Sempre reinventando a linguagem, criando
uma etimologia própria (''Regurgitofagia = Novamente a
identidade da linguagem seduz e espanta a musicalidade do prazer
que fica''), o trabalho de Melamed vem justamente falar do
esgotamento dessas vanguardas, ou melhor, do excesso, excesso de
significados, informações, conceitos e produtos que nos são
constantemente empurrados goela abaixo.
Se um dia o Manifesto Antropófago
modernista fez sentido, hoje seria necessário ''vomitar'' o
excesso, ''descoisificar'' o homem, acabar com as altas
incidências de ''cárie mental'' causada pelo ''consumo exagerado
de enlatados americanos, novelas açucaradas e conceitos
embutidos''. Usando o humor e o nonsense como grande arma
(''porque as três marias + os sete mares são os dez mandamentos/
e as 7 maravilhas do mundo menos os 3 porquinhos/ são as 4
estações...'' - quando foi a última vez que boa literatura e
humor se uniram desta forma?) a literatura de Melamed, no
entanto, não tem nada de ingênua. Ela sabe o que diz, e diz de
forma inequívoca.
O elemento central dessa grande performance
poética de Melamed é a máquina -que ele usa (assim como o seu
próprio corpo) como forma de radicalizar sua linguagem. O tal
''pau-de-arara'' não é brincadeirinha, cada vez que alguém se
remexia na cadeira, o poeta levava um choque de verdade, e pelo
jeito não era um choquinho à toa, qualquer; eu fiquei longe.
A especulação sobre o tema da máquina é uma
das possíveis aproximações do trabalho de Melamed com o de
Alfred Jarry (as outras seriam o conceito de duração e o
peculiar uso da etimologia), inclusive na sexualização das
coisas, o feminino transformando-se em máquina (em Melamed:
''... já me masturbei no gabinete do computador, em copos de
requeijão, e mesmo com o auxílio de uma cadeira meti na frincha
do aquecedor do chuveiro... enviesado eu não vejo nuances
femininas... há muito que me acostumei a esta prática e não
sinto mais desejo por mulheres...'').
No espetáculo Regurgitofagia, é a
máquina que atua sobre o corpo humano, é ela que ''sente'' as
reações da platéia e que ''atua'' sobre o a(u)tor. Desta forma,
o poeta termina o espetáculo de forma contundente, num Rio de
Janeiro coberta de neve (''são as neves de março que fecham o
verão. e promessa nenhuma. nunca mais.'') depois de descrever um
dia do homem-de-lata, cercado por objetos de carne e osso,
cartilagem, sangue e gordura.
Michel Melamed foi um dos fundadores e
organizadores do projeto CEP 20.000 (CEP = Centro de
Experimentação Poética). Seu livro (que inclui um CD com trechos
do espetáculo), remete a esse espírito salutar de
experimentação, de embate corporal com o fazer poético. Como
escreveu Alberto Pucheu sobre Regurgitofagia, o poeta tira sua
força da ''encruzilhada entre poesia, performance e artes
plásticas''. De fato, as artes visuais - que há muito
abandonaram a exclusividade da tinta e do pincel para
apropriarem-se de tudo, inclusive do pensamento filosófico e
poético, em seu corpus - estão presentes no livro, e não somente
no esmerado projeto gráfico, que incorpora conquistas já
estabelecidas pelos movimentos concretista e neoconcretista, mas
de formas ainda mais sutis e elaboradas.
A capa e a contra-capa, por exemplo,
parecem dialogar com as experiências sobre a palavra poética/sua
leitura de Rosana Ricalde (no MAC-Niterói), e os jogos
interativos propostos por Melamed em seu livro, fazendo do
leitor o autor, nos remetem às experiências de arte como ''ato
de vida'' de Lygia Clark e Hélio Oiticica nos anos 60. Apenas
para usar um exemplo mais contemporâneo, ao ''YOUwillbecoME'' de
Ricardo Basbaum.
Com Regurgitofagia, Michel Melamed
leva a poesia para além dos limites tradicionais do seu suporte
(livro), dos seus materiais (palavras), e -principalmente
através do humor e do lúdico - dos seus temas e técnicas
'específicos' e canonizados.