André Seffrin
ANTONIO CARLOS VILLAÇA
entrevista concedida a André Seffrin
Ele
completou setenta anos em agosto. Nasceu a 31 de agosto de 1928, no
Rio de Janeiro. Escreveu cerca de duas dezenas de livros, colaborou
muito para jornal e revista e é tido pela crítica como um dos mais
importantes memorialistas brasileiros de todos os tempos. Mora
sozinho num apartamento da Praia do Flamengo, segundo ele, o seu
mirante. Viaja constantemente, sempre viajou. Nos anos 60, esteve na
Europa e nos Estados Unidos. O Brasil ele percorreu de norte a sul,
do sítio “Não me deixes”, de Rachel de Queiroz, no sertão do
Ceará, ao Hotel Majestic, em Porto Alegre, onde residia o poeta Mário
Quintana.
Estreou com uma pequena biografia do Barão de Rio Branco, Perfil de
um estadista da República (edição do autor, 1945). Em 1962
organizou um livro sobre o poeta romântico Junqueira Freire para a
coleção Nossos Clássicos (Agir). Como memorialista estreou com O
nariz do morto (JCM, 1970; Rocco, 1975; Ediouro, 1990 e 1996), ao
qual se seguiram O anel (Editora Rio, 1972), O livro de Antonio (José
Olympio, 1974), Monsenhor (Brasília/Rio, 1975), Degustação (José
Olympio, 1994) e Os saltimbancos da Porciúncula (Record, 1996).
Como Junqueira Freire, Carlos Heitor Cony ou João Silvério
Trevisan, fez da frustrada vida religiosa uma das suas permanentes
indagações de escritor. Sobre esse tema que é a espinha dorsal de
sua obra, Edmilson Caminha acaba de publicar Villaça: Um noviço na
solidão do mosteiro, livro que reúne depoimentos e entrevistas. Em
setembro, a Lacerda Editores lança Diário de Faxinal do Céu, que
são as memórias das suas longas estadas em Faxinal do Céu, no
Paraná, onde faz conferências. Machado de Assis, Getúlio Vargas,
Joaquim Nabuco ou Carlos Lacerda, são alguns dos seus temas, e ele
fala de improviso, ao sabor das lembranças.
No campo do ensaio escreveu livros fundamentais: História da questão
religiosa (Francisco Alves, 1974), O pensamento católico no Brasil
(Jorge Zahar, 1975), Tema e voltas (Hachette, 1975), Literatura e
vida (Nova Fronteira, 1976), Místicos, filósofos e poetas (Imago,
1976) etc. Escreveu também uma biografia de Alceu Amoroso Lima, O
desafio da liberdade (Agir, 1983). E escreveu ainda a biografia, em
vias de publicação, de uma de suas maiores admirações: José
Olympio, seu amigo e editor.
Em O nariz do morto, considerado sua obra-prima, ele relata os anos
passados no mosteiro. A sua crise existencial sob os muros do
mosteiro ele condensou em páginas de angústia, dilaceração e
denso lirismo. São páginas lancinantes. Muitos escreveram sobre
sua obra e sua posição importantíssima na literatura brasileira
deste século: os poetas Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de
Andrade, o crítico Wilson Martins, o romancista Octávio de Faria.
Conviveu com Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, Augusto Frederico
Schimidt, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Pedro Nava. Na livraria
José Olympio, conversava todas as tardes com Graciliano Ramos.
Gosto da vida, gosto de gente, escrevia ele em 1970. Reafirma hoje
as palavras de quase trinta anos atrás e é um interlocutor atento
da nova geração de escritores.
Nos livros ou em entrevista, ele abre as comportas de uma vida toda
dedicada à literatura. A oratória o fascina como gênero. Mas ele
fala como escreve, e escreve como fala, com a mesma espontaneidade.
Avesso à eletrônica, escreveu todos os seus livros numa pequena máquina,
que bate com um único dedo. Poucos como ele conhecem a literatura
brasileira numa visão panorâmica e tão a fundo. Leu praticamente
tudo, e sabe falar do que leu, viveu e ouviu em décadas dedicadas
ao convívio dos livros e das gentes.
1
- Fazer setenta anos o impressiona? Quando fazia cinqüenta você
falava de certa voluptuosidade diante da vida e diante da morte. E
agora?
Ainda tenho certa voluptuosidade em face da vida. E em face da
morte. Agora, continuo a amar a vida. Léon Bloy, que parecia um
grande angustiado, dizia que tudo que acontece é adorável e tinha
uma grande curiosidade diante da morte. A morte é sedutora.
2
- Há vinte anos também dizia não gostar de reler o que escreveu.
Já releu O nariz do morto ou qualquer outro de seus livros?
Reli apenas fragmentos. Não gosto de reler.
3
- Ainda prefere O anel, entre todos que escreveu?
Prefiro O anel. É o livro em que me soltei mais. Ousei mais.
4
- Diário de Faxinal do Céu é também um livro de memórias ou é
um relato de suas longas estadas na cidade paranaense? Quem são os
seus personagens desta vez?
São memórias de Faxinal do Céu, na serra paranaense. Aparece o
Marco Lucchesi, aparece Natália Timberg. O filósofo Claudio
Ulpiano. O Affonso Romano. O Domício Proença.
5
- Renega algum livro antigo?
Não, não renego.
6
- Que impressão tem de seus contemporâneos?
Os homens são melhores do que imaginamos. Ou menos perigosos do que
supõe a nossa desconfiança. Confiar, confiar.
7
- Você certa vez me disse que na juventude chegava a ler cinco
livros por dia, tal era a fome do conhecimento, o desespero. Você
ainda lê muito?
Leio pouco, hoje. Muito menos do que lia, outrora. Não tenho mais
nem mesmo vista.
8
- O ensaio que você escreveu para a edição Aguilar da obra de
Gilberto Freyre é um texto evocativo, de admiração e respeito.
Fale um pouco do fascínio gilbertiano.
Gilberto Freyre era fascinante. Era temperamental. Era dengoso. Era
carente ao extremo. Muito tímido. Um conversador genial. Me dava a
sensação de gênio. Força da natureza, desmedida, extralimitação.
Pura genialidade. Era um libertino renascentista. Muito erótico.
9
- De Junqueira Freire a Antonio Carlos Villaça, Carlos Heitor Cony
ou João Silvério Trevisan, tivemos a confluência entre a vida
religiosa e a vida literária. Trata-se, sobretudo, de uma crise. Na
literatura brasileira essa confluência é vasta a ponto de merecer
um estudo?
Sim, vasta. Temos Antonio Olinto, Xavier Placer com o romance A
escolha, o primeiro Antonio Torres, mulato de talento, grande
escritor, amigo de Gastão Cruls, que lhe publicou as cartas, de
Gilberto Amado, de Gilberto Freyre, temos o poeta Severiano de
Resende, admirável, quase clochard em Paris, sujo, sem dinheiro,
mordendo os amigos.
10
- Samuel Rawet escreveu um dia sobre o equilíbrio que você manteve
entre essas duas fogueiras, a do “apetite do cotidiano” e a do
“apetite do Absoluto”. Percebeu a “intranqüilidade
permanente” que marca o seu temperamento. Hoje você parece mais
sereno. Estou enganado?
Não, não está equivocado. A idade nos pacifica. Estou mais
sereno. Ou menos inquieto. Ou menos angustiado. Ou menos
desesperado.
11
- Quando li O pensamento católico no Brasil senti como se estivesse
lendo o grande romance do pensamento católico, com personagens
vivos e marcantes. Como e por que escreveu esse livro?
Escrevi por encomenda do Jorge Zahar, o editor. Escrevi em um mês.
Pediu duzentas páginas. Fiz logo. Diretamente à máquina. Lá no
velho Hotel Bela Vista, Santa Teresa. Franklin de Oliveira fez a
orelha.
12
- Você escreve crítica como quem escreve memórias. Sua crítica
é evocativa, de um lírico. Como se vê como ensaísta e crítico?
Sou um poeta do ensaio e da crítica. Um menino guloso. Um
passeador. Sou mesmo é um giróvago. Um andarilho do espírito.
13
- O Villaça que exerceu a crítica tinha os seus modelos, seus críticos
preferidos? Alceu Amoroso Lima era um deles?
Sem dúvida, Alceu era meu mestre. Que ligação entre nós. Um
guru. Um modelo. Na literatura e na vida. Senti tanto a sua morte.
Ele estava muito sofrido na morte. Como Guimarães Rosa. Como
monsenhor Joaquim Nabuco Filho. Expressão de angústia. Gilberto
Amado, não. Estava lépido. Fagueiro. Ó minha comadre...
14
- Como vê a obra de Alceu hoje?
Como um capítulo da história de nossa crítica e de nossa ensaística
de idéias.
15
- Que livros de Alceu merecem reedição?
Os mais líricos, os elegíacos, os íntimos, os pessoais, como O
Cardeal Leme, o João XXIII, o Europa de hoje, os Companheiros de
viagem...
16
- Você vê alguma grande injustiça na literatura brasileira deste
século?
Adelino Magalhães é tão pouco lido.
17
- Quem merece ser reeditado para os tempos que estamos vivendo?
Penso nos romances cosmopolitas de um José Geraldo Vieira,
esgotados.
18
- Na ficção brasileira contemporânea algum poeta ou ficcionista
chama a sua atenção?
O poeta é Foed Castro Chamma. O ficcionista seria Maria José de
Queiroz, mineiríssima e quase parisiense.
19
- Que conselho daria a um jovem escritor?
Seja você mesmo. E escreva muito. Alceu dizia que a qualidade nasce
da quantidade. Talvez. É preciso escrever muitos capítulos para
que de repente surja o capítulo imperecível, único.
Publicado
na revista BLAU n. 24, janeiro de 1999.
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