Anderson Braga Horta
Fragmentos da
Paixão
I
Certo dia, no meio do caminho
que me arrastava os pés no Templo alado,
deparei junto a mim o burburinho
de um turbilhão de seres extasiado
ante a férrea, magnética presença
de alta torre de vidro. Fascinado
pelo esplendor da aparição imensa
— sombrio resplandor de negra opala —
também eu, que ao cantochão da descrença
me embalava, já cansado, já farto
de arrastar pelo Planeta os andrajos
de minha solidão, entrei cantando
no torvelim das almas que em ciranda,
ébrias, descendo, trêmulas, em bando,
iam o adro da Torre demandando.
Ali paramos ante os negros vidros.
Abriram-se-nos portas densamente aliciantes.
Envolvia-nos algo como um olhar pegajoso
de hipnose. Dançando ainda, entramos
nos amplos elevadores. Apertamos
os botões para o último andar. E lentamente
fomos descendo.
II
Apagaram-se os sóis. Ficamos sabendo,
sem que voz o dissesse, que a alegria
era infração à Norma. Mas autônoma,
senhora de nossos corpos, prosseguia-se a dança,
e era música o contínuo terror, o temor expectante em
que nos fizéramos,
regente atra Presença,
opressão de pressentida Espreita rapinante no escuro,
surda Vibração de ala implume.
Lá fora o claro dia era um sonho remoto.
Nas trevas, no pavor, Suas invisíveis milícias,
Seus ocultos exércitos
espancavam a multidão em fuga para Nenhures.
Esquecidos na entrada os amuletos!
Total desamparo! Começava
o sem-sentido, o sem-nexo,
o mergulho real.
Eu me apagava.
III
E de repente estava só de novo,
e descia. Meus andrajos de púrpura cintilavam
torvamente. E descia.
Entre seis paredes de ar pesado,
corte vertical na rocha,
solitário descia.
Os muros me estreitavam. Eu me espessava.
E descia.
IV
Oh solidão da vida!
Oh solidão da morte!
Oh solidão amarga!
Nas paredes da rocha em descendente fuga,
vou escandindo
às pedrarias abissais, de faiscações inversas
— invertida luz, caliginosa
luz, antiluz
que só o negror desvela —,
as sílabas terríveis
do terrível grafito.
Oh! Que esperança para a humana raça
não é por estes subterrâneos astros!
V
Na Planície sinistra
cuja monotonia apenas quebra
um torvo rio, de mim mesmo apeio-me.
A atra, oculta Presença
comigo se confunde.
E solene olho em torno os meus domínios.
Glebas de solidão.
Províncias de ódio.
Sesmarias de escuro.
Céus tombados.
Sombra. Medo. Pavor. Angústia. Inferno.
E em meu Domínio eis-me senhor escravo.
Aniquila-me, ó Deus! Antes o Nada
que a privação do Sonho e da Esperança!
VI
E as falsas ascensões!... Elevadores que parecem subir
mas não chegam, não se abrem, ou sobem no vazio,
ou param ameaçadores, ou se escancaram sobre estruturas
instáveis, e despencam para um poço que tarda,
para um fim que não vem, que não vem, que não vem!
VII
Mas num relâmpago,
fugitiva fração do escoar da areia,
descuido do Diabo, após milênios,
de milênios de abismo,
de um infinito negar do clarão, da centelha,
eis que, de abscônditas
nebulosas em flor desabrochada estrela,
estrela de beleza, do mistério
de ser o homem uma luz que tenta brilhar,
a Tua Face, ó Deus, lúcida Se revela!
Já não me desespera,
vislumbrado o Teu sol, Senhor, se agora,
em vez da redenção, ainda me espera
o surdo recomeça
da negra eternidade.
Daqui, do mais profundo deste inferno,
fadado ao Teu Amor,
sonho-te, ó Deus, essência cristalina.
E sei que alfim, ao fim da Eternidade,
ascendo a Ti, ascendo a Ti, Senhor!
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