André Seffrin
16.12.2000
Nas bordas das
palavras
Cláudia Roquette-Pinto
burila a linguagem poética
COROLA
Claudia Roquette-Pinto
Ateliê Editorial,
111 páginas
R$ 15,00 |
Depois
dos acertos e desacertos dos livros anteriores, Claudia
Roquette-Pinto publica o que se pode considerar o seu melhor livro.
Apesar disso, a poesia de Claudia exige do leitor uma percepção
aguda do caminho percorrido, de suas entrelinhas e de seus
labirintos. Às vezes é quase hermética, o que não é bom. No
geral, é bastante burilada e chega a alcançar, em muitos momentos,
versos e poemas de alta qualidade. Corola é um livro
importante na sua evolução literária, um livro que se destaca no
cenário desigual da moderna poesia brasileira. Atualmente, quando a
poesia parece cultivar um declarado horror ao lirismo e hibernar
numa clara recusa à comunicação, ou quando não passa de simples
exercício epigônico, este livro é, no mínimo, um acontecimento
para essa nova geração que aos poucos vem se destacando e que nem
sempre tem dado conta do recado.
Nesse
tumulto de vozes indistintas, Claudia Roquette-Pinto realiza uma
poesia exaustivamente trabalhada através de uma arte poética - se
cabe a expressão - do risco. Uma arte poética que, no extremo,
procura não se ver como arte poética e sim como uma tentativa de
representação. Régis Bonvicino, no seu texto de ''orelha'' um
tanto equivocado, aponta com acerto para as ''questões de
representação'' de alguns versos do livro. Em linguagem mais próxima
do chão, pode-se dizer que a poeta caminha na tentativa de desenhar
o mundo no limite, testando as possibilidades da linguagem, sem
aquela fé no poder da palavra tão ao gosto das gerações 50 e 60.
Na
busca da palavra e do seu raio de alcance, Claudia costuma fazer
algumas concessões como a de sacrificar a beleza de um verso para não
prejudicar a harmonia de um recorte fragmentário, principalmente
para não sacrificar a ''idéia'' do poema. Apesar disso, e talvez
por isso, longe está de ser uma poeta descuidada do verso. O
primeiro poema é exemplar nesse sentido, quando ''o dia inteiro
perseguindo uma idéia'' leva-a aos labirintos dos labirintos em
busca do fugidio (a poesia?), que talvez esteja ''por um fio, frágil
e físsil, ínfimo ao infinito'', no tudo-nada de que o poeta dispõe:
''o rosto desta última flor'' (a linguagem?) que, mais adiante,
noutro poema, reconhece, é ''a única que existe''.
Seja
no belo culto a Novalis (''Isto, enquanto imprimo/os teus Hinos à
noite/nestas folhas ordinárias,/palavra por palavra
coagulando...'') ou no sombrio ''(dia das mães)'', ou mesmo no vário
quadro de referências à poesia universal que atravessa o livro, o
poeta caminha ''na borda das palavras,/ tentando não morrer.''
Porque ''isso de escrever é jogo/perdido de antemão, no mano a
mano.''
É
poesia de altas percepções, de instantâneos que se fragmentam
para a recomposição final, dando lugar ao grande mosaico feito de
recortes da consciência, de retalhos de retratos, de sombras e de
luzes reflexas, um estranho e sedutor mapa íntimo. Ao contrário do
que costuma acontecer com alguns poetas de sua geração, Claudia não
cai naquela tão comum esgrima sonora de palavras, ofuscante e vazia
de sentido. A sinestesia, determinadas recorrências de imagens (''o
áspero das cigarras'', ''a serra elétrica das cigarras'', ''buquê
de ruídos'', ''serrote do delírio'' etc) ou de palavras
(''grilo'', ''lixa'' etc) que remetem a uma acústica semelhante,
ajudam a compor a rede simbólica que é pano de fundo para a
composição da paisagem natural, onde o poeta é ''refém do
instante'' em que escreve, ''vizinho do flagrante''. Esta é a casa
do poeta, na sua crise de ''representação''.
Vale
a pena citar: ''Para que tijolos, toda esta geometria,/que faz da
paisagem um deserto de cintilações espontâneas?/De linhas retas
apenas/o fio que desenrolo,/exausta embora atenta,/sem conhecer a mão/que
o estende na outra ponta.'' Um belo exemplo de poesia existencial,
metafísica, dramática (''Escrita,/ é sempre você quem me
resgata...'') que se conjuga num referencial vasto e vário. No que
diz respeito à voz feminina, ela atesta uma temperatura que, nos últimos
20 ou 30 anos de Brasil, só conseguíamos medir pelos termômetros
de Lupe Cotrim Garaude, de Zila Mamede e de Maria Angela Alvim,
vozes cristalizadas pela morte. Ou pelas permanências de Renata
Pallottini, Hilda Hilst, Lélia Coelho Frota, Olga Savary e Astrid
Cabral, que publicou recentemente sua obra reunida, De déu em déu
(Sette Letras, 1998), sem a devida atenção da crítica - ou do
pouco que resta dela.
Claudia
Roquette-Pinto não deixa de ser uma continuidade energizada da
poesia feminina brasileira, cujo parâmetro inicial se reconhece em
Cecília Meirelles e Henriqueta Lisboa. Os caminhos percorridos
pelas gerações posteriores, embora trilhados de maneira diversa, não
se afastaram muito dessas fontes, ou seja, daquilo que melhor se
realiza no gênero em nosso país (Ana Cristina César, apesar da
rebeldia, aí se inscreve). Também Claudia Roquette-Pinto não se
afastou demasiado. Mérito que poucos poetas novos puderam ostentar
logo no início da carreira.
* André Seffrin é crítico
literário e ensaísta
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