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Luiz Paulo Santana


 

Felino


Removo o sólido corpo
de macilentas carnes compactadas
intumescidos cinza e azul sem brilho.


A máscara mortuária inacabada:
entreaberta a boca,
semicerrados olhos fixos no nada
o ricto me assusta.


Arrasto-o com cuidado pela escada
até a sala, onde me sento
a retomar o fôlego.


Estranha madrugada. O abajur aceso
o tom de rosa, o vaso sobre a mesa
deslocada
E o corpo ainda mais morto que os móveis
e as coisas nesta sala.


A cova está aberta e a grama preparada.


O baque é fundo, profundo,
massa com massa,
retorna ao pó, à lama, ninguém à vista,
a vizinhança dorme, a luz do poste
                          ilude,
sem mais consorte, e este ensaio
                          finda.


Reponho a grama, planto margaridas,
um pé de rosas brancas, que alegria
será quando jardim em réplica florada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

Luiz Paulo Santana


 

O velho


O velho que se apresenta
à minha porta
(esse portal que também é passagem
para o dentro e para o fora)
o velho em cuja testa o seu suor já é
                     verniz do tempo,
com o seu chapéu de palha a coroar-se,
sua camisa rota, o corrião puído,
as calças a altura das canelas
tisnadas e lustrosas como o cabo
                          de uma enxada,
os pés da cor do chão, rachados
como o chão em que pisara,
todo ele tempo arrefecido, gasto,
carga de tempo nestes gestos largos,


o velho que se senta na banqueta
         e seu silêncio troa,
em cujas mãos crestadas o prato com comida
se confunde com o que sempre fora,
humanidade negada e no entanto vívida,
é hoje um ícone na minha sala:
uma estatueta modelar de argila,
uma lição de tempo e de poesia
que jamais se cala,
a redução da forma à sua essência,
o barro de que somos feitos,
e mais nada.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Luiz Paulo Santana


 

Desandar


Caneta, bloco, livros, cinzeiro,
os objetos estão aqui,
estão inertes em sua postura
de objetos em si.


Nada os reúne, nada os convoca
para uma troca existencial.
Diante deles estou perplexo
mudo, deflexo, convencional.


Não há perfumes, não há naufrágios,
nada me toma nem me libera
e os objetos repousam tácitos,
tudo é silêncio, nada se altera.


Cansado e roto recolho antenas
deito-me às penas de não dormir.
Vejo carneiros, conto às centenas,
todos a me balir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Luiz Paulo Santana


 

— PD - A poesia serve para alguma coisa?

— Dalila Teles Veras - Para nada, além de tornar o
homem um pouco mais humano.


A poesia serve para alguma coisa?


A serventia das coisas
está nelas mesmas
de se fazerem coisas
que podem ser feitas.


A serventia das coisas
está noutras coisas
que com as coisas primeiras
possamos fazer.


A serventia das coisas
está na existência
de quem as inventa
e de quem as maneja.


A serventia das coisas
em sentido amplo
independe de serem
coisas utilitárias.


A serventia das coisas
não distingue entre aquelas
coisas objetivas
ou coisas abstratas.


Assim, sendo as coisas
todas inventadas,
e se o seu inventor
sobre todas as coisas


inventa uma coisa chamada
poesia, que faz destas
tantas, coisas reinventadas,
coisas redivivas,


então eu diria
brindando à poeta Dalila
que a poesia serve
para todas as coisas.


E eu diria mais
sobre toda a poesia
que de tal serventia
dependem tais coisas.
 

 

Nota: A pergunta, em negrito: Entrevista a cargo de
Rodrigo de Souza Leão com a poeta Dalila Teles Veras

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

Luiz Paulo Santana


 

Caro Poema:
Removo sólidas palavras.
Quem sabe me pespontes
como pérola,
na ponta da língua,
(um “piercing”),
a palavra que nunca foi dita,
que sendo nova, ao menos inaudita,
faça da vida fonte renovada.


Mas encontro palavras sob palavras.
São escombros de tantas construções,
que embora removidos lentamente
nada desconstroem.


Devo dar novos nomes a tantas
velhas palavras?


Poderia obter outra textura,
forma, som, envergadura,
e não seria ainda
a mesma casa?


Palavras removidas não desaparecem,
são sólidas,
como um tijolo quebrado ou um caco de telha,
(ninguém diz que é caco de tijolo,
diz-se que é meio ou pedaço),
ao mesmo tempo em que ouço, é um caco de vidro,
é um caco de louça, é um caco de gente,
(cada palavra com seu sortilégio)
esse último caco surge e surpreende,
faz deter a mão,
senão que menos sólida a palavra gente
põe-se entre os cacos sem indulgência
enquanto caco em meio à cacaria,
mas tudo o que é caco temo que seja
caco de gente.


Palavras removidas se deslocam
na sua acepção:
a qualidade de um caco é decorrente
da coisa inteira em que se compreende: gente,
telha, vidro, um caco não é nada
sem esse pertence.


Palavras removidas ganham movimento,
criando o tempo e toda relação:
pedaço de tijolo que é tijolo e é barro,
tijolo que é parede,
caco de telha, que é telha e é calor,
telha que é telhado,
pedra que é pedra e é suor e serve ao alicerce,
caco de gente, que é gente e a tudo serve,
servindo-se a si mesma e em cada coisa
e, enfim, tudo converge:
poema, sólida casa de palavras removidas;
casa, habitação de gente e de palavras sólidas;
palavra: pau pra toda obra.


Poema, poema,
tua matéria prima está em toda a parte:
o mundo é sólido e palavra,
o que não é sólido é movimento e palavra,
o que não é sólido nem movimento é... palavra.
Poema, casa de palavras removidas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

Luiz Paulo Santana


 

Saideira


A pressa de ir-me agora,
A força do ficar,
A relação da inércia
Com a dinâmica do olhar,


Na impressão de ir-me,
Na expressão de estar,
Nas formas imprecisas
De me demonstrar,


Agora que fiquei,
E ao mesmo tempo vou,
Agora que já sei
Que vou, e que fiquei,
Não sei me preocupar.

 

 

 

 

 

 

19.05.2006