Weydson Barros Leal
Igitur ou A
Loucura de Mallarmé
Avignon teria sido feliz se Monsieur Mallarmé riscasse poemas na
lousa apagada. Mas a vida precisava dos números - os pratos acesos
eram as telas vazias do estômago - e Igitur, poeta, fugira de uma
Alemanha cinzenta. Havia trabalhado para um filósofo asmático que
morrera de um tipo de solidão generalizada. Igitur poeta escapara da
noite por uma ressureição de imagens; resgatara ancestrais nas
bengalas dos postes e tornou-se herói de um conto prosopoético.
Igitur, disléxico, tinha frase musical e a solidão dos epigramas
assonantada e abstrata. Trouxe nos pés uma canção metafísica e no
bolso das mãos dados vermelhos pelos quais seria lembrança. Subtraiu
de seu livro a sintaxe bem-comportada. Um dia, à porta do poema,
disse-lhe sede. O mestre o bebeu como um leite do céu. Engolira a
fogueira - não sabia - da poética prática do portão das estrelas. O
acaso apaga o dia. O vazio da alma um sapato vazio. Igitur tornou-se
hermético como a embalagem do espaço. Inventou Elbehnon - hebraico -
filho de Elohim - gangs criadoras de Jeová. Criava tudo. Era poeta.
Igitur com Elbehnon foram trama existencial. O vazio era nada - o
infinito não se sabe. Ptyx era uma concha grega inventada numa
insônia. Igitur insinuou rituais de magia mas não sabia contar.
Igitur a loucura do poeta. Elbehnon psicastênico. Igitur o médico e
a doidice, o papel e a poesia. Igitur a lógica poética, abstração
concreta. O teatro e a peça: Un coupe de dés aboliu as reservas. Em
Paris, certa vez, Igitur dava esmolas. O corpo dormia sobre banco de
praça. La Bastille, olhos azuis, Rimbaud ainda insone praguejou-lhe
a oferta - não compraria o Inferno. Igitur não ouviu. Descia a
cavalo o corrimão da noite. O movimento do pêndulo era o soluço dos
trens a vapor. Soubera que em Paris ou Avignon o professor conhecia
Courbet. “Belicosa, exaltante, preciosa, mundana” sua tinta. Courbet
e o professor ouviam miragens. Às nove da manhã, o professor, já
poeta, recebeu Paul Valéry para conversa. Era outrubro. Manhã cheia
de lua. Valéry conhecia pintura. Sabia Monet, Manet. Escreveu Petit
Discours aux Peintres Graveurs. Tomaram chá de ervas até onze e
quarenta - o professor tinha cobertos os joelhos. Ouviram falar de
Rimbaud. Partiu, parece. Não se sabe muito. Igitur é abstração da
Angústia. A Angústia concreta. “Le Rêve a agonisé en cette fiole de
verre, pureté, qui renferme la substance du Néant”. A vida de Igitur
é um esquema analógico. “Ici: névrose, ennui, (ou Absolu!)”. Igitur
não era o relógio - era o pêndulo. Sua raça era a pureza que bebia o
absoluto. “O infinito, afinal, está fixo”. Tudo é acaso ou sua
reflexão ocasional. O Absoluto. O acaso toca o infinito. O silêncio
se olha no espelho. Sombras de seu movimento. Um brinde ao barco
bêbado! Os peles-vermelhas e as sereias navegam paralelos. Há
semelhanças nas quilhas. As velas são de sonho. Navegam à proa os
amigos. Os poetas atrás. Rimbaud baba na popa, seu coração. Monsieur
Mallarmé ergue seu brinde de pé. Rimbaud tomou banho no poema.
Tingiu de azul o amor fracassado. A aurora explodira como um bando
de pombas. Solitude, recife, estrela. Viu Flóridas perdidas com
olhos de jaguar. O barco era perdido mas a proa brindava o mar. O
charco dessa Europa sabe o branco em sua vela. Monsieur Mallarmé não
queria sucesso. Criava cardumes no aquário da noite. A mania dos
números ensinou-lhe a operar solidões. Fundou outra literatura.
Música e concentração. Gritava numa procissão de cânticos. NADA é
palavra de poemas - RIEN. Brincava nos túmulos e conhecia o seu
Nada. E era outro o Nada da Morte. Um Nada preenchido de Absoluto.
Os dados imitavam as horas. Quatro dados imitam o dia. Um lance do
acaso os redime do Nada. Todo poema é um estudo antigo. Fala de
ancestrais, de sombras. A criança o homem absoluto. A criança
ancestral: Monsieur Mallarmé e Rimbaud eram irmãos, ambos estudaram
inglês. O equilíbrio dos nomes era a balança musical que Igitur
trazia nos lábios. A música da palavra. O acaso era previsto pelos
dedos de Igitur. Monsieur Mallarmé medira o acaso e o infinito. Sua
meditação era expressão estética. Não a estética “fora de moda”, que
dizia Rimbaud, mas a estética absoluta: “Pintar não a coisa, mas o
efeito que produz - todas as palavras devem-se eclipsar ante a
sensação”. Queria evadir-se por uma janela do tempo que era o teto
em sua alma. Evadiu-se em um mergulho interno e salvou do naufrágio
o barco da imaginação. Escreveu Herodiade e L’après-midi d’un faune
com pena de asa de anjo. Dramático? - inconcluso. Sua sintaxe tinha
o peso do céu. A noite desembocava sua agonia na introdução amarela
do dia. Todos, afinal, procuram Baudelaire. Baudelaire é um
ancestral que vive. Igitur obra inacabada. Igitur fabrica espelhos
sem tempo e bebe a lágrima do Nada. Igitur é um advérbio esquecido.
Enfim, Monsieur Mallarmé o deixou numa escada enquanto dormia.
Queria conceitos sem trama. O Nada. O Absoluto. O Abstrato entre os
dedos do intangível. Para isso encontraria metáforas no cotidiano. A
sombra derretera-se em Sonho e Silêncio - Idéia e Azar. Assim nasceu
Igitur. A mente rompera a bolsa líquida do Nada. Igitur a bebeu e
arrotou o Absoluto.
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