Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

Sonetos Noturnos


- III -


Outono lento em claras ventanias
prepara estas paisagens para a chuva,
de um silêncio aromal os foscos dias
- e deixamos o olhar, o mosto e a uva


madurarem seu claro vinho ameno,
o que preserve o fogo em sua lareira,
fetiche das luzernas no sereno,
o amor, do precipício à curta beira.


Os beirais das aldeias se anunciam
sem os murmúreos cantos do verão
e o seu vizinho inverno propiciam


- enche a espera de sombras o salão;
tão brando este calor se faz em mim
(leve perpassa o aroma em seu jardim).



- V -


Vertem seus suores líquidas lembranças
malvas, violetas de variáveis cores
sobre o tanque, peixes, limo e os rigores
da imutável água no seu ar de estrelas:


cabisbaixos olhos contam suas perdas.
Na alameda em frutos o acre persistente
e o medo de erguê-la viva sobre as quedas
onde brilha um sol noturno suavemente;


líquidas lembranças, tanque, violetas,
malvas em escamas nadam sobre o limo,
e era uma menina e a caça às borboletas,


e era uma paisagem e eram seus rumores,
já perdidos tempos, já desfeitas tranças,
vertem violetas vívidos suores.



- VII -


Esse arfar negro denso e misterioso
das janelas abertas para dentro,
onde o ar seco estala e se incendeia
na poeira dos úmidos incensos,


é um ar negro e de pálidas lembranças
que de interiores faz a sombra escura,
que sequer lá de fora se imagina,
ser, e que por ser dentro se inaugura


em sombria, opalíssima tristeza
e que sequer lá fora se imagina,
pensa-se que é de noite, e é de dia


e pensa-se que é triste o triste ser
olhando lá de dentro o claro escuro
- e se existe é por sombra e por não-ser.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana

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Ivan, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

A partida


Partimos sempre, deste nada ao nada,
para no entanto em tudo acreditar:
praias que nos esperam na bonança,
no dom da volta leve de existir.


E quatro signos são os elementos,
para nós a medida de outros seres:
água e ar, fogo e terra, um em nós há,
tal se os outros em outros se encontrassem.


Quantas vezes no mar somos a terra,
ou fogo ou ar. E às vezes, ao contrário,
em nossa terra o fogo é ar ou mar;


e a praia a volta o nada já é haver
se temos a medida da existência,
o mar que nos espera em outro ser


- ou fogo ou ar ou terra, o que nos falte.
 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), The Ancient of Days

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Paulo Bomfim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

Visão


Archotes sobre o mar, rude escalada,
o lais de guia alcança a procelária,
Nevoeiro marinho azul Santelmo,
rum no canto escarlate em nau lunária.


Piratas, signos já redescobertos,
um papagaio ébrio no mar acre
- e falam nele seus marinhos deuses,
na língua exata o incompreensível lacre.


Contigo irei à noite, meu irmão,
Outros irão ao mar. Outros irão,
Rumo às pontas e aos nervos das estrelas


juntos, menina e seu menino embarcam
no cais. Além o mar laça primeiro
Santelmo azul, piratas, nevoeiro
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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Foed Castro Chammas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

Da tripulação


Os tripulantes são meus sentimentos
de um azul andantino nestes mares,
na alternância das vagas em lamentos,
Leva o prumo das linhas estelares


os olhos do abissal ao infinito,
o que já não aquieta o coração:
antes o traz por música celeste,
pelo surdo marulho dos abismos


suspenso em si, no mar, no precipício.
E se um silêncio cresce no intervalo
de um suspiro, das ondas, tempestade,


revoltam-se do ser as ressonâncias,
pedem ao céu o eterno de outros mares,
perdem no mar o efêmero dos céus.
 

 

 

Michelangelo, Pietá

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Natércia Campos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

Viagem


Num pressentir sem bússola e sem âncora
porões, navio fantasma, veios d'água,
negra escotilha, rostos, peixes, luas,
bebem do céu o azul já mareado;


dias de sal trabalham este convés,
içar de vela, albujarrona, mastros,
fiel prendendo em austro vento além
de horizontes, as pérfidas paisagens,


e um capitão Ahab desse sonho,
monstro e dono feroz dessa procura,
ódio e amor, caçado e caçador,


nos profundos corais do cachalote
a bússola a buscar o pólo norte
a âncora a fincar chão nesta loucura
 

 

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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José Peixoto Jr

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Marigê Quirino Marchini


 

No convés


Onírico senhor de mar e guerra,
no convés a aguardar, a desejar
o dia. A luz do dia azul sirene
do século que abrande outro viver.


Não importam cordames nem cardumes,
água límpida ou fogo que o alaga,
se é verdade ou delírio o que ele enxerga;
em vez de um só corsário, submarinos.


Sabendo haver a paz e muitas guerras
por outros quês, no entanto, desespera:
o que fazer se a sorte em vão o aguarda?


Num segundo de dúvida espumante
não sente que o destino o assinala,
qual outro capitão, o cachalote.
 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, David, detalhe

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Caio Porfírio Carneiro