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Ronaldo Costa Fernandes


 

A arte do corpo


Numa dessas Bienais de São Paulo,
vi de longe, sozinho, passarinho,
o poeta Mário Quintana.

Durante anos a imagem – peixe azul – me perseguiu.
Por fim, entendi a recorrência:

Mário Quintana era móbile,
magra body-art,
andar performático,
existência conceitual,
em seus parangolés de ossos e calvícies,
em sua lígias & papes
de velho movido a arame,
seu corpo virtual,
ali, entre os cimentos desarmados do Ibirapuera.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes


 

Noite, pura noite


Não há carteiros na noite.

Feito só de cabeça,
corpo de luz invertebrada,
o sinal de trânsito
pende gota gorda de vermelho.
As putas dão prazer automóvel.
Na numismática das janelas
o único olho aceso do prédio não pisca.
A noite não tem pés só cabeça
o travesseiro feito de vozes interiores,
fronhas inconscientes,
vigílias sonâmbulas.
Inventar a noite:
abolir sua mania de enigma,
a substância silhueta,
eliminar o hábito de sombra.
 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

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Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes


 

O vestido de ferro


Tudo teu é de ferro:
bolsa, armário e escova de dente.
Teu vestido de betume
brilha um céu de gesso e espessura.

Os sapatos caminham léguas de carmim.

As lixas de unha limam a aspereza
dos amores fugidios,
estes amores de lama e rosa,
que enferrujam na lixa do tempo.

Os carretéis de linha
não bordam a vida,
é de náilon tua costura do medo.

E, por fim, teus perfumes
amargam a beleza fescenina
de nunca atingir o clímax
ou preferir a rigidez do aroma.
 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

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Dimas Macedo

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes


 

O animal barbado


Este animal que se rasura
como quem raspa a orelha do porco
para a feijoada de fim de semana,
este animal feroz e matutino,
como um auto-retrato,
com seus olhos 3 x 4 ,
observa a paisagem da janela
e do outro lado do vidro
está ele mesmo,
é ele a paisagem que envelhece
cada vez que a freqüenta.
Este homem ao espelho,
gilete de martírios e angústias violáceas,
barbeia seu minuto e sua morte,
exasperada e afiada servidão,
a consciência espumosa da pequena guilhotina.
 

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

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Jorge Tufic

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Judgment of Solomon

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes


 

Anatomia do pó


I

Essa invisibilidade me corrompe.
A que espécie de tédio pertence o pó?

II

O grão do pó se materializa
em camadas de memórias abandonadas.

III

Pele porosa de terra.
Superfície sobre superfície.
Um bicho de duas peles.
 

 

 

 

Hélio Rola

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Lau Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes


 

Beira-mar


O menino olha extasiado a maré encolher-se.
O que era água agora é lamaçal cinza
e os homens bonecos de barro sem pernas
caranguejam atrás de sua imagem e semelhança
– e alguma lata de conserva
que se finge de baiacu de alumínio.
O menino vê o Rio Anil ser engolido pela maré.
Para onde foi tanta água?
O menino também é uma maré vazia perplexidade
vento soprando mangue maré vagueza.
O mangue esponja em seu bolo fecal.
Tarde, tarde, o menino olha a tarde,
o fenômeno é reversível,
maré retrátil,
ele sabe que, como a vida,
amanhã voltará a acontecer.
 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Ronaldo Cagiano

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes


 

Indústria do amargo


A indústria do amargo desassossego,
a patente do medo, a geringonça

movendo as vísceras dentadas,
a fábrica de desacertos mostra o intestino,

manufatura de mercadoria e dejeto,
o lodo e o pêndulo como destino.

Eis o lodo, barro inútil para fazer gente,
massa fecunda para fabricar o desengano.

Agora a outra prensa do nada:
o pêndulo: que é o mesmo e seu avesso,
ora num lugar, ora em outro,
sem nunca sair de onde está;

preso de si, são dois em um,
um que se faz de dois,
para iludir a salmoura da matéria.

 

 

 

 

Ticiano, Salomé

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Bruno Miquelino

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes


 


O rosto


Na sombra, os rostos têm todas as feições
porque nela cabe a imaginação
cuja cara é uma deusa sem rosto.

Por isso te vejo em todas as sombras —
                      sombras do quarto e da noite.
Por isso estás também
                      em minha mente
                      que vive em permanente sombra.
 

 


(de Estrangeiro, 1997)
 

 

 

 

Sophie Anderson, Portrait Of Young Girl

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Vidula Sawant

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ronaldo Costa Fernandes


 

Solilóquio


Com quantos ferros
se faz uma manhã?
Pernas mecânicas,
bocas mecânicas,
o mundo mecânico dos elevadores
                     e da depressão.

Os objetos pendem como frutas
— os objetos também amadurecem —,
a seiva dos ferros e madeiras.

A sala precisa ser podada
— que jardineiro extirpará as ervas daninhas
                                                    [ do sofá?

A tosse do motor de popa
— onde estão os barcos
na umidade dos prédios?

Os peixes nadam na clorofila das venezianas.

                   

(de Andarilho, 2000)

 

 

 

 

Allan Banks, USA, Hanna

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Regina Lyra


 

01/08/2005