Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Ribeiro Couto


 

Infância


Dias de sol suave, de coloridos mansos,
Quando o verde dos matos é mais fresco e cheiroso
E pássaros piam nos esconderijos das árvores!

 

Vem à minha memória o tempo de menino,
A casa em que eu morava e o mato que havia em frente.
Meu irmão ia comigo buscar o coquinho selvagem
Que em cachos fartos pendia das palmeiras espinhosas.
Havia brejos, pontiagudos de caniços,
Espelhando o sol vertical nas águas lodosas.
Armávamos arapucas para as saracuras.

 

O saci-pererê morava nesse mato.

 

À noite
Vinham conversas monótonas de sapos
E pios impressionantes de inexplicáveis animais.

 

Dormíamos sonhando com aparições.

 

Mas na manhã seguinte, ao sol quente,
Íamos de novo apanhar saracuras,
Sem pensar mais nos terrores noturnos da véspera,
Esquecidos do saci-pererê.

 

Ó tempo de menino! Ó meu irmão que morreu
menino!


Publicado no livro Um Homem na Multidão (1926).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.136
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ribeiro Couto


 

Modinha do exílio


Os moinhos têm palmeiras
Onde canta o sabiá.
Não são arte feiticeiras!
Por toda parte onde eu vá,
Mar e terras estrangeiras,
Posso ouvir o sabiá,
Posso ver mesmo as palmeiras
Em que ele cantando está.

 

Meu sabiá das palmeiras
Canta aqui melhor que lá.
Mas, em terras estrangeiras,
E por tristezas de cá,
Só à noite e às sextas-feiras.
Nada mais simples não há!
Canta modas brasileiras.
Canta — e que pena me dá!


Publicado no livro Cancioneiro de Dom Afonso (1939).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.278
 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

Ribeiro Couto


 

Monólogo da noite


Esta noite estou triste e não sei a razão.
Vou, para espairecer minha melancolia,
Ouvir o mar, que o mar é uma consolação.
Paro junto do cais olhando a água sombria.
Intermitente, sob o véu da cerração,
Vejo uma luz vermelha a acenar-me... "Confia!"
Obrigado, farol que és como um coração...

 

A água negra, noturna, a bater contra o cais,
Ilude a minha dor fútil de vagabundo.
E o farol a acenar de longe... "Espera mais!"
Recordo... "Antônio, que o paquete fosse ao fundo!"
Depois, fico a pensar nos que foram leais,
Nos que tiveram a coragem de ir do mundo
E numa noite assim se atiraram do cais.

 

Água eterna... água terrível... água imortal...
Apavora-me a sua aparência sombria.
Se eu pudesse acabar de uma vez o meu mal!
Mas tenho medo. "Não... A água está muito fria.
Além de fria é funda e tem gosto de sal."
E surpreendo-me, a chorar de covardia,
Dizendo ao vento esse monólogo banal.


Publicado no livro Poemetos de Ternura e de Melancolia, 1920/1922 (1924).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.89
 

 

 

Rodrigo Marques, ago/2003

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Artur Eduardo Benevides

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ribeiro Couto


 

Santos


Sobre a cidade a tarde cai de manso.
Começam a acender-se luzes mortiças
Nos longos mastros dos transatlânticos ancorados.
Como é longo o cais envolvendo a cidade inteira
Com os chatos armazéns e os guindastes em fila!
Como é longo o cais junto às águas oleosas!

 

Presos à amurada baloiçam botes vazios.
Vêm conversas confusas de marinheiros
Dentre vagões atulhados de carvão de pedra.

 

Nossa Senhora do Monte Serrat protege o comércio.
A igrejinha branca lá está, no alto do morro,
Abençoando a fadiga dos homens suarentos.

 

Junto a estas águas oleosas nasci.
Nasci para sonhar o bem difícil das viagens,
O encanto triste dos amanhãs do exílio.
O apito imenso das sereias, nas partidas,
Foi a música maravilhosa dos meus ouvidos de criança.

 

Ó transatlânticos com bandeiras enfeitadas,
Não é verdade que viestes para levar-me?


Publicado no livro Um Homem na Multidão (1926).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.135
 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

Ribeiro Couto


 

VII (E os trens que vêm de Bauru)


E os trens que vêm de Bauru
Trazem cheia a segunda classe,
Com catingas de porão de navio,
Com choros de crianças embrulhadas em grossas lãs
européias,
Com caras rubras queimadas de sóis estrangeiros,
Famílias salubres e miseráveis
Que o Brasil chamava, miragem de ultramar.

Nesse amontôo de povo mal dormido
— Cabeças com lenços de cores, boinas de veludo negro —,
Nesses corpos fétidos que os beliches balançaram
Na travessia do vapor inglês,
Há uma poesia profunda,
Há uma poesia violenta,
Poesia das plebes agrícolas da Europa,
Poesia de raças antigas e obstinadas
Que qualquer coisa para este lado do Atlântico atrai;
Poesia da sorte desconhecida sobre o mar,
Poesia do porto de Santos,
Poesia da São Paulo Railway Company,
Poesia da Capital entrevista na bruma,
Poesia da imigração.


Publicado no livro Noroeste e Outros Poemas do Brasil (1933). Poema integrante da série Noroeste.

In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.241





 

 

 

Nelly Novaes Coelho

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José Peixoto Jr

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ribeiro Couto


 

Viola caipira no sítio Vista Alegre


A casa de palha
À beira do rio.

 

A noite se orvalha
De estrelas remotas.
É noite de frio,
Geada nas grotas,
Café no fogão.

 

Café, aguardente
E fumo de rolo
Picado na mão.

 

Viola plangente...
Lá fora o monjolo
Batendo no chão.

 

Bem-querer ingrato
Que a negra candonga
Deixou no mulato.

 

Noite longa, longa,
A noite do mato.


Publicado no livro Cancioneiro do Ausente (1943).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.374
 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

Ribeiro Couto


 

XI (Noroeste, civilização na infância)


Noroeste, civilização na infância,
Expansão incoercível de São Paulo,
Acima dos câmbios, acima das baixas, acima de todos
(os desastres.
Como é bela a poesia atrabiliária das tuas cidades
Em cujas estações uma turba heteróclita
Discute negócios e política municipal!

 

És São Paulo que caminha, ó Noroeste,
Como outrora,
Como no tempo das entradas incomparáveis!

 

És São Paulo que caminha,
São Paulo esportivo, ganhador e violento,
São Paulo de todas as indústrias humanas,
São Paulo que desconhece o ócio dormente das apólices,
São Paulo que arrisca, São Paulo que avança,
São Paulo da aventura austera do trabalho,

 

Acima dos câmbios, acima das baixas, acima de todos
(os desastres.


Publicado no livro Noroeste e Outros Poemas do Brasil (1933). Poema integrante da série Noroeste.
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.245
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)