Laurindo Rabelo
O gênio e a morte
I
Sobre as asas de fogo
Da águia ardente que no espaço voa,
Saudado pelo cântico das aves,
De flores perfumado,
Entre nuvens de púrpura - risonho
Nos céus assoma o dia.
O exército dos astros afugentam
Seus coruscantes raios;
E passeia garboso pelo espaço,
Como triunfador pela campina,
Donde expulsara as hostes inimigas.
Lá no meio da arena do triunfo,
Como um olho de Deus devassa o mundo:
As plantas que a manhã de vida enchera,
Com seu intenso ardor, bárbaro cresta -
Qual jovem indiscreto, em loucos dias
De vulcânica idade,
No coração desseca, mata, extingue
Sentimentos que a infância alimentara...
Da glória ao grau supremo
Subiste, ó rei; humilha-te - vassalo
Também és do Senhor - descer te cumpre.
Ei-lo que abdicou - Já vai tardio
Pela estrada do ocaso, e já tristonha
Lhe escorre pelo rosto a luz enferma!
Sobre leito de chumbo se reclina, -
E, no momento extremo,
Seus olhos chamejantes
Extremo olhar saudoso à terra volvem.
Último arranco!... Cai desfalecido
Nos braços do crepúsculo.
Morreu o dia; - e a noite piedosa
Em seu manto de dó lhe envolve o túmulo.
II
Que é feito, ó Primavera,
Das frescas odoríferas grinaldas
Que a fronte te adornavam?
Murchas caíram; jazem esmagadas
Aos pés de gelo do caduco inverno!
Os pomos sazonados,
Que pendiam das árvores frondosas,
Orgulho e pompa dos alegres prados,
Ei-los dispersos pelo chão molhado
Do pranto que em tristeza o céu derrama,
Ao ver-lhe a fronte merencória e pálida,
Debruçada do cume das montanhas,
Com lágrimas saudar do sol os raios,
Qual mísero vivente, a quem torturam
As galas da alegria.
Beijada pelos zéfiros - c'roada
De viçosas capelas, - pelos bosques,
Jardins, e prados, e alcantis dos montes,
Eu a vi passear; - vi toda a terra
De flores se cobrir, trajar verduras,
Ao toque de seus passos;
Vi... mas mudou-se da estação ridente
O quadro encantador; - e já bramidos
Dos desatados temporais proclamam -
Que é morta a Primavera.
III
Morrem as estações, morrem os tempos!
Morrem os dias, como as noites morrem:
Também acaba o homem -
E o Anjo do extermínio, desdenhoso,
Encara estultas pompas, que distinguem
O servo do senhor, o rei dos povos;
E fazendo correr-lhes pelas frontes
A rasoura da morte, traça o nível.
Que cabe aos homens todos.
Tudo no mundo expira:
Só sobranceiro à lousa o Gênio altivo
Nos vôos acompanha a eternidade!
Soberbo em seu poder persegue a morte,
E consegue vencê-la,
Mil vítimas lhe arranca,
E da imortalidade nos altares
As mostra coroadas.
Em vão do manto esquálido
A bárbara sacode o voraz verme
No cadáver do sábio;
Lá desce o Gênio intrépido,
Em vão as frias cinzas lhe arremessa
Nos abismos do olvido;
E, ao lume da lanterna da memória,
Ajunta as cinzas, sopra o fogo santo
Da santa poesia,
O sábio ressuscita e pasma o mundo!
IV
Beleza, doce engano,
Mimo, que o tempo deu, que o tempo acaba;
Encantadora nuvem, mas efêmera,
Que da cor do pudor n'os céus vagueia,
Qual suspiro de amor que aos céus se eleva;
Beijada pelo sol, tímida aurora,
Também fenecerás! Trevas do túmulo
Aos lumes da existência
Sucederão funéreas;
Serão consócios teus mudo silêncio,
Sombras, escuridão, vermes, e terra.
Lestes, belas? Tremeis? Magos encantos
Baceia a mão do tempo, arrasa a campa:
Porém do Gênio à voz - curva-se o tempo:
Quebra o sepulcro a laje aos pés do Gênio.
Não!... de todo não morre uma beleza
De um Gênio idolatrada;
Que a luz brilhante, que lhe anima os carmes
O luzento fanal, que o ilumina
Nas borrascas da vida,
Jamais, jamais se apaga.
V
Cidades destruídas,
Impérios derrocados,
Oh! quantas, quantas vezes
O Gênio, qual brandão, vos esclarece
As pálidas ruínas,
Lê nelas vossa glória, e vos confia
As trombetas da fama!...
Se foge a tempestade,
Se as estações revivem,
Se as noites reproduzem novos dias,
E os dias novas noites,
Servos obedecendo à voz do Eterno,
Mensageiro do Eterno o Gênio exerce
Igual poder na terra!... A Natureza,
No meio das procelas,
Se a voz lhe escuta, abandonando as fúrias,
Dissipando de um sopro atroz horrores,
Surge risonha, como à voz divina,
Saiu do caos informe, - encantadora,
Toda nua, trazendo por adornos
Nos seios o Verão, nas mãos o Outono:
Nos cabelos prendendo a Primavera,
Por chapim de cristal calçando o Inverno.
Do Gênio ouvindo o canto,
Remoçam-se as idades,
Os mortos dos sepulcros se levantam,
E vivem nova vida
Dos homens na memória.
VI
Ó Anjo das ruínas,
Voa ao teu reino, que é tarefa inútil
Extinguir o que é belo no universo,
Enquanto o lume santo
D'inspiração celeste
Mentes iluminar predestinadas.
Aos sons miraculosos
D'harpa do Gênio ressurgindo ovantes
O saber, a virtude,
Meigos encantos de gentil beleza,
Hão de zombar de ti - quebrar-te o sólio,
Calcar-te aos pés a fronte.
VII
Como o gemer de vaga, que se quebra
No sopé do rochedo;
Como ribombo de trovão, que rola
Pelos longes do espaço,
Ou eco de clarim perdido em ermos,
Do Gênio a voz ecoa no infinito,
E, por ela acordada,
O semblante solene
Ergue para saudá-lo a Eternidade,
Lá soa o bronze, solfejando a nota
Da alpercata da morte sobre as campas.
O sol está no ocaso!!!
O Gênio ansioso espera
O sinal de seu vôo ao Ser Supremo.
Vede-lhe o pensamento: - é uma lira,
Donde os dedos da Fé extraem destros
Melífluos sons divinos -
São os salmos do gênio agonizante:
E a última das notas é sua alma,
Que se perde no céu! - De lá, ó morte,
Sorrindo a teu poder te desafia
Pelo raio divino armada a destra,
Dos céus abroquelado;
Enquanto cá na terra,
Sarcasmo a teu poder, seu nome troa,
Como um brado de glória, enchendo o mundo
|