Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

André Seffrin


 

Os cem melhores poetas brasileiros do século

Seleção de José Nêumanne Pinto
Geração Editorial
324 páginas

Todo final de década ou de século convida às revisões, às vezes tão oportunas quanto imprevistas e aleatórias. Este ano, ao que tudo indica, a poesia brasileira do século 20 parece chamar a atenção dos editores. E o primeiro livro a enfrentar o desafio é Os cem melhores poetas brasileiros do século, na seleção do poeta e jornalista José Nêumanne Pinto. O autor se confessa, desde o início, apenas “um poeta bissexto e um leitor de poesia”, portanto, como parece sugerir, pouco capaz para um projeto tão ambicioso. Uma tarefa inglória, é bom que se diga, sobretudo porque a reunião em volume do que seria o grande elenco da melhor poesia brasileira do século 20 é função que desafia espíritos mais afinados, um terreno inóspito ao diletantismo. Mas Nêumanne teve uma consciência muito clara dos seus limites. 

Talvez por isso seu texto de apresentação seja uma prova de humildade que, em certa medida, aponta para a precariedade do plano: “Quando comecei a consultar os livros disponíveis em minhas próprias estantes para dar o pontapé inicial à tarefa, a primeira imagem que me ocorreu foi a do adolescente 35 anos mais jovem e 20 quilos mais leve na calçada da exígua livraria das Edições de Ouro, à rua Irineu Joffily, em Campina Grande, Paraíba, folheando, avidamente, o pequeno e tosco volume da antologia de poesia brasileira, organizada por Manuel Bandeira e Walmir Ayala.”
Claro, ele assume romanticamente a função, e não há nada de errado nisso. O problema é que a sua honestidade de escritor, quase transparente no tom desarmado de seu texto, vai colidir de frente com a intenção pretensamente crítica e historiográfica que a antologia assumiu (provavelmente uma decisão editorial) nas mãos de Rinaldo de Fernandes com o auxílio de Sandra Moura. Rinaldo é autor dos textos de introdução e das notas biobibliográficas; Sandra é responsável pela pesquisa, revisão dos poemas e coordenação de direitos autorais. 

A seleção tem seus méritos, é provável que muitos deles fruto da fidelidade de Nêumanne às suas leituras mais caras. Todavia, se Joaquim Cardozo, Mário Quintana e Cecília Meireles comparecem com alguns dos seus poemas mais característicos e, no caso de Cardozo, com uma das obras-primas da literatura brasileira, o espaço que coube a Carlos Drummond de Andrade, Affonso Romano de Sant’Anna e Armando Freitas Filho parece pagar tributo à seriedade que se quis imprimir ao livro. Quanto a Drummond (“No meio do caminho”), revela Nêumanne: “O poema escolhido nem é o meu favorito, mas se impôs porque continua a desafiar a crítica e provocando rebuliço”, confessando que muitos amigos interferiram na coleta e muitos poemas figuram no livro por sugestão de colaboradores eventuais. 

Baseando-se em antologias antigas, principalmente na série canônica de Manuel Bandeira, o autor justifica, entre outras inclusões, a de Joel Silveira: “Bandeira já o incluíra numa antologia de bissextos, que repeti aqui, para representar todos os bissextos neste País de bissextos, mas não necessariamente tão bons como ele.” Na verdade, não é o único bissexto que aparece. Para ficar apenas naqueles que Bandeira elegeu, temos também aqui Pedro Dantas (Prudente de Morais, neto). Será mesmo que o Pedro Nava de “O defunto”, uma ausência doída, não merecia o espaço ocupado pelo mais que bissexto Joel Silveira? Quanto às “qualidades evidentes” de um poema de Antônio Girão Barroso, seria o caso de perguntar se elas justificam a inclusão de seu nome entre os cem melhores poetas - já que o livro não se chama os cem melhores poemas. A “geração  mimeógrafo” é representada por Chacal, maneira que Nêumanne encontrou de resistir “à pressão para incluir Ana Cristina César”, num imbróglio que talvez merecesse uma explicação menos cândida (para quem sabe ler as entrelinhas, tudo está dito). Nesse sentido, Cacaso poderia ter sido o fiel da balança, mas sequer foi lembrado. Como também não foram lembrados, nas seções das vanguardas, José Lino Grünewald e Theon Spanudis, este o eterno esquecido das antologias e compêndios. 

Ao lado de Ferreira Gullar, eles são talvez as grandes vocações poéticas de todo o movimento concreto-neoconcreto. Mas as eventuais ausências (entre tantas, a de Emílio Moura chama atenção) incomodam menos que a seleção forçada de cerca de dez ou quinze nomes de valor bastante discutível. Por outro lado, dá margem a especulações o que Nêumanne chama de a “sanha dos herdeiros”, tentando justificar certas ausências, uma vez que os únicos poetas que apresentam tais senões foram incluídos, e alguns vivos é que se recusaram.

Com respeito aos verbetes biobibliográficos, oscilam demais, ora extensos ora breves, cheios de considerações inúteis ou absurdas. Também a atualização dos dados bibliográficos deixa muito a desejar. Da mesma forma, não há critério para as notas de pé de página e os “textos introdutórios” às seções. A precariedade e a falta de método com que esses textos foram redigidos dispensa comentários.
 

José Nêumanne Pinto

 

 

Jorge Amado

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Wilson Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

André Seffrin


Ruy Espinheira, Sonetos

Talvez o que mais fascine na poesia de Ruy Espinheira Filho seja a naturalidade. E naturalidade no soneto é mais fascinante ainda. Gênero muito presente há séculos, mutante, o soneto é um desafio e sobretudo um risco. Poucos conseguem atravessar o Rubicão. Pedra de toque da poesia, o soneto condena ou consagra o poeta. 

No caso de Ruy, estamos novamente no esplendor do gênero. E a sua grandeza está, vale repetir, na sua naturalidade, na simplicidade do toque, do ritmo, da variação, do movimento. Natural, ou seja, sem pompas, sem adereços farfalhantes. Eventuais ademanes e franjas - e ele se permite a ousadia - longe estão do acessório, do adorno apenas. Tudo nele é matéria, e os seus jogos inusitados, a sua habilidade técnica, não procuram apenas atrair, mas conquistar. Conquistam e magnetizam o caminho do leitor. 

Sim, os jogos. O soneto a Jorge Luis Borges, já destacado por Hélio Pólvora, dá a medida das possibilidades instrumentais do autor. Nada de circunstancial, nada de efeitos gratuitos. As homenagens a Sosígenes Costa (há bem mais que homenagem naquele cristal de imagens e sons) e Antonio Brasileiro (uma espécie de arte-poética), a referência a Sá de Miranda (“Neste maio que finda, o sol é grande /como em Sá de Miranda”), assinalam algumas presenças nada circunstanciais, uma notável celebração do soneto, da poesia, da maravilha das releituras e das transleituras. Estas homenagens poderiam se estender, talvez a Camões, a Jorge de Lima, a Mário Quintana ou a Vinicius de Moraes, que aqui transitam nas entrelinhas, em reverências feitas de silêncio, senão com o fervor do último terceto do poema a Sosígenes, ao menos como afirmação e trânsito. Porque a literatura não é estática. Ela se move como a vida. 

Agora, com esta segunda edição do livro de 1998, revista e aumentada, Ruy Espinheira Filho marca uma nova data em nossa poesia contemporânea. Lembro de A rua dos cataventos, de Quintana, e do Livro de sonetos, de Renata Pallottini. Entre poucos mais, temos aí alguns picos da cordilheira. Dos sonetos de Ruy, ou melhor, da sua “tortura do esplendor da vida”, que nos oferece como ao efeito da luz a opala, saímos encantados. Estação de ida e volta. 

Rio, julho de 2000. 

 

Ruy Espinheira Filho

 

 

Artur Eduardo Benevides

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Benedicto Ferri de Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

André Seffrin

Jornal do Brasil

16.12.2000


 

Nas bordas das palavras 

Cláudia Roquette-Pinto burila a linguagem poética 

 
 
COROLA
Claudia Roquette-Pinto
Ateliê Editorial, 111 páginas
R$ 15,00

Depois dos acertos e desacertos dos livros anteriores, Claudia Roquette-Pinto publica o que se pode considerar o seu melhor livro. Apesar disso, a poesia de Claudia exige do leitor uma percepção aguda do caminho percorrido, de suas entrelinhas e de seus labirintos. Às vezes é quase hermética, o que não é bom. No geral, é bastante burilada e chega a alcançar, em muitos momentos, versos e poemas de alta qualidade. Corola é um livro importante na sua evolução literária, um livro que se destaca no cenário desigual da moderna poesia brasileira. Atualmente, quando a poesia parece cultivar um declarado horror ao lirismo e hibernar numa clara recusa à comunicação, ou quando não passa de simples exercício epigônico, este livro é, no mínimo, um acontecimento para essa nova geração que aos poucos vem se destacando e que nem sempre tem dado conta do recado.

Nesse tumulto de vozes indistintas, Claudia Roquette-Pinto realiza uma poesia exaustivamente trabalhada através de uma arte poética - se cabe a expressão - do risco. Uma arte poética que, no extremo, procura não se ver como arte poética e sim como uma tentativa de representação. Régis Bonvicino, no seu texto de ''orelha'' um tanto equivocado, aponta com acerto para as ''questões de representação'' de alguns versos do livro. Em linguagem mais próxima do chão, pode-se dizer que a poeta caminha na tentativa de desenhar o mundo no limite, testando as possibilidades da linguagem, sem aquela fé no poder da palavra tão ao gosto das gerações 50 e 60.

Na busca da palavra e do seu raio de alcance, Claudia costuma fazer algumas concessões como a de sacrificar a beleza de um verso para não prejudicar a harmonia de um recorte fragmentário, principalmente para não sacrificar a ''idéia'' do poema. Apesar disso, e talvez por isso, longe está de ser uma poeta descuidada do verso. O primeiro poema é exemplar nesse sentido, quando ''o dia inteiro perseguindo uma idéia'' leva-a aos labirintos dos labirintos em busca do fugidio (a poesia?), que talvez esteja ''por um fio, frágil e físsil, ínfimo ao infinito'', no tudo-nada de que o poeta dispõe: ''o rosto desta última flor'' (a linguagem?) que, mais adiante, noutro poema, reconhece, é ''a única que existe''. 

Seja no belo culto a Novalis (''Isto, enquanto imprimo/os teus Hinos à noite/nestas folhas ordinárias,/palavra por palavra coagulando...'') ou no sombrio ''(dia das mães)'', ou mesmo no vário quadro de referências à poesia universal que atravessa o livro, o poeta caminha ''na borda das palavras,/ tentando não morrer.'' Porque ''isso de escrever é jogo/perdido de antemão, no mano a mano.''

É poesia de altas percepções, de instantâneos que se fragmentam para a recomposição final, dando lugar ao grande mosaico feito de recortes da consciência, de retalhos de retratos, de sombras e de luzes reflexas, um estranho e sedutor mapa íntimo. Ao contrário do que costuma acontecer com alguns poetas de sua geração, Claudia não cai naquela tão comum esgrima sonora de palavras, ofuscante e vazia de sentido. A sinestesia, determinadas recorrências de imagens (''o áspero das cigarras'', ''a serra elétrica das cigarras'', ''buquê de ruídos'', ''serrote do delírio'' etc) ou de palavras (''grilo'', ''lixa'' etc) que remetem a uma acústica semelhante, ajudam a compor a rede simbólica que é pano de fundo para a composição da paisagem natural, onde o poeta é ''refém do instante'' em que escreve, ''vizinho do flagrante''. Esta é a casa do poeta, na sua crise de ''representação''.

Vale a pena citar: ''Para que tijolos, toda esta geometria,/que faz da paisagem um deserto de cintilações espontâneas?/De linhas retas apenas/o fio que desenrolo,/exausta embora atenta,/sem conhecer a mão/que o estende na outra ponta.'' Um belo exemplo de poesia existencial, metafísica, dramática (''Escrita,/ é sempre você quem me resgata...'') que se conjuga num referencial vasto e vário. No que diz respeito à voz feminina, ela atesta uma temperatura que, nos últimos 20 ou 30 anos de Brasil, só conseguíamos medir pelos termômetros de Lupe Cotrim Garaude, de Zila Mamede e de Maria Angela Alvim, vozes cristalizadas pela morte. Ou pelas permanências de Renata Pallottini, Hilda Hilst, Lélia Coelho Frota, Olga Savary e Astrid Cabral, que publicou recentemente sua obra reunida, De déu em déu (Sette Letras, 1998), sem a devida atenção da crítica - ou do pouco que resta dela.

Claudia Roquette-Pinto não deixa de ser uma continuidade energizada da poesia feminina brasileira, cujo parâmetro inicial se reconhece em Cecília Meirelles e Henriqueta Lisboa. Os caminhos percorridos pelas gerações posteriores, embora trilhados de maneira diversa, não se afastaram muito dessas fontes, ou seja, daquilo que melhor se realiza no gênero em nosso país (Ana Cristina César, apesar da rebeldia, aí se inscreve). Também Claudia Roquette-Pinto não se afastou demasiado. Mérito que poucos poetas novos puderam ostentar logo no início da carreira.

* André Seffrin é crítico literário e ensaísta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

André Seffrin


VISIBILIA
Rodrigo Garcia Lopes
Sette Letras, 65 p.
 

Com a publicação de Visibilia, Rodrigo Garcia Lopes depura muito de sua matéria e de suas perspectivas de estréia. Em Solarium (Iluminuras, 1994), o poeta pagava um pesado tributo a seus mestres. A presença fantasmal de Paulo Leminski, por exemplo, quase não aparece nesta via de silêncios, pausas e revérberos do novo livro (exceto no ritmo de um poema como “tudo do espaço/ É passado (...)”, p. 19, onde ainda se faz notar). E é natural que um poeta jovem do Paraná se mostre medusado pela presença do autor de Distraídos venceremos (infelizmente cultuado por uma tribo messiânica, delirante e medíocre). Dessa diluição, Rodrigo Garcia Lopes se salva em Visibilia.

Solarium deve ser lido nas limitações da estréia, um baú de tudo, necessário no caminho para o depuramento de agora. O poeta hoje é outro. Livre da contenção exagerada e da retórica (ver “Solarium”, terceira parte do livro homônimo), livre dos exercícios e dos entraves das influências ainda muito aparentes.

Tradutor de Sylvia Plath (a quatro mãos com o poeta Maurício Arruda Mendonça) e de Rimbaud, estes são, inicialmente, os poetas que podem ser encarados como paradigmáticos de sua formação. No seu ensaísmo também encontramos outras vozes determinantes de sua gênese no livro Vozes & visões: Panorama da arte e cultura norte-americanas hoje (Iluminuras, 1996). Afora o que publicou na imprensa nos últimos dez anos, sobre Sylvia Plath principalmente, e sua tese de mestrado sobre William Burroughs.

É de se assinalar a ascendência do ensaísta sobre o poeta, que ainda pesa em Rodrigo. De certa forma, o tom erudito que costuma orquestrar os movimentos, seja na idéia estrutural dos livros, seja na construção nuclear das subdivisões ou mesmo no fundamento de muitos dos poemas, marca a presença do ensaísta no poeta. Em Visibilia o poeta não conseguiu ainda desvencilhar-se totalmente dessa eminência parda, desmagnetizado às vezes no jogo de palavras e no primarismo de determinadas soluções (nesse sentido, ver os últimos versos do poema “Fugaz”, que dá título à segunda parte do livro). Desde a célebre epígrafe de Paul Klee (“A arte não inventa a natureza. Ela a torna visível”), Visibilia respira a rarefeita atmosfera da erudição. É como se o poeta só admitisse transitar nas altas esferas. Não se trata aqui de condenar uma natureza, mas de perceber onde nela se ausenta a naturalidade. Subjugado pelo ensaísta, o poeta como que se mostra na armadura dos esquemas, amordaçando um temperamento dado a explosões líricas. Em vários momentos, é seu cerebralismo que se recusa ao sentido cristalizador que propicia os melhores instantâneos, se recusa às “pérolas na orla do olhar” que o habitam.

Sua poesia é da instantaneidade e da fugacidade do tempo e das coisas, lapidar na forma, o que pode levar ? no caso de um jovem ? a um estrangulamento da matéria e da voz. Mas ainda assim, estamos diante de um lírico ardente movendo-se no sentido da sedimentação de um universo. Isto que, nas palavras do ensaísta-poeta, quer dizer: “O ‘eu lírico’ não subsiste num mundo de fluxos e superfícies vazias/ que o olho mal consegue acompanhar/ enquanto a verdadeira face da vida começa a dar as caras./ Evaporaram-se os dados precisos e algo mágicos que a poesia exibia”.

Apesar de um certo hermetismo e de algumas concessões ao banal e ao prosaico, Visibilia pode ser visto como um passo seguro de Rodrigo Garcia Lopes, que está entre os bons poetas dessa geração que hoje tem por volta de 35 anos. Já se destaca sobretudo pela sabedoria técnica e pela valorização do ritmo interior do poema. Importante: sem o medo do adjetivo ornamental e das fulgurações, medo este que parece reger a poesia moderna, dentro de sua pobreza estilística.

 

[André Seffrin é crítico literário e ensaísta. Colaborador de diversos jornais e revistas, entre eles o caderno Idéias-Livros, do Jornal do Brasil, e a revista Manchete].
 
 

Tiziano, O sagrado e o profano