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William Lial


 

As duas mortes


Morreste hoje.
Esquecido, poderás morrer,
Novamente amanhã.
Que nem sempre
A morte é uma só.


Morrerás a morte no corpo,
Morrerás a morte na ausência
Da lembrança,
Morrerás a morte nos olhos
Dos que não mais o verão,
Morrerás a morte com a névoa da memória.
Morrerás a morte
Ao bel-prazer de Cronos
Que devora a vida através dos dias,
Através da terra e do pó,
Morrerás a morte
Através da falta de escrúpulo
Do esquecimento póstumo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Cole (1801-1848), The Voyage of Life: Youth

 

 

 

 

 

William Lial


 

Errante


Poucos amaram a dor como eu amei,
Poucos se regozijaram como eu me regozijei,
Poucos se deliciaram com o calor como eu me deliciei,
Poucos sentiram o desejo como eu senti,
Poucos beberam olhares sedentos como eu bebi,
Poucos repousaram sobre seios esplêndidos como eu repousei,
Poucos foram senhores do seu céu como eu fui,
Poucos se apaixonaram como eu me apaixonei,
Poucos abraçaram cada segundo da vida como eu abracei,
Poucos idolatraram o instante como eu idolatrei,
Poucos beijaram o fenecer errante como eu...
Como eu beijei.

 

 

 

Titian, Noli me tangere

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Leontino Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

William Lial


 

A prostituta


Era a tristeza de homens tristes
Que a procurava;
Quer velho,
Quer jovem fossem.
Eram homens órfãos do dia
A irmanarem-se à noite.


Era a dor deles
Que ela abrandava:
Sua fome de euforia,
Sua ânsia de sorriso louco
E a glória egocêntrica.


Era no seu sorriso
Que eles regozijavam-se;
Nas suas coxas,
Nos seus seios,
Nas suas mãos e boca.


Era no dia dela
Que a noite deles terminava,
Naquele quarto vermelho,
Naquelas almofadas bregas,
Naquele calor lascivo.


Era ela, naquele lupanar,
A cortesã dos seus beijos:
Os únicos recebidos
E não roubados: comprados.
Era ela a mulher “depravada”,
Ignorada, mas não largada.
Era todo o mal e todo o bem,
Era a sua vergonha,
Era o seu prazer.
Era ela a fêmea:
Doce, perfumada, temida e desejada.
Único ouvido de suas lamentações,
Única voz atenciosa de seu âmago.
Era ela,
A prostituta.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Cleópatra ante César

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Jorge Amado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

William Lial


 

O transeunte


Eu o vi caminhar sozinho,
Transeunte monótono,
Ignoto aos olhos vizinhos.
Caminhando como um turista
Recém chegado a um lugar
Que não conhece.


Eu o vi sorrir para as nuvens
E abraçar-se ao vento.
Eu o vi sentar-se ao banco
E conversar com seus sonhos,
Parolar com seus fantasmas,
Debochar de ridículas brincadeiras
E despedir-se como num breve adeus.


Eu o vi saldar jovens senhoras
Que ele não conhecia
E que se esquivavam de sua loucura,
Eu o vi agradecer aos xingamentos
Que recebia
Como se recebesse ricas ovações,
Eu o vi levar suas costas embora
A conversar e gesticular com todos
Os seres que eu não podia ver.
Eu o vi descer a ladeira
Para nunca mais voltar.

 

 

 

Crepúsculo, William Bouguereau (French, 1825-1905)

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Hélio Pólvora

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Acis and Galatea

 

 

 

 

 

William Lial


 

Aos ignóbeis


A raiva eclode dentro de mim.
Queria esbofetear todos que me sorriem;
Seus dentes amarelos de cinismo,
Suas bocas putrefatas de opulência.


Ah, como queria que soubessem
O quão paladino é minha ira,
O quão cruel é minha dor.
Como queria puní-los,
Simplesmente por existirem.


Porcos que me deram as costas.
Saibam que suas costas não vejo,
Vejo sua pose de senhor dos energúmenos
Que ainda hei de destruir.


Senhores que me ofertaram falácias,
Que me beijaram a face judiada,
Que me abraçaram o corpo torturado;
Senhores,
Um dia verão-me felicitar o verme que recusará suas carnes.

 

 

 

Bernini_Apollo_and_Daphne_detail

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Artur Eduardo Benevides

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

William Lial


 

Párias


Aqueles párias que sempre me subjugaram
E por falta de ventura
Agora me lêem,
Meus sentimentos e felizes exéquias.


Desculpem-me se fui duro com todos.
Não era a minha vontade.
Eu desejava ser inescrupulosamente
Cruel.
Mas, mais uma vez, peço-lhes desculpas.
Não sei igualar-me a vocês.


Indesejáveis, srs. Párias,
Gostaria de poder ter pagado tudo,
Tudo o que indubitavelmente mereciam.
Infelizmente não houve tempo
Nem capacidade da minha parte.
Não sou bom em atos grotescos.
Queria devolver-lhes
Tudo o que me presentearam,
Mas não tive competência
Para dar-lhes tudo o que mereciam.


Mas partam tranqüilos.
É vossa hora de ir.
Agora que o mundo não mais aceita
Vossos açules.
Partam ao seu lugar,
Um lugar bem mais merecedor
De sua coorte.
Meçam sete palmos
E acomodem-se.
Em fim,
Têm a sua terra tão merecida,
Honrosa, suja e fria.

 

 

 

Albrecht Dürer, Head of an apostle looking upward

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Carlos Felipe Moisés

 

 

 

03.12.2004