Exercício
1.
É com angústia que o
poeta espera a escrita se inscrever, mas não
somente. Diante da folha em branco ou da tela clara
de um computador habilita-se o jogo das palavras no
vazio que brilha. Um jogo onde as palavras
inserem-se – em sua materialidade – como se cada uma
delas fosse mesmo um objeto, uma espécie de pião
(conforme comentou Picasso sobre os poemas de
Francis Ponge), que se movimenta e gira entre os
dedos da mão, sem cessar.
Experimentamos
construir na escrita
alguns tantos objetos, com palavras
pensamos pelas
esquinas dos versos
buscando o tempo que
arrisca no chão (d e s t e r r i t o r i a l i z a d
o)
ou no céu - folha - de
- papel
visualizar o dia, a
loucura, a morte?
Assim na folha nua ou
na tela-água,
palavras fluem e
resistem
e se autorizam...
Algumas bóiam,
saboreiam certas sobras, afundam.
Algumas outras
encontram a rota e carregam muchas voces.
Há ainda as que
sacodem a saia das beiradas das páginas deixando
ver (an)águas antigas que resistem ao calor de
tempos novos.
As letras – algumas
letras: d, b, p, g, j ,q – parecem insetos pousados
nas janelas. Essas letras – de braços ou pernas
alongadas – podem ao se juntar com qualquer das
cinco vogais levar muitos fios e formar palavras de
paladar inusitado.
Ou, qual bombas!!!
explodir matérias (sem poesia).
Lembro que vi, em
flash de TV, as bombas --- minas --- sendo retiradas
do chão, em locais onde foram plantadas, como se
fossem sementes secas:
(horror
e
silêncio)
2.
Em dias de tempestade
gosto de olhar o céu, e, procuro no clarão dos raios
recolher nas mãos os sonidos caídos do alto ou do
baixo do escuro escorrendo.
É de lá que me ocorrem
as letras altas, as que cortadas em cima levam
junto as formas decididas: f, t, l, h. São letras
que supõem crescimento no traço riscado à mão de
cima pra baixo ou vice versa.
As dentais T T T (tês)
envolvem um trabalho de elegante exigência ao
leitor, compondo um ateliê atulhado dentro da boca.
“Na visualidade da escrita, a fieira de dentes: T T
T T T T” (Décio Pignatari, em um dos prefácios de
Marina Tsvietáieva, p.18).
As palavras
estrangeiras também ensinam. Transpõem novos
cenários. A palavra inglesa thirteen, por exemplo,
traz na língua um especial sonido de
vento-em-frestas no alvorecer das frases prestes a
sair... e correr.
Nas línguas
estrangeiras encontro a estranheza com as
diferenças, inclusive, a da presença da falta como é
o caso da letra E (no francês), que, às vezes, está
lá como a traduzir a própria falta. Cito: chèvr(e)/
(cabra), onde a sonoridade, segundo o dicionário da
língua francesa, é de três consoantes c,h,v. A letra
E é muda. Valère Novarina fala que “O E mudo é a
mola invisível do francês: um ponto de energia que
se comprime ou se estende – dependendo da emoção – e
dá à nossa língua sua força propulsiva” (Diante da
palavra, p.41).
Há poetas que gostam
de trabalhar esta materialidade que os convoca sem
perdão. Eles passeiam a mão firme que corta e fura o
poema ao escrevê-lo, listando coisas,
palavras-coisas, pensamentos, agonias. As palavras
fazem trabalhar o músculo!
Mas importa –
singularmente – a travessia de cada poeta,
“travessia respiratória do espaço” – matéria
invisível (Novarina, Idem, p. 47).
É de lá que acodem os
ritmos, os movimentos da língua, do escuro recanto
que cada poeta busca ouvir e trazer à tona em seu
texto.
3.
Hoje, os poemas são
muitos, insistem e escrevem-se na página guardando a
falta que compõe o olhar de cada poeta. A paisagem
está destituída, enquanto paisagem de mundo.
Paisagem de deserto ou linha de horizonte de onde o
ponto perdido deixa ver apenas a poeira, em terreno
impossível sequer de se respirar...
4.
As perguntas sobre o
tempo de um escrito podem circular e abismar. De um
lado o poeta escreve a um leitor que é percebido
como leitor ninguém-absolutamente-ninguém (em um
mais além de João Cabral), e por outro lado
escrevem, escrevem, escrevem. Os poetas
contemporâneos sussurram sem cessar a este leitor
ausente, endereçam-se a um ponto de interrogação.
O que pode a poesia,
então?
Rio de Janeiro,
abril de 2006.
Solange Rebuzzi é
carioca, poeta e psicanalista. Publicou entre outros:
Leminski, guerreiro da linguagem (ensaio, 2003) e
Leblon, voz e chão (poemas, 2004), ambos pela
editora 7Letras.