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Renato Rezende

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


 

 

Crítica, ensaio e comentário:

 


Fortuna crítica:

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Uma notícia do poeta: 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Tiziano, Mulher ao espelho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Renato Rezende


 

      A perna
       
             
      Numa esquina perto da minha casa 
      vive uma mendiga 
      de perna amputada. 
      Tenho vontade de beijar 
      a perna que falta. 
      Acariciar 
      aquele pedaço de nada. 

      A mão dela está queimada 
      e parece que foi costurada 
      de volta ao braço. 
      Com essa mão ela pede esmola. 

      Hoje passei por lá 
      e vi que a perna dela 
      (a outra) 
      estava bronzeada. 

      Ela é loira, ela é moça, é a flor 
      da perna amputada. 

      Me deu vontade 
      de entrar em seu corpo 
      (fragmentado) 
      a meio metro da calçada. 

      Entrar em seu corpo e ser ela, 
      ser a perna que falta. 
      Ser a falta da perna dela. 
      Tive vontade de amar 
      e ser nada. 

             São Paulo, agosto 92 
       

 

 

Culpa

Manoel Ricardo de Lima, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

Renato Rezende


 

Vislumbre
 

O instante, ínfimo, que separa 
o sono da vigília; 
o momento em que o sino se cala 
(quando?) 
no átrio de um templo; 
o espaço 
entre uma palavra 
e outra. 
O que se esconde por trás de tudo, 
o que sempre se mascara 
— Sorri 
(como todos os dias 
o sol abre 
sua cortina sobre o nada). 

 

                                          Bombaim, novembro 91 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Renato Rezende


 

          Eu
               

      Esvaziar-me 
      e tornar-me nada. 

      Viver da mesma maneira,

      a mesma coisa, em barracas 
      ou palácios. 

      Ter o corpo oco, depois de cada encontro 
      e durante cada ato 
      não pensar em nada, não levar nada 
      para casa 
      não sentir nem desejo nem raiva. 
      Que não exista algo chamado Renato. 

      Nunca fazer nada. 

      Que Renato seja uma máscara 
      vazia – mas este espaço 
      não seja ausência, mas luminosidade. 
      A coisa mais pura e clara. 
       

           Nova York, março 96 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova, detail

 

 

 

 

 

Renato Rezende


Poesia fora do esquadro

 

Com Regurgitofagia, Michel Melamed leva mensagem para além dos limites do suporte
 
Renato Rezende
Poeta e tradutor

 

Regurgitofagia
Michel Melamed
Editora Objetiva
132 páginas
R$ 38, 00

 

O livro Regurgitofagia de Michel Melamed é a parte textual - e autônoma - de um espetáculo poético completo encenado pelo autor no teatro Sérgio Porto. Ligado a uma máquina que captava as reações da platéia (risos, tosses, aplausos, vaias, puns) e as transformava em choques elétricos em seu corpo, a figura de Michel (''pisciano, judeu, poeta e carioca - correntista do Itaú'') no palco, vestido numa túnica negra de mártir, mendigo e monge, lembrava imediatamente as figuras inesquecíveis das vanguardas européias do início do século 20: o dadaísmo de Tzara, mas mais que Tzara, Hugo Ball, recitando seus poemas sonoros; o nunca compreendido Jarry (em cuja filosofia o trabalho de Melamed parece encontrar surpreendentes ecos); a música de Satie.

Sempre reinventando a linguagem, criando uma etimologia própria (''Regurgitofagia = Novamente a identidade da linguagem seduz e espanta a musicalidade do prazer que fica''), o trabalho de Melamed vem justamente falar do esgotamento dessas vanguardas, ou melhor, do excesso, excesso de significados, informações, conceitos e produtos que nos são constantemente empurrados goela abaixo.

Se um dia o Manifesto Antropófago modernista fez sentido, hoje seria necessário ''vomitar'' o excesso, ''descoisificar'' o homem, acabar com as altas incidências de ''cárie mental'' causada pelo ''consumo exagerado de enlatados americanos, novelas açucaradas e conceitos embutidos''. Usando o humor e o nonsense como grande arma (''porque as três marias + os sete mares são os dez mandamentos/ e as 7 maravilhas do mundo menos os 3 porquinhos/ são as 4 estações...'' - quando foi a última vez que boa literatura e humor se uniram desta forma?) a literatura de Melamed, no entanto, não tem nada de ingênua. Ela sabe o que diz, e diz de forma inequívoca.

O elemento central dessa grande performance poética de Melamed é a máquina -que ele usa (assim como o seu próprio corpo) como forma de radicalizar sua linguagem. O tal ''pau-de-arara'' não é brincadeirinha, cada vez que alguém se remexia na cadeira, o poeta levava um choque de verdade, e pelo jeito não era um choquinho à toa, qualquer; eu fiquei longe.

A especulação sobre o tema da máquina é uma das possíveis aproximações do trabalho de Melamed com o de Alfred Jarry (as outras seriam o conceito de duração e o peculiar uso da etimologia), inclusive na sexualização das coisas, o feminino transformando-se em máquina (em Melamed: ''... já me masturbei no gabinete do computador, em copos de requeijão, e mesmo com o auxílio de uma cadeira meti na frincha do aquecedor do chuveiro... enviesado eu não vejo nuances femininas... há muito que me acostumei a esta prática e não sinto mais desejo por mulheres...'').

No espetáculo Regurgitofagia, é a máquina que atua sobre o corpo humano, é ela que ''sente'' as reações da platéia e que ''atua'' sobre o a(u)tor. Desta forma, o poeta termina o espetáculo de forma contundente, num Rio de Janeiro coberta de neve (''são as neves de março que fecham o verão. e promessa nenhuma. nunca mais.'') depois de descrever um dia do homem-de-lata, cercado por objetos de carne e osso, cartilagem, sangue e gordura.

Michel Melamed foi um dos fundadores e organizadores do projeto CEP 20.000 (CEP = Centro de Experimentação Poética). Seu livro (que inclui um CD com trechos do espetáculo), remete a esse espírito salutar de experimentação, de embate corporal com o fazer poético. Como escreveu Alberto Pucheu sobre Regurgitofagia, o poeta tira sua força da ''encruzilhada entre poesia, performance e artes plásticas''. De fato, as artes visuais - que há muito abandonaram a exclusividade da tinta e do pincel para apropriarem-se de tudo, inclusive do pensamento filosófico e poético, em seu corpus - estão presentes no livro, e não somente no esmerado projeto gráfico, que incorpora conquistas já estabelecidas pelos movimentos concretista e neoconcretista, mas de formas ainda mais sutis e elaboradas.

A capa e a contra-capa, por exemplo, parecem dialogar com as experiências sobre a palavra poética/sua leitura de Rosana Ricalde (no MAC-Niterói), e os jogos interativos propostos por Melamed em seu livro, fazendo do leitor o autor, nos remetem às experiências de arte como ''ato de vida'' de Lygia Clark e Hélio Oiticica nos anos 60. Apenas para usar um exemplo mais contemporâneo, ao ''YOUwillbecoME'' de Ricardo Basbaum.

Com Regurgitofagia, Michel Melamed leva a poesia para além dos limites tradicionais do seu suporte (livro), dos seus materiais (palavras), e -principalmente através do humor e do lúdico - dos seus temas e técnicas 'específicos' e canonizados.

 

 

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