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Afonso Félix de Sousa


 

Soneto XXV de Íntima parábola


Deuses que resguardais lá das celestes grutas
os campos de que sou senhor e há muito lavro,
vede, se eu os semeio é fatal colher frutas
que para preservar, delas me faço escravo.
Ó deuses que me dais arriscar minha sorte,
que pouco é, quando o alcanço, o que espero ou procuro!
Como erigi no azul para a alma um contraforte,
do castelo que ergui resta ao menos um muro.
E da glória de amar resta ao menos um traço
do jardim a que dei todo o suor do rosto
e de onde as flores, quando eu perto delas passo,
fecham-se como a ver o espectro do sol-posto.
Deuses, se atiro os grãos a terra se sujeita.
Ó deuses, que há de ser ao tempo da colheita?
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Soneto XXXVI de Íntima parábola


Senhor, que a mim de sonho e vísceras fizeste,
e me tens nu, qualquer que seja a minha veste,
sinto, desde que aqui tuas varandas varro,
ter, bem junto a meu corpo, alma também de barro.
É por isso que vou com asas rastejando,
e as plumas de meus pés as perdi não sei quando.
É por isso que pães sabendo a lama como,
quando creio colher em tua mão um pomo.
Tua presença é como a vida, é como açoite,
e vergasta-me sempre, onde quer que me amoite.
Tua presença é luz que tive entre meus braços
e, terrível, mostrou-me os meus próprios pedaços.
Senhor, alma de sóis que dão vida e a consomem,
eu não tenho perdão, eu sou carne, eu sou homem.
 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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Luiz Nogueira Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Sonetos aos pés de Deus I


Eu bato, eu bato, eu bato à tua porta,
bato sem ver que a porta está aberta.
Sem ver-te, sei, tua presença é certa,
e tento orar, mas minha voz é torta.
A luz que vem de ti em dois me corta,
e do que fui e sou outro desperta.
Não posso, assim, a ti dar-me em oferta,
pois já nem sei que ser meu ser comporta.
Tudo o que busco dás, dás de sobejo,
pois sabes mais do que eu o que desejo,
e estás comigo e em mim, sempre a meu lado.
Comigo estás na paz e nas pelejas.
Por tudo o que me dás louvado sejas,
por tudo o que não dás sejas louvado.
 

 

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

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Gabriel Nascente

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Sonetos de Olinda I

 

A Lúcia Dantas



Quando na praia imersa em luz termina
a inquietação de mares prisioneiros,
com três rosas na mão subo a colina
e são a brisa e o amor meus companheiros.
Tesouros que arranquei da eterna mina
da beleza - que os possa dar inteiros
a quem borda um jardim que me destina,
e espera-me, infinita, entre coqueiros.
Igrejas, casarões ... onde lembranças
de era flamenga voejam pedregosas
e tombam num tombar de paina, mansas.
Batem de novo à praia ondas raivosas,
mas dou por mim numa ilha de bonanças
e nesse oásis plantam-se as três rosas.
 

 

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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José Louzeiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Toada goiana


Correr chapadas e serras
cobertas de casimira.
As noites que lá se foram
voltam dançando, e a catira
que se escuta sempre longe
é doce - ainda que fira.
O vento dá na roseira,
mas meu bem, ninguém me tira.
Quem ama, reclama e chora,
canta e suspira.
As muitas matas, as muitas
solidões ... que amor as planta?
Quero bem a uma menina
que vê-la é ver uma santa.
Deixei-a, vim correr mundo.
Agora tenho a garganta
atravessada do espinho
desta saudade que é tanta.
Quem ama, chora e suspira,
reclama e canta.
Poeira em giros vermelhos,
e o tempo já foi de lama.
Sete cravos, sete rosas -
é pouco para quem ama.
Sete cartas de lembrança -
e a ingrata, que não me chama!
Faço fé que ainda me lembra,
pois sou goiano de fama.
Quem ama, suspira e canta,
chora e reclama.
O vento vem, dá na vida.
Mas a terra - é em mim que mora.
Passarinho no coqueiro,


do meu bem fala-me agora:
se está morto, se está vivo,
se casou, se foi embora.
Vem a seca ... Vêm as águas ...
E a resposta já demora.
Quem ama, canta e reclama,
suspira e chora.
 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Anderson Braga Horta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

Afonso Félix de Sousa


 

Visita ao túmulo de Machado de Assis


Aqui venho e virei. À beira
de teu túmulo uma fiandeira
como que me entrega, tecida,
tenuíssima teia - e da vida
mais clara aceitação eu posso
ter, pois do que é teu, meu, e nosso,
por ser um comum atributo,
extraio o que há de seiva e fruto,
e dou, como alimento, à alma,
que come, espanta-se, e se acalma.
Não te trago flores, ó mestre,
nem hinos minha voz campestre
é capaz de erguer a teu nome.
No entanto, mataste-me a fome
da alma, ao me deslindar a estranha
teia de almas que me acompanha.
No entanto, sem sequer pintá-la,
tua voz é que melhor fala
desta cidade onde, por obra
e graça da sorte, soçobra,
e vai existindo, e repousa-
rá o Afonso Felix de Sousa.
 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Pedro Nunes Filho