sobre a escritura, “A Escrita Frankestein”, de Pedro Nava, de Celina Fontenelle de Garcia. Sobre o tal casarão que ele e Drummond incendiaram quando jovens, “Salão Vivacqua”, de Eunice Vivacqua. Sobre a cozinha nos livros do glutão Nava e outros, “Cozinha do Arco-da-Velha”, por Nazareh Costa e outros. A comparação da escrita de Nava com a de Lúcio Cardoso, “De Próprio Punho”, de Marilia Rothier Cardoso.

Mas o melhor são as seis caixas depositadas na Casa de Rui Barbosa do Rio, onde se podem ver os originais dos livros em papel almaço datilografado de um lado e minuciosamente desenhado do outro. Há também objetos pessoais. A única ausência é uma cadeira que Nava inventou ser do fantasma. Tanto falou que quem dormisse perto da cadeira teria pesadelos que o sobrinho Paulo Penido começou a tê-los e descartou a cadeira. Foi para a casa de outro sobrinho e o casamento dele acabou. A cadeira foi parar na casa de uma irmã, mas uma barreira caiu em sua casa no Alto da Boa Vista. O objeto voltou à Casa de Rui Barbosa, mas a diretora Eliane Vasconcelos a despachou. Ela pode ser vista de perto no ateliê do editor Claudio Giordano, em Santo Amaro, por quem possuir a fina ironia de Nava e, claro, não tiver medo de fantasma.

 

 

AUTO-CONHECIMENTO
De memória em memória...

Se a anarquia formal dominou o cenário da prosa no Brasil nos anos 70 e 80, tudo indica, no entanto, que os nossos romancistas, levados por um desejo de reencontrar as raízes do gênero para readaptá-lo à realidade brasileira, guardam em comum a preocupação com o auto-conhecimento revelado pela experiência da escrita romanesca. Se existe um ponto de acordo entre a maioria dos nossos prosadores da época, este é a tendência ao memorialismo (a história de um clã) ou à autobiografia, tendo ambos como fim a conscientização política do leitor. Vide a febre dos livros-reportagem e das biografias, com sucesso no mercado editorial. Pedro Nava destacou-se e marcou com as suas memórias um rarefeito momento da Literatura no País. 

É claro que essa tendência não é nova dentro das letras brasileiras. Mas ela nunca foi tão explícita na dicção da prosa, deixando ainda mais abaladas as fronteiras estabelecidas pela crítica tradicional entre memória afetiva e fingimento, entre as rubricas memórias e romances. Sabemos, por exemplo, que a preocupação memorialística é um componente forte e definitivo dentro de nossa melhor prosa modernista.

A prosa de Nava, no entanto, estaria longe dos romances-reportagens ou das autobiografias dos ex-exilados. A narrativa de tipo autobiográfico já estava sendo, a partir da década de 60, a principal herança que os velhos modernistas legavam às gerações mais novas, e isso de Carlos Drummond de Andrade a Pedro Nava.

Há, no entanto, algumas diferenças básicas entre os textos tardios dos modernistas e os dos ex-exilados. “No caso dos modernistas, a ambição era recapturar uma experiência não só pessoal, como também do clã senhorial em que se inseria o indivíduo; nos jovens políticos, o relato descuida-se das relações familiares do narrador/personagem, centrando todo o interesse no desenvolvimento político do pequeno grupo marginal”, reflete o crítico e escritor Silviano Santiago.

Pedro Nava, em suas memórias - “Baú de Ossos”, “Balão Cativo”, “Beira Mar”, “Chão de Ferro”, “Galo das Trevas” e “O Círio Perfeito” - resgata a história de seu próprio clã, bem como de seu contexto social e político. Partindo do seu núcleo familiar, faz um panorama da sociedade brasileira no final do Século XIX e do Século XX. Sua obra, como registra a professora Celina Fontenele Garcia, autora de “A Escrita Frankenstein de Pedro Nava”, é gerada a partir de documentos, retratos, genealogias, retalhos da memória, histórias ouvidas e lidas, de livros lidos e apropriados, guardados nos arquivos da memória. Entre as “apropriações” está certamente “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust. Segundo Celina, Nava aprende, na última parte da obra de Proust - “O Tempo Redescoberto” - “que a elaboração de uma obra pode ser semelhante à construção de uma catedral. Em Proust, a amplidão da catedral era tamanha que se estenderia ao infinito: o escritor jamais terminaria algumas partes, as quais seriam apenas esboçadas”.

No seu último livro, na parte final, Proust consegue recuperar o tempo e atingir seu objetivo ao compreender a matéria da escrita e a sua relação com a obra de arte, enquanto Nava deixa a sua obra inacabada, ao mesmo tempo em que paradoxalmente encerra a narrativa com o “Foda-se e agora escute”, de “Círio Perfeito”.


Literatura e História

Há muito são estudadas perspectivas e convergências entre Literatura e História. Durante séculos, a Literatura fez da História um dos pilares da ficção. E nada melhor que as obras autobiográficas ou de memórias para atestar esta relação. Dentro da obra de Nava, a história brasileira é uma referência. Em “O Círio Perfeito” e “Galo das Trevas”, por exemplo, Nava rememora os primeiros passos da Revolução de 30. Em “Beira Mar”, ele retoma os anos 20 embalados pela revolução modernista paulista. Além de discorrer sobre a vida cultural brasileira da época, ele descreve em Beira Mar a relação do Brasil com a Europa após a Primeira Guerra Mundial, dentro dos primeiros movimentos relacionados a uma tomada de consciência da identidade brasileira.

Dentro de sua visão de mundo, segundo a professora Celina Garcia, Pedro Nava elabora para o leitor um conceito de história, “ponto essencial de sua visão de homem”. Para isso, parte do presente e utiliza a ironia para mascarar suas intenções. Faz afirmações sobre os fatos atuais, dizendo-se contra qualquer tipo de arbítrio, contra todo tipo de violência e a favor da liberdade. Faz seu julgamento a partir das próprias opiniões e emoções: violenta as pessoas ao transformá-las em personagens/marionetes, que manipula com a força de seu desejo de poder. Poder cuja realização torna-se possível pela escrita.

Nessa perspectiva, o que é verdade para Nava, quando declara que escreve, tendo presente o espírito da primeira geração modernista? Esse é o questionamento que o autor faz em “Beira Mar”, na tentativa de justificar a sua escrita, com a qual fará o seu ajuste de contas.

A cada novo volume, Nava volta às questões do papel do memorialista e do valor da verdade na escrita memorialística. Segundo afirmações suas, memorialismo é interpretação de fatos. Sua pergunta mais constante é: “como interpretar o acontecido, se ele tem relevância extrínseca e depende da reação piscológica de quem o recebe?” A verdade para Nava é relativa. O fato muda ou se altera dependendo de quem o vê. Como exemplo, recorre a “Macunaíma”, de Mário de Andrade. A mesma história pode ser uma rapsódia alegre - a obra de Mário - ou um filme duro - o filme de Joaquim Pedro de Andrade. Mas um fato é incontestável: o contexto histórico influi sobre as orientações historiográficas, e isso qualquer que seja o período estudado. O contexto de Mário ao escrever “Macunaíma” era bem diverso do de Joaquim Pedro ao filmar “Macunaíma”. O mesmo ocorre na obra naviana. Isso sem falar na visão particular de mundo de cada artista.

Segundo Celina Fontenele, Nava parece divertir-se quando coloca a questão da verdade, da sinceridade do memorialista. Ele chega a invocar Pilatos ao lavar as mãos diante das verdades dos outros. “O espelho pode refletir a verdade ou o que queremos passar por verdade: por isso ele, o espelho, é comparado a Pilatos e a Narciso”, escreve Celina em “A Escrita Frankenstein”.


Retalhos da memória

Celina Fontenele assinala que o duplo projeto de escrita e de vida de Pedro Nava foi que conferiu valor de obra de arte às suas memórias. Diz que o escritor levou seu projeto às últimas conseqüências, não se limitando a fazer a narração de sua vida ou do que com ela se relaciona, “mas exercita sua escrita frankenstein e apresenta um panorama da vida social brasileira desde o século XIX até 1980.”

Para Celina, esse projeto é baseado numa divisão binária e ao mesmo tempo na mistura de elementos de sua história e de seus sentimentos em relação às pessoas e aos acontecimentos: “Ceará e Minas, amor e ódio, ironia e ternura, liberdade e arbítrio, passado e presente, vida e morte, tempo e espaço, atração e medo, remédio e veneno, prisão e liberdade são algumas dessas dicotomias“.

— ‘Baú de Ossos’ é, assim, a recriação do passado e do presente, construídos pela memória de um Frankenstein que desarquiva fatos, lembranças e leituras, como nas metáforas da construção da obra empregada por Proust: metáforas da catedral, uma construção feita de pedras reajuntadas de cimento, secular, anônima; do vestido feito de retalhos de tecido, onde mal se enxergam as costuras, ou do livro, grande cemitério, onde mal se podem ler os nomes apagados na maioria dos túmulos. Assim é a construção de ‘Baú de Ossos’: construção de retalhos da memória, retalhos de tecidos de textos.


Nas malhas do tempo perdido

Nava recorreu a muitos artifícios para escrever sua obra. E não era para menos. Na infância, o autor viveu uma conjuntura familiar opressiva, numa Minas provinciana. E, na idade adulta, vivenciou duas ditaduras políticas - a de Getúlio Vargas, de 30 a 45, e a dos militares, de 64 a 84. Por isso, como aponta a professora Celina Fontenele, a sinceridade e a verdade em Nava são mascaradas através de um texto descontínuo e fragmentado. Consciente dos perigos da escrita - é mais difícil escrever sobre os vivos do que sobre os mortos -, Nava busca outras vozes, textos de amigos, narradores de outros livros. Nava nunca foge ao seu modelo - Marcel Proust - no estilo, no vocabulário, nas questões relativas ao tempo, à incomunicabilidade entre as pessoas, na solidão, no esquecimento e na morte.

A professora Celina Fontenele pontua várias relações entre as obras de Nava e de Proust - “a preferência pelos mesmos pintores (Boticelli e Giotto, por exemplo), pelos mesmos livros (‘As mil e uma noites’, ‘Athalie’ e ‘Phedré’), os mesmos escritores (Vilon, Balzac, Flaubert, Anatole France) e a repetição das mesmas palavras (caleidoscópio, tempo, memória, inconsciente, puzzle)”.

Como Proust, Nava recheia suas memórias de citações. Utiliza em demasia a intertextualidade - cita Balzac, Stendhal, Zola, Baudelaire, Verlaine, Machado de Assis, Oswald de Andrade, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, entre muitos outros. Como Proust, Pedro Nava escreve períodos longos, mistura presente, passado e futuro ao contar a genealogia de amigos, lembrar as coisas, falar de culinária, discutir questões como a revolução de 30, o movimento em favor do petróleo, uma bandeira de Monteiro Lobato, ou a revolução constitucionalista paulista. Lança mão da ironia e do sarcasmo quando fala dos médicos sem caráter, os profissionais marrons. Ou da Academia Nacional de Medicina. Entre um momento e outro da narrativa, Nava joga uma epígrafe.

A multiplicação dessa epígrafes na obra de Nava manifesta o grande arsenal de leituras e o domínio que o autor possui de todos os níveis de seu texto. Texto no qual se percebe um grande número de apropriações e intertextualizações. Nava nos dá, através das epígrafes, em primeiro lugar a definição do papel do escritor/leitor; só depois elas se tornam para nós, leitores, instruções de leitura.


O DUPLO

Nava jamais faz uma revelação sobre a sua intimidade. Entre os muitos artifícios do seu texto, chega a criar outro personagem, Egon, facilmente identificado com o próprio Nava-narrador.

Mas é através de Egon, no final de “O Círio Perfeito”, do Comendador, que Nava esconde a sua privacidade, principalmente no que se relaciona às questões amorosas e ao sexo. O desejo de privacidade e de construir uma imagem irretocável de si parece ser um dos motivos por que ele não assume nenhuma aventura amorosa em suas memórias. Em “Chão de Ferro”, atribui à personagem Egon, em sua primeira aparição na narrativa, a aventura com Maria, a criada das casas dos tios Ennes e Eugênia.

Em “Beira Mar”, Egon aparece novamente, para viver as aventuras mais livres nos cabarés ou para assumir o caso com uma prostituta, que o faz desaparecer do serviço do hospital durante uma semana. Ela será uma paciente em estado grave que Egon encontra tempos depois e que, em cena de extrema emoção, ajuda a morrer. Egon é também utilizado para as cenas mais comoventes e mais graves, como aquela em que espia o Comendador no cabaré da Olympia, fato que volta com importância fundamental no final de “O Círio Perfeito”: Nava/Egon é o voyeur que descobre o segredo do Comendador, como Proust/voyeur descobre o segredo de Charlus/Jupien, ao mesmo tempo em que o leitor /voyeur supõe descobrir, numa narrativa ambígua, o segredo do narrador/Egon.

Outro ponto a destacar na obra naveana é a sua narrativa, quando resgata, através da história dos mais velhos, um baú de lembranças. A professora Celina Fontenele Garcia atesta que Nava, quando recorre à experiência dos mais velhos, justifica sua narrativa benjaminiana e proustiana. “Na experiência, na evocação e na associação, o memorialista removeu seu baú de memórias e o passado de sua família, que junto a livros herdados, móveis e objetos vão constituir toda uma herança familiar concreta”, destaca.

Uma das personagens mais fascinantes das memórias de Nava é a personagem Rosa. A literatura popular é recontada por sua boca. Para Celina Fontenele Garcia, Rosa ocupa o lugar do narrador de Benjamin - do popular contador de histórias, que tudo sabia e podia. Foi através de Rosa que Nava recontou a fala e a ideologia dominante.

O narrador, segundo o crítico Walter Benjamim, entra na categoria dos professores e dos sábios. Ele dá conselho - não como autor de provérbios, mas como um verdadeiro sábio, aquele que fala para muitos. “Pois lhe é dado recorrer a toda uma vida. Uma vida, aliás, que abarca não só a própria experiência, mas também a dos outros. Àquilo que é mais próprio do narrador acrescenta-se também o que ele aprendeu ouvindo. Seu talento consiste em saber narrar sua vida; sua dignidade em narrá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a mecha de sua vida consumir-se integralmente no fogo brando de sua narrativa. Reside nisso o incomparável estado de ânimo que envolve o narrador. O narrador é a forma em que o Justo encontra a si mesmo”.

Dentro dessa concepção de Walter Benjamim, Nava, através da personagem Rosa ou quando recorre às experiências dos mais velhos, coloca no centro de sua obra uma questão maior - a da identidade brasileira através da literatura. As memórias, as autobiografias, as biografias compõem um expressivo pano de fundo histórico. E mais: dentro de um contexto de oralidade, reafirma os mitos e símbolos do processo civilizatório de determinada comunidade. É sabido que a tradição oral resgata o passado, uma rede tecida há anos e conservada pela memória dos mais velhos.

O estudioso dos gêneros do discurso Tzvetan Todorov, em sua “As Estruturas da Narrativa”, reafirma com uma frase-símbolo essa questão, ao analisar “As Mil e uma Noites”, uma das obras preferidas de Nava: “Inútil procurar a origem das narrativas no tempo. É o tempo que se origina nas narrativas”.


NO CONJUNTO DE OBRAS
O pacto da sinceridade de Nava

Mesmo com tantos artifícios, Pedro Nava reafirma em seu conjunto de obras o pacto de sinceridade com o leitor. Logo no início de “Baú de Ossos”, ele se define como “um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais”. Principalmente em “Baú de Ossos”, Nava reafirma em diversos pontos da narrativa seu pacto de sinceridade consigo mesmo e com os leitores. Em Nava, o narrador é o personagem principal. A perspectiva da narrativa é retrospectiva.

A questão da verdade, seja no romance, seja no memorialismo/autobiografia não deixa de ser polêmica. No romance, existe uma espécie de pacto fantasmagórico - o romance é uma ficção que remete a uma verdade de natureza humana, mas também como fantasmas reveladores do indivíduo. A autobiografia/memória, ao contrário, diante de um pacto firmado entre o autor e o leitor, não deixa duvidas sobre a identidade do autor.

Pedro Nava escreve em várias passagens de suas memórias sobre livros, artes plásticas, música, escultura. E traça apurados perfis de personalidades brasileiras. Em “O Círio Perfeito”, por exemplo, quando Egon/Nava aborda a obra de Afonso Arinos, coloca sua obra no terreno da biografia, história, lembrança e memória. E para Nava/Egon tudo isso pode ser literatura.

— Sim, é literatura quando escrita com a surpresa e o mistério da poesia. Com as qualidades da clareza e do estilo original. As discussões daquelas diferenças não conduzem a nada. Em Balzac e Proust, onde acabam os romancistas e começam os memorialistas de suas respectivas épocas? Leon Tolstoi, em “Guerra e Paz”, é autor do maior romance contemporâneo, ou da crônica prodigiosa da Europa Napoleônica (...) Na opinião do que fala, é ocioso discutir os limites da literatura. Literatura é tudo aquilo feito com bom estilo, tudo que é bem escrito e que é tocado, ainda que de leve, pela mão da poesia”.

Diante de seu pacto de sinceridade com o leitor, Nava, a partir da história de sua família, narra com maestria a trajetória de personalidades, reconstrói ruas, cidades - Fortaleza, Juiz de Fora, Belo Horizonte, Rio de Janeiro -, relembra marcas da história de seu País. Proust nunca é esquecido por Nava e o processo da teoria reminiscente da madelaine. Nava numa passagem de “O Círio Perfeito” escreve:

— Idéias, lembranças que tornam cada quina, cada pedaço dum móvel, duma casa, duma rua, duma praia - outra madelaine. Suprimi-los é tornar impossível seu encontro com o que detém cada cada como uma lembrança e fechar para sempre uma catadupa de poesia que é obrigada a não renascer porque jamais dos jamais será encontrada pelo único que neles depositara seu segredo de lembrar. Uma demolição, o aterro que fez a nova praia de Copacabana - suprimem assim milhares de coisas, interrompem, bloqueiam a memória. Há desse jeito um momento de guardar certos ambientes nos seus ínfimos detalhes - todos importantes porque qualquer unzinho deles poderá disparar o gatilho das recordações.

Dessa forma, Nava vai reconstruindo suas memórias. A partir, às vezes, de pequenos objetos. Assim como Proust introduz através da escrita uma radical relativação do mundo, dos seres, das situações, das paisagens. Para ele, o universo é verdadeiro para todos nós e diferente para cada um. Ao admitirem uma infinidade de pontos de vista, Proust e Nava redimensionam a realidade. Para ambos, a vida só vale por instantes - e o tempo perdido já não tem espaço na realidade. E somente a arte pode resgatar este tempo. Proust, em “O Tempo Redescoberto”, discorre em vários pontos da obra sobre o valor, o objetivo da arte - “O que importa desvendar, tornar claro, são os nossos sentimentos, nossas paixões, isto é, os sentimentos e paixões de todos”.

Tanto para Proust quanto para Nava, somente uma percepção grosseira e viciada coloca tudo no objeto, quando tudo está no espírito. Por isso, a obra de ambos foi forjada nas experiências passadas, reconstruídas também através das sensações - gustativas, auditivas, visuais. O texto de Nava encontra-se, como aponta o crítico Antônio Candido, em dois pólos: o memorialismo e a escrita romanesca.

Seja como for, constatamos que o importante é a condição humana refletida de forma poética, literária e estética no texto. A obra de Pedro Nava, como quer Antônio Candido, e diante de alguns postulados teóricos, passeia entre o memorialismo (numa tênue fronteira com a autobiografia) e o romance. E mais: em Nava a memória é, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Ao escrever a sua própria história, o autor relata a história da sociedade da qual participa. Novamente recorrendo à professora Celina Fontenele Garcia, mais importante que a semelhança formal é a reconstituição feita por Nava, à maneira de Proust, “do mundo social, político, literário e artístico do Brasil, nesses dois séculos de narrativa, na pintura dos costumes, na descrição de situações e de acontecimentos, e na recriação de tipos carregados com traços de humor, ironia, ódio ou inveja”.

Enquanto isso, no plano individual, Nava se apropria de Proust - da memória involuntária. Por isso, a busca da verdade da vida através do tempo, tanto em Nava quanto em Proust, é a maior obsessão. A obra naveana contém ingredientes do romance, do memorialismo e da autobiografia; algo difícil, às vezes, para os mais ortodoxos aceitarem. O conselho tecido na substância viva da experiência tem um nome: sabedoria.

E foi com sabedoria e arte que Nava resgatou a história da sua vida, do seu clã, da sua comunidade, do seu País. Tomando a memória por matéria-prima e inspiração, Pedro Nava eternizou fatias de tempo, para sempre salvas do efêmero por um relicário literário.

 

O SUICÍDIO
O irônico fim de Pedro Nava

Como alguém fascinado por memórias decide acabar com sua própria vida? Essa pergunta sobre o remate final da trajetória do escritor Pedro Nava é, ainda hoje, uma dúvida que não se desfaz entre os admiradores de sua obra. O trabalho do memorialista consiste, justamente, em dar continuidade a um tempo que parece ter ficado para trás. Entretanto, um olhar mais interessado pode perceber em seu suicídio uma certa cartada de mestre de Nava, que põe fim à incongruência em torno do ato. O enigma de sua morte acaba por mantê-lo vivo na memória de leitores, amigos e parentes.

O escritor tinha uma vida bastante tranqüila e, aos 80 anos, estava no auge do seu prestígio como escritor. Nava dedicou grande parte de sua vida ao ofício da medicina, só tendo se voltado exclusivamente para as letras já na maturidade. Seu primeiro livro, “Baú de Ossos”, é de 1972, quando estava aos 69 anos. Com efeito, em apenas 11 anos Pedro Nava produziu uma das mais poderosas obras da literatura brasileira.

Uma personalidade inquieta e multifacetada, é assim que muitos o definem. Sua morte inesperada, na noite do domingo 13 de maio de 1984, foi um verdadeiro choque. Os familiares negaram qualquer sinal de depressão, e a autópsia não detectou nenhuma doença grave que tivesse motivado o artista a precipitar sua hora final.

Nava suicidou-se aos 80 anos, a menos de um mês de fazer aniversário. A razão para que cometesse tal ato foi atribuída a um telefonema anônimo recebido naquela noite de domingo. O dia havia transcorrido normalmente na vida do casal Pedro e Antonieta, casados havia quatro décadas. Antes de o telefone tocar, eles se preparavam para assistir a uma entrevista do poeta Carlos Drummond de Andrade em um programa de televisão. Logo após falar ao telefone, Nava saiu de casa sem que ninguém percebesse.

Horas depois, o corpo do artista foi encontrado, com um tiro na cabeça, sob uma árvore a apenas 200 metros do prédio onde morava desde que se casou. O suicídio de Pedro Nava deixou amigos, leitores e admiradores atônitos com o mistério que sempre envolveu o incidente. Até hoje não se sabe, ao certo, o que determinou essa postura tão abrupta. O fato é que, de certa maneira, o suicídio contribuiu para que o artista ficasse imortalizado.

SAIBA MAIS
Obra completa

“Baú de Ossos”
“Balão Cativo”
“Chão de Ferro”
“Beira Mar”
“Galo das Trevas”
“Círio Perfeito”

Sobre Pedro Nava, a editora Ateliê ainda publicou:

- “Bicho Urucutum”, livro que contém entrevista de Paulo Penido, sobrinho de Nava. Na obra, Penido descreve sua convivência com o tio e esclarece pontos nebulosos na vida do autor. Ele também seleciona desenhos que retratam melhor quem foi Nava: o escritor, o cidadão, o médico, o esposo, o tio;

- “Viagem ao Egito, Jordânia e Israel”, reprodução do caderno de anotações que Nava fez quando viajou para o Oriente. Nele, o escritor faz observações agudas dos costumes daquelas sociedades, além de caricaturas e desenhos;

- “Cadernos 1 e 2”, edição fac-símille dos cadernos de Pedro Nava arquivados na Casa Rui Barbosa;

- “Anfiteatro”, livro em em Paulo Penido seleciona textos das memórias e artigos de jornais e revistas que retratam Pedro Nava como médico remautologista, que se impunha e brigava por suas idéias. 


José Anderson Sandes é editor do Caderno 3 do Diário do Nordeste.

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14.4.2007