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Jorge Medauar


 

Viagem


Era na sombra
Que eu te queria
No grão noturno
Onde é gerada
A solidão
(Esta dos vivos
Que já provei
Na tua boca).

Era no sono
Que eu te queria
Para cobrir-te
Com a algidez
Da estrela morta
Que me alumia.

Era na morte
Que eu te queria
Além da cal
Além do húmus
Tão infiltrados
E diluídos
Para a substância
Da jovem folha
Do amargo fruto.

Os teus cabelos
Teus olhos vivos
As tuas mãos
E a tua boca
Em mim (tão mortos)
Nesta viagem
Para o silêncio
Subterrâneo
Donde esta vida
Vive e renasce
Como uma flor.

Era na morte
Já sem mistério.
Era na morte
Já sem segredo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Jorge Medauar


 

Por ser o que não sou é que padeço


Por ser o que não sou é que padeço.
Padeço um existir quase alternado
Entre tudo o que tenho e não mereço.
E o que mereço, nunca me foi dado.

Assim, o que não digo, reconheço
Ser o que mais por mim foi meditado.
O que revelo é paga - apenas preço
Do que também a mim foi ocultado.

Se esse existir se parte entre dois gumes
Posso ver pela noite vaga-lumes
E dizer que são luzes nos caminhos.

Maldito o que me vê como não sou:
Podendo dar-lhe mel, apenas dou,
Ocultos, entre pétalas, espinhos.

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Luís Antonio Cajazeira Ramos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Jorge Medauar


 

O que foste, serás na hora que vem


O que foste, serás na hora que vem,
Que já não te verá como eras ontem,
Assim como serei novo, sem ser
Em nada diferente do que fui.

Este amor que ora provo (tão amargo),
Embora se desfaça no amanhã,
Fluirá para sempre um amargor...
É o resíduo que fica, a que chamamos

Saudade, que saudade é tão somente
O que fomos, sem ter porém aquilo
Que nos falta, e que tanto tivemos.

Assim seremos ambos, quando o tempo
Nos levar para longe, reduzidos
Naquilo que tivemos, sem perdê-lo.

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Jorge Medauar


 

Ter na mão essa glória, entardecida


Ter na mão essa glória, entardecida
Num coágulo de sangue, outrora vivo,
Que fazer com esse resto de vida
Tão generosa que me fez cativo?

Parei. Mas sinto o gosto da partida.
Há sol no dia, mas o olhar derivo
E é na luz que descubro, reduzida,
A semente da sombra onde convivo.

Esfarelo nas mãos o doce frio
Que há-de cobrir-me como os teus cabelos.
Eis aqui minha glória: água de rio

Correndo para além dos meus desvelos.
Aqui me deito. Tenho um calafrio
De ausência e um beijo. Só. E vou perdê-los...

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Jorge Tufic

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Jorge Medauar



Este partir tão cedo para o mar


Este partir tão cedo para o mar
Onde os barcos se agitam sob o vento
Que do sudeste vem como sonâmbulo
Entre ondas e penedos solitários.

Quando te foste, esperei-te em vão
Nas anfracturas deste mar perdido.
As medusas chegavam nas espumas
E se perdiam pela praia branca.

Naveguei oceanos de tristeza
Buscando o rumo que se desfazia
No horizonte de sombras e de pedras

Hoje soluço nesse barco velho
E não sei se terei novas correntes
Que me levem ao golfo onde repousas.

 
 

 

 

Valdir Rocha, Fui eu

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Nei Duclós

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Jorge Medauar


 

Foi um adormecer


Foi um adormecer de impressentida
Onda se desfazendo em minhas pálpebras.
Abriu-se a madrepérola: meu fôlego
Pôde invadir, queimando, a virgem angra.

Há-de ficar por entre dunas, há-de
Transformar-se em aragem, a soprar
A brancura de sal das tuas margens
Onde fiquei de bruços como um bote.

Tuas algas pegavam minhas mãos
Para feri-las nos penedos duros
Batidos das marés que refluíam

Salsugem de meus lábios. Eram seios
E neles me feri. Depois, o adormecer
Cobriu-me como um morto sob espumas.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Ledo Ivo