Zemaria Pinto
Advertência
I
O meu poema não guarda
relação com a realidade.
Quando muito, escrevo sonhos
que ando sonhando acordado.
São sonhos pré-fabricados,
tecidos de forma vária:
sonho poemas escritos
por poetas que não li
e os escrevo com a certeza
de que a mim não me pertencem.
Mas os escrevo em sonhos:
tinta de ar, papel de espuma.
Serpentes e labirintos,
anjos, panteras, centauros,
pássaros, peixes e vacas,
cães, borboletas, carneiros,
além de abismos e rios:
são recorrências de sonhos.
Sonhar voando é brinquedo,
recorrência de prazer.
II
Já sonhei com o Paraíso,
onde busquei Beatriz
num círculo espiralado
de areia e vento e desejo.
Mas já sonhei com o Demônio.
Aliás, lhe sonho sempre,
desde quando um grito negro
despertou-me do delírio,
entre a repulsa e a libido,
do meu corpo submetido.
Sonho com o céu se abrindo
em nuvens revolucionadas.
Sonho com a Terra explodindo,
ilhas de gente arrancadas,
explosões multiplicadas,
lava de fogo e poeira.
Em meio a tudo caminho
com a calma dos culpados,
e talvez até sorria
da beleza do espetáculo.
III
Para o poema transponho
não os sonhos como os vi:
passo ao papel a tristeza
que toma conta de mim
ou então a alegria
esporrada no lençol.
Pois se os escrevo sonhando,
transcrevo-os na sordidez
das lentas salas de espera,
nas filas dos hospitais,
nas toscas mesas dos bares
que envergonhado freqüento
ou nas mesas apressadas
dos restaurantes de quilo.
O poema não reclama,
não requer assepsia.
Apenas pede passagem
como um quisto que supura:
a urgência do poema
não condiz com a escritura.
IV
Deve o poema ser lento
gerado célula a célula,
como um corpo que se forma,
um bicho que se transforma
ou como fosse a laranja
que se faz de casca e gomos;
em cada gomo milhares
de pequenas bolsas-lágrimas;
e somem-se ainda os átomos
do líquido que a enforma,
até a conclusão óbvia:
toda laranja é um poema.
Toda vida é um poema?
Toda coisa é um não-poema?
Mas uma coisa se muda
em poema: se transmuda.
Poemacoisa: poesia;
poemobjeto é outra coisa.
Um poema é um poema,
apenas e tão-somente.
V
A medida do poema
nasce na palma da mão,
galopando até a língua
no ritmo desejado.
Mas a música do poema
é o ouvido do leitor.
Alguns poemas têm cheiro;
outros há que têm sabor;
outros buscam harmonizar
os sons, perfumes e as cores.
O meu poema procura
a ordem fora da ordem.
Mas não resiste o poema
que não reflete uma imagem,
ainda que distorcida
em figura de linguagem.
Pois assim é o meu poema:
lúcido, lúdico, meu.
De outra forma, valeria
transformar sonho em poesia?
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