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Marigê Quirino Marchini


 

"Sonetos Noturnos", n. VIII (1984)


Nos casarões fechados, em seu ar
de mistérios e sombra acontecido,
no místico sinal do envelhecido,
lembranças, as gavetas e o arsenal


que o tempo trovoou por seu suster
de maravilhas, só cintilamento,
e do que conservou para morrer,
tão devagar chovido, o sentimento,


fica a pergunta de quem olha fora
essas graves janelas tão fechadas
por rarefeito orgulho no seu ar


desfolhado de rosa ou jasminzal,
pois não se vê se a vida é tal retrato
acontecido, ou nuvem do irreal.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Álvaro Pecheco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

"Os lírios azuis"


Os lírios azuis
florescerão nas fendas dos luares
e seus perfis serão portas
onde os duendes chamarão
a ronda mágica
das clareiras cintilantes.


Hansel e Gretel passearão em minha infância.
 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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albano Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

Enunciação encantatória


Flor-da-cachoeira, flor-d'água, flor-da-esperança
flor-da-imperatriz, flor-da-noite, flor-da-paixão
flor-da-páscoa, flor-da-quaresma, flor-da-redenção
flor-das-almas, flor-das-pedras, flor-da-verdade
 


flor-de-abril, flor-de-amor, flor-de-amores
flor-de-babado, flor-de-babeiro, flor-de-baile
flor-de-baunilha, flor-de-besouro, flor-de-caboclo
flor-de-cal, flor-de-cardeal, flor-de-carnaval
 


flor-de-cera, flor-de-chagas, flor-de-cobra
flor-de-couro, flor-de-contas, flor-de-coral
flor-de-duas-esporas, flor-de-gelo
 


flor-de-índio, flor-de-jesus
flor-de-lã, flor-de-lis, flor-de-madeira
flor-de-maio, flor-de-mico, flor-de-natal.
 



- IV -
 


Flor-de-maio, flor-de-padre, flor-de-papagaio
flor-de-passarinho, flor-de-pau, flor-de-pérolas
flor-de-sangue, flor-de-são-joão, flor-de-são-miguel
flor-de-sapo, flor-de-seda, flor-de-sola
 


flor-de-trombeta, flor-de-vaca, flor-de-viúva
flor-do-campo, flor-do-céu, flor-do-espírito-santo
flor-do-imperador, flor-do-monturo, flor-do-natal
flor-do-norte, flor-dos-amores, flor-dos-formigueiros
 


flor-santa, flor-seráfica, flor-tigre, flor
flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor
flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor
 


flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor
flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor, flor
flor, flor, flor, flor, flor, flor, flores, flores.
 

 


- V -


Beija-flor de vôo muito veloz e que
se alimenta de néctar das flores
e de insetos minúsculos, colibri,
chupa-flor, pica-flor, chupa-mel,
 


cuitelo, guanambi, guinumbi, guainumbi,
beija-flor-d'água, bico-de-agulha,
beija-flor-da-mata, ariramba-da-mata-virgem,
beija-flor-do-mato, do S.O. do Brasil,
 


de dorso verde-dourado, penas marginadas
de amarelo, estria pardo-avermelhada acima
e por trás dos olhos, prolongando-se no pescoço,
 


mancha preta atrás dos olhos e o meio da garganta
e o abdome negros e orlados de branco
beija-flor-grande, bico-de-agulha, beija-flor-pardo.
 



- VI -
 


Beija-flor vermelho do N. e L. da América do Sul
de cabeça, cauda e coberteiras inferiores da cauda
vermelhos, com brilho vivo, dorso verde-escuro,
garganta cor de cobre com tons dourados
 


e abdome escuro. A fêmea tem colorido
menos acentuado. Beija-flor-grande, beija-
flor-pardo, beija-flor, beija-flor, beija-flor
rhanphodon naevius, crysolampis elatus, beija-flor
 


por ser primavera e por seres pássaro e flor
eu te nomeio também embaixador e te prefiro
em meu ombro em meu dorso em meu canto,
 


mais do que todas as palavras escolhidas
o teu mel derramado sobre este livro
faça-o dourado e doce e livre e voador.
 



- VII -
 


Coleira-de-sapé, coleira-do-brejo, dorso, retrizes
e coberteiras da cauda pardo-amareladas, cabeça, nuca
rêmiges e cauda negras, garganta branca com colar negro
separando-a do peito e fronte com duas manchinhas brancas
 


coleirinha do sul do País até
a margem direita do baixo Amazonas
coloração cinza, fronte e parte anterior
do vértice enegrecidos, orelhas pretas
 


faces brancas, garganta branca com
uma faixa preta no meio, abdome branco
com uma fita preta atravessando
 


o peito e flancos cinzentos, coleira
virada, coleiro-da-baía, coleiro-da-serra,
coleiro-do-sapé, coleiro-do-brejo, coleiro-pardinho.
 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

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Rubens Ricupero

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

Sonetos do imperfeito


- I -


Nuns altos patamares me encontrava
a contemplar por prados florescentes
perfeito Amor, que embaixo lá brincava,
num vau de rio e sol, ambos candentes;


e enquanto a face em mãos eu descansava,
e desejando não me olhasse Amor,
num riso cristalino me chamando
ele atravessa em mim seu dardo em flor.


Florida estou então, e repartida
em duas que se alongam, distanciam:
uma nos patamares pensa e escreve,


outra, suave ardor se vê, e dá
o amor de Amor em prados tão solares,
partida em riso cristalino e breve.



- III -


Viver assim me acalma e aterroriza:
uma se faz silêncio, a outra grita,
uma se erguendo a outra tomba morta,
uma está salva, a outra enferma viva.


E duas almas Amor faz e eterniza;
enquanto uma nos altos patamares
estuda, lê, trabalha e já agoniza,
outra, louca e serena em seus cantares,


greco-romana em dias preteridos,
sobre as sebes gramadas dos sentidos
reparte a paz em ti, para aprenderes:


a vida é curta espera para a morte,
os sentidos são fontes dos prazeres
- tempo é o Amor, que ri e arromba a sorte.



- IV -


Não sei de mim o que será eterno
depois que Amor deixar seu reino claro
e a outros indo me fizer inverno,
este que faz de flores gelo amaro.


Uma se vai e a outra já retorna,
almas que têm em mim o seu alento;
meu reinado, de paz em guerra, as torna
irmãs gêmeas em mútuo desalento.


E quando (eu já sozinha) tu tiveres
comigo, Amor, só o laço da lembrança,
e onde em longos encontros estiveres,


lembra também que um dia me floriste
- e o que fizeste um dia em tua cobrança
paga os juros na morte que assistires.
 

 

 

Culpa

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Ascendino Leite

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

República celeste da poesia


Aquática e translúcida Veneza,
arquétipo insulano, passional,
do Adriático a núbil Dogaresa,
lunissolar pintura do irreal,


em ti me construindo astral poema
de celestial cidade em tua finura,
por ele te habitar, Amor me emblema
com centelhas de íntima ternura,


põe em Veneza e em mim a geometria
de uns altos picos, recendendo a lume,
loura noite que náutica alumia,


por águas de salinas violetas
fosforece dos sonhos o cardume,
fixa a cidade, giram-me os planetas.



- III -


Água e eu, este dom, dádiva inteira
como Veneza, tu, Domus antiga,
se rodeamos, sonho, a cumeeira
silvestre nos perfuma a lua cheia.


O luar de Vivaldi, mensageiro,
atravessando o céu em suas estrelas
e o seu caminho é o mesmo que o de Amor,
angelical paixão é a lua cheia.


O luar de Vivaldi e cancioneiros
d'amore é demorado o seu perfume,
silvestre é o deslizar dos gondoleiros,


silvestre a doação, que faço inteira,
como Laguna e Golfo e doce lume,
à angelical paixão da lua cheia.



- VI -


Em arquipélago, amoráveis ilhas,
raia Veneza em água, alacridade,
cortam seus pulsos, lendas, maravilhas
de um latejar de sol e mocidade.


De palavras celeste viração
agita lentamente os seus canais,
e tudo flui em ondas e canção,
perpassa em flauta o vento seus murais.


Enquanto um celestial texto eu vou lendo,
reflexos n'água e lírica poesia,
já vai Amor em brasa me escrevendo


e mais já fere Amor em seus enganos,
com sua perfídia, fogo e maresia,
do que a gentil cidade em desenganos.
 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

Sonetos venezianos


Melhora Amor, sorrindo, amor que tenho:
deste resto salino de lembranças
forma lagunas e o molhado lenho,
gôndolas que antecipam as bonanças;


do som e acorde, cores e aláude,
faz um quarteto de perfeita dor,
por onde, navegando em beatitude
de Veneza, em acústico langor


as vibrações nos ares geram paz,
vitrais em claridade bizantina
- abre-se o sol em círculos, refaz,


de lembranças salinas, de saudade,
Amor se espelha n'água cristalina,
dourados picos, rútila cidade.
 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Myriam Fraga