Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

André Seffrin


 

O que Luís Antonio nos vem dizer
 

É uma surpresa a presença de Luis Antonio Cajazeira Ramos no cenário de nossa poesia contemporânea. Se as novas gerações foram pouco a pouco perdendo contato com as fontes geradoras da poesia e principalmente com a tradição, Luis Antonio faz a sua estréia dando uma lição de poesia e de domínio das formas fixas, com ênfase no soneto. Sem medo dessa espécie de camisa-de-força, corre os maiores riscos para alcançar os melhores resultados. Há cerca de 60 anos, Vinicius de Moraes e Mario Quintana reabilitaram o soneto para o espírito moderno. 

Trabalhando basicamente essa forma-fôrma, já de início Luis Antonio merece um olhar diferente do público e da crítica. Sobretudo porque se trata de um estreante senhor de seus recursos. Recursos comuns somente em autores com muito mais tempo de estrada.

Na orquestração de seu vasto imaginário, o poeta se impõe de imediato na esteira de uma nova vanguarda: aquela que busca reabilitar o verso. Sua dicção estranha mescla diversos estilos de época, ao ponto de parecer um extemporâneo. Guarda, sim, algumas semelhanças e identidades, mas não seria exagero dizer que se parece com muitos e com nenhum. Sobre este aspecto, sentencia Assis Brasil: trata-se de um poeta sem epigonismos. Arrisco dizer que Luis Antonio é uma espécie de ancestral de Gregório de Matos Guerra e de Augusto dos Anjos, mergulhado no burburinho contemporâneo, no furor das ruas, no redemoinho deste tempo. Para usar uma de suas mais belas imagens, um tempo de fiat breu. 

Maduro na técnica, é um poeta de grande riqueza verbal e tem o sentido do encantatório e a serenidade das medidas. Nos infinitos torneios verbais que executa com mestria, há um domínio incomum da matéria, espantosa bagagem que arranha o mediúnico, própria dos verdadeiros poetas. E talvez seja mesmo a imprecação, destacada por Hélio Pólvora, uma das características mais fortes de sua poesia. 

Crispado, agônico, sátiro, o poeta caminha sem medo de ferir ou ferir-se, aberto ao universo íntimo tanto quanto às intempéries do mundo. Não será à toa um conterrâneo do já citado Gregório de Matos e de Castro Alves. Viaja no coração da rua como participante indignado, e não faz concessões, não se deixa abraçar pelas facilidades. Talvez por isso exija muito do leitor, que só aos poucos penetra na selva escura de sua insólita música, misto de escuridão e luz, concha de ressonâncias em que a memória é casa e espanto, riso e risco.
 

ANDRÉ SEFFRIN

Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 1998.

Luís Antonio Cajazeira Ramos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

André Seffrin

Jornal do Brasil

6.2.1999


Bernardo Ajzenberg

 

Mergulho no inferno 
da própria memória 

Bernardo Ajzenberg acerta na narrativa, 
explora alguns ângulos obscuros e constrói sólidos 
personagens ao som de Bach em "Variações Goldman" 

VARIAÇÕES GOLDMAN
Bernardo Ajzenberg
Rocco, 307 páginas
R$ 29

 

 
De maneira um tanto maliciosa, um dos personagens de Variações Goldman faz uma referência ao Dom Casmurro. Os pontos em comum existentes entre o novo romance de Bernardo Ajzenberg e o clássico de Machado de Assis são aí de certa forma exorcizados: Dorieta, moça de olhos "tristes e improváveis", denuncia o casmurro Silvio Goldman. Narrado em primeira pessoa por Silvio, o romance é uma história em retrospectiva. A história do amor de Silvio e Dorieta tem toda sua carga de desastres contada pelo próprio Silvio a um de seus sobrinhos (talvez aquele que tenha herdado seus traços). Em sua busca de si mesmo, em meio a escombros, o narrador afirma bruscamente no último capítulo: "A memória arrasa a vida de um homem, aí está". Os avanços e recuos, as maquinações, devaneios e "variações" por que passa a narrativa devem ser creditados ao atormentado personagem, para o qual só os sobrinhos importam neste momento: "Só eles podem suspender a imersão que faço periodicamente em meu próprio inferno - minha memória (...)". Variações Goldman parece ter sido escrito do fim para o início, e nesse aspecto todos os romances de Ajzenberg se parecem. Daí um certo descompasso inicial, que cansa um pouco o leitor, quadro logo revertido e plenamente justificado quando não desistimos da leitura. 

O título é uma analogia com as Variações Goldberg, de Bach, na interpretação de Glenn Gould, que "toca essa música - diz um dos personagens de Ajzenberg - como se fosse uma trilha sonora de morte e melancolia". Encarado como uma trilha sonora de morte e melancolia, Variações Goldman, no entanto, guarda outras referências não menos importantes. Uma delas é a do romance Der Untergeher (O náufrago, de Thomas Bernhard), sendo traduzido por Dorieta, a que traz "a dor no nome" e diz a certa altura: "Não há razão para ficar preocupado, meu marido. Este naufrágio é o meu naufrágio, Silvio, não o seu. Der Untergeher, eu li: aquele que soçobra, sempre e continuamente, sem jamais chegar ao fundo do mar."

Bem construído, o romance se singulariza mais pela densidade humana do que propriamente pela técnica. O romancista nele é mais que um condutor experiente de uma trama, é antes um criador de almas, de atmosferas, de situações-limite e de suspense. Bernardo Ajzenberg alia mestria técnica àquilo que caracteriza o verdadeiro criador ficcional: o poder de imprimir vida aos seus personagens, de criá-los de maneira que se movam por conta própria, escapem ao seu governo de autor e cresçam a nossos olhos. São seres que aos poucos se vão revelando em crescente tensão.

Nos romances anteriores, podemos perceber não apenas uma evolução no sentido do aperfeiçoamento da técnica narrativa, mas uma construção que talvez revele um processo subliminar. O romancista andava à procura de si mesmo e parece agora ter encontrado o seu caminho. Parece agora estar em seu elemento. Seu primeiro romance, Carreiras cortadas (1989), é uma trama policial que ainda pouco revela da índole do ficcionista de Efeito suspensório (1993), livro escrito em tom monocórdio, quase um conto. Há um adensamento psicológico em Goldstein & Camargo (1994), mas só em Variações Goldman o romancista vai se realizar plenamente naquilo que vinha se propondo. Sem dúvida Goldstein & Camargo antecipa boa parte do que agora podemos ler em Variações Goldman, sobretudo no que diz respeito a alguns temas recorrentes no autor: a questão judaica, a sondagem interior, a loucura ou o estranhamento humano.

Aí talvez esteja uma das faces mais reveladoras da sua personalidade de escritor. Ajzenberg parece pertencer a uma vertente maldita da literatura brasileira, à qual podemos filiar escritores tão díspares e contrários quanto Lúcio Cardoso, Octávio de Faria, Gustavo Corção, Carlos Heitor Cony ou Antonio Callado, existencialistas cada qual à sua maneira, mas identificados aqui como biógrafos das paixões e aberrações humanas, analistas dos temores e tremores humanos, do desassossego do homem diante do seu tempo restrito, diante da morte. Uns mais, outros menos, poderão ser chamados de romancistas cristãos, que, todavia, não é o caso de Ajzenberg, embora nele os problemas religiosos também estejam presentes.

Carente de sangue e nervos, o romance brasileiro contemporâneo ganha com Bernardo Ajzenberg um herdeiro dessa ficção de cunho psicológico. Seus pares atuais podem se chamar Bernardo Carvalho ou Silvio Fiorani. Como este, Ajzenberg empreende uma poderosa auto-análise (em ambos os casos, nos livros mais recentes). Com aquele traz algumas coincidências na abordagem do lado mais tenebroso da condição humana: as aberrações, a loucura, o medo. Nessa fixação das obsessões e desvios dos seres, há um intimismo que se prende às grandes questões do nosso tempo, sobretudo morais.

Quanto à linguagem, o autor se distancia um pouco do estilo mais refinado de Carvalho e Fiorani, estando mais próximo do jeito um tanto tosco e pedregoso de um Octávio de Faria, cuja grandeza está justamente nos andamentos polifônicos e na vibração que imprime aos personagens e ambientes. Quase uma constante nos romancistas acima referidos, é a capacidade de criarem almas femininas, algo que Bernardo Ajzenberg perseguiu agora - e que em certa medida conquistou no perfil de Dorieta, personagem singular, sobretudo se contrastado com o fundo esmaecido que as outras figuras femininas do livro compõem. 

Variações Goldman amplia e redimensiona muitas propostas (de tema e contratema) dos romances anteriores do autor, abordadas até então de maneira incipiente. Em que pese alguns clichês e pirotecnias, estamos diante de um romance que merece a nossa admiração

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

André Seffrin

Jornal do Brasil

27.2.1999


José Alcides Pinto

 

Um romancista a 
ser redescoberto 

Publicado nos anos 60 e 70, 
José Alcides Pinto volta a chamar a 
atenção com o seu neoregionalismo fantástico 

LITERATURA BRASILEIRA

TRILOGIA DA MALDIÇÃO
José Alcides Pinto
Topbooks, 345 páginas
R$ 29

 ANDRÉ SEFFRIN 

Foto de Divulgação

José Alcides Pinto elegeu o seu chão natal, São Francisco do Estreito, norte do Ceará, para cenário da sua Trilogia da maldição: O dragão foi publicado pela primeira vez em 1964, Os verdes abutres da colina e João Pinto de Maria: Biografia de um louco, num volume único, em 1974. São livros que podem ou não ser lidos na ordem preestabelecida pelo autor. São em resumo variações sobre a mesma história, cujos fatos não se desdobram de uma maneira linear ou mesmo cronológica, onde tudo converge para um único palco e seus míticos personagens. 

Mas o grande personagem de José Alcides Pinto é antes a sua linguagem, cristalizada no solo mais fértil, aquele que reconhecemos apenas nos grandes escritores: o seu drama íntimo. E este drama pode estar consignado num dos motes mais constantes de toda sua obra, aquilo que ele chama de "mal de origem", que o acompanha como acompanha todas as suas criaturas. Quanto ao enredo propriamente, quase todos os seus romances podem ser encarados como um longo e insistente remoer a respeito do destino do homem e da liberdade (tema dos temas, da literatura em qualquer época). O homem e sua vida enclausurada no sonho, no enigma, o homem e sua liberdade precária, nos labirintos gozosos do amor e do sexo, o homem e seu espanto diante da morte. Escavador de almas, José Alcides Pinto é um esquadrinhador do vasto coração humano que teima em inventar mitos para resistir e sobreviver. Seu temperamento lírico o preserva dos possíveis deslocamentos desse eixo. 

Autor de obra múltipla, escreveu dezenas de livros entre poesia, ficção, ensaio e teatro. Como poeta, foi o introdutor do concretismo no Ceará, muito embora seu temperamento poético nada preserve desse episódio - é antes o poeta do escatológico, do simbólico e do surreal, herdeiro de Rimbaud, Lautréamont, Baudelaire e Artaud. Como ficcionista, publicou contos e mais de uma dezena de romances. De uma maneira genérica, podemos afirmar que Trilogia da maldição situa-se num neo-regionalismo fantástico que ainda não foi observado devidamente em seu contexto, fato que tem empobrecido a avaliação crítica das novas correntes de nossa ficção.

 O caso de Alcides Pinto é singular: ele não precisou abandonar a poesia para exercer-se como ficcionista, muito menos o ficcionista nele se deixa subjugar pelo poeta. Há poetas que só se realizaram na ficção, como Lúcio Cardoso, e há poetas que souberam se manter nas duas águas: Lêdo Ivo, Walmir Ayala, Hilda Hilst, Judith Grossmann e Ruy Espinheira Filho são bons exemplos disso, como ainda, recuando um pouco no tempo, o Jorge de Lima dos anos 30 e 40. Em Calunga, Jorge parece ter desbravado um caminho que depois seria também percorrido pelo José Alcides Pinto de O dragão, romance um tanto imaturo se levarmos em conta a sua busca de uma solução para o impasse da linguagem. Os verdes abutres da colina e João Pinto de Maria vencem este e outros problemas, quando então o autor se encontra plenamente na sua linguagem.

 Se a literatura é antes de tudo uma aventura de linguagem, com Os verdes abutres da colina o autor encontrou a medida certa para o desafio genesíaco de sua história. Uma história que vai aos poucos se entranhando na alma do leitor e sujeitando-o à sua magia. A história de uma aldeia de seres fabulosos que vivem 150 anos, assolada pela maldição, ameaçada por verdes abutres que habitam a serra do Mucuripe, demônios alados, e por seres destemperados pelo "mal de origem". Aldeia fundada por Antônio José Nunes, "garanhão luso", do qual João Pinto de Maria é neto. Aldeia cuja história quis inutilmente deixar registrada o Asceta, padre Anastácio Frutuoso da Frota, avô de padre Tibúrcio. Livro de leitura inesquecível, Trilogia da maldição é uma fascinante alegoria escrita com a percepção do fantástico que se aninha na mais crua realidade, onde tudo esbarra "no fabuloso das lendas".

 José Alcides Pinto inscreve a sua história individual, de homem de São Francisco do Estreito, terras do dragão, nas páginas da literatura universal. Transfere todo um mundo de miséria, de secas, enchentes e desmandos políticos, para o plano extraordinário da ficção. Na criação de uma mitologia própria, num ritmo muitas vezes encantatório, o autor arregimenta um mundo de proporções dilatadas, em que a técnica romanesca parece nascer de um atavismo, de uma espontaneidade telúrica. O dragão antecipa uma história que nos romances seguintes atingirá sua verdadeira têmpera, mas já traz o sabor e as sinuosidades que marcam todo o percurso das três narrativas que, reunidas, vêm dar a verdadeira dimensão da obra. Apesar de independentes, os enredos se intercambiam, crescem nas digressões e atingem juntos um simbolismo até hoje raro na ficção brasileira.

 Em boa hora estamos novamente presos ao seu encanto, e de uma maneira que se fazia necessária. Vale assinalar ainda que, na multiplicidade da sua produção, José Alcides Pinto realiza também uma ficção introspectiva, corrente que de uma maneira convencional passamos a chamar de intimista. Nela a presença do psicológico condiciona o quase abandono do fantástico e do regional. Noutra trilogia, Tempo dos mortos (Estação da morte, O enigma e O sonho), ele parece ter escrito algumas das melhores páginas de nossa ficção expressionista, sobretudo no segundo livro, O enigma. Autor de bibliografia extensa, em grande parte publicada por editoras de pequeno porte, José Alcides ainda aguarda avaliações críticas de tudo que produziu e sobretudo edições à altura de sua importância. Além de se perder nas publicações esparsas e desencontradas no tempo, e por conta de alguns desníveis de qualidade (comuns em qualquer autor prolífico), suscitou em torno de seu nome um certo preconceito das altas esferas do mundo literário. Isto não justifica, de maneira alguma, o quase anonimato a que foi relegado em nossos dias. Ele é um clássico do nosso tempo, e se o Brasil hoje o desconhece é porque desconhece a si próprio.

José Alcides Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

André Seffrin


ANTONIO CARLOS VILLAÇA
entrevista concedida a André Seffrin

Ele completou setenta anos em agosto. Nasceu a 31 de agosto de 1928, no Rio de Janeiro. Escreveu cerca de duas dezenas de livros, colaborou muito para jornal e revista e é tido pela crítica como um dos mais importantes memorialistas brasileiros de todos os tempos. Mora sozinho num apartamento da Praia do Flamengo, segundo ele, o seu mirante. Viaja constantemente, sempre viajou. Nos anos 60, esteve na Europa e nos Estados Unidos. O Brasil ele percorreu de norte a sul, do sítio “Não me deixes”, de Rachel de Queiroz, no sertão do Ceará, ao Hotel Majestic, em Porto Alegre, onde residia o poeta Mário Quintana. 
Estreou com uma pequena biografia do Barão de Rio Branco, Perfil de um estadista da República (edição do autor, 1945). Em 1962 organizou um livro sobre o poeta romântico Junqueira Freire para a coleção Nossos Clássicos (Agir). Como memorialista estreou com O nariz do morto (JCM, 1970; Rocco, 1975; Ediouro, 1990 e 1996), ao qual se seguiram O anel (Editora Rio, 1972), O livro de Antonio (José Olympio, 1974), Monsenhor (Brasília/Rio, 1975), Degustação (José Olympio, 1994) e Os saltimbancos da Porciúncula (Record, 1996). 
Como Junqueira Freire, Carlos Heitor Cony ou João Silvério Trevisan, fez da frustrada vida religiosa uma das suas permanentes indagações de escritor. Sobre esse tema que é a espinha dorsal de sua obra, Edmilson Caminha acaba de publicar Villaça: Um noviço na solidão do mosteiro, livro que reúne depoimentos e entrevistas. Em setembro, a Lacerda Editores lança Diário de Faxinal do Céu, que são as memórias das suas longas estadas em Faxinal do Céu, no Paraná, onde faz conferências. Machado de Assis, Getúlio Vargas, Joaquim Nabuco ou Carlos Lacerda, são alguns dos seus temas, e ele fala de improviso, ao sabor das lembranças.
No campo do ensaio escreveu livros fundamentais: História da questão religiosa (Francisco Alves, 1974), O pensamento católico no Brasil (Jorge Zahar, 1975), Tema e voltas (Hachette, 1975), Literatura e vida (Nova Fronteira, 1976), Místicos, filósofos e poetas (Imago, 1976) etc. Escreveu também uma biografia de Alceu Amoroso Lima, O desafio da liberdade (Agir, 1983). E escreveu ainda a biografia, em vias de publicação, de uma de suas maiores admirações: José Olympio, seu amigo e editor.
Em O nariz do morto, considerado sua obra-prima, ele relata os anos passados no mosteiro. A sua crise existencial sob os muros do mosteiro ele condensou em páginas de angústia, dilaceração e denso lirismo. São páginas lancinantes. Muitos escreveram sobre sua obra e sua posição importantíssima na literatura brasileira deste século: os poetas Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de Andrade, o crítico Wilson Martins, o romancista Octávio de Faria.
Conviveu com Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, Augusto Frederico Schimidt, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Pedro Nava. Na livraria José Olympio, conversava todas as tardes com Graciliano Ramos. Gosto da vida, gosto de gente, escrevia ele em 1970. Reafirma hoje as palavras de quase trinta anos atrás e é um interlocutor atento da nova geração de escritores.
Nos livros ou em entrevista, ele abre as comportas de uma vida toda dedicada à literatura. A oratória o fascina como gênero. Mas ele fala como escreve, e escreve como fala, com a mesma espontaneidade. Avesso à eletrônica, escreveu todos os seus livros numa pequena máquina, que bate com um único dedo. Poucos como ele conhecem a literatura brasileira numa visão panorâmica e tão a fundo. Leu praticamente tudo, e sabe falar do que leu, viveu e ouviu em décadas dedicadas ao convívio dos livros e das gentes.
 

1 - Fazer setenta anos o impressiona? Quando fazia cinqüenta você falava de certa voluptuosidade diante da vida e diante da morte. E agora?
Ainda tenho certa voluptuosidade em face da vida. E em face da morte. Agora, continuo a amar a vida. Léon Bloy, que parecia um grande angustiado, dizia que tudo que acontece é adorável e tinha uma grande curiosidade diante da morte. A morte é sedutora.

 

2 - Há vinte anos também dizia não gostar de reler o que escreveu. Já releu O nariz do morto ou qualquer outro de seus livros?
Reli apenas fragmentos. Não gosto de reler.

 

3 - Ainda prefere O anel, entre todos que escreveu? 
Prefiro O anel. É o livro em que me soltei mais. Ousei mais.

 

4 - Diário de Faxinal do Céu é também um livro de memórias ou é um relato de suas longas estadas na cidade paranaense? Quem são os seus personagens desta vez?
São memórias de Faxinal do Céu, na serra paranaense. Aparece o Marco Lucchesi, aparece Natália Timberg. O filósofo Claudio Ulpiano. O Affonso Romano. O Domício Proença.

 

5 - Renega algum livro antigo?
Não, não renego. 

 

6 - Que impressão tem de seus contemporâneos?
Os homens são melhores do que imaginamos. Ou menos perigosos do que supõe a nossa desconfiança. Confiar, confiar.

 

7 - Você certa vez me disse que na juventude chegava a ler cinco livros por dia, tal era a fome do conhecimento, o desespero. Você ainda lê muito?
Leio pouco, hoje. Muito menos do que lia, outrora. Não tenho mais nem mesmo vista.

 

8 - O ensaio que você escreveu para a edição Aguilar da obra de Gilberto Freyre é um texto evocativo, de admiração e respeito. Fale um pouco do fascínio gilbertiano.
Gilberto Freyre era fascinante. Era temperamental. Era dengoso. Era carente ao extremo. Muito tímido. Um conversador genial. Me dava a sensação de gênio. Força da natureza, desmedida, extralimitação. Pura genialidade. Era um libertino renascentista. Muito erótico.

 

9 - De Junqueira Freire a Antonio Carlos Villaça, Carlos Heitor Cony ou João Silvério Trevisan, tivemos a confluência entre a vida religiosa e a vida literária. Trata-se, sobretudo, de uma crise. Na literatura brasileira essa confluência é vasta a ponto de merecer um estudo? 
Sim, vasta. Temos Antonio Olinto, Xavier Placer com o romance A escolha, o primeiro Antonio Torres, mulato de talento, grande escritor, amigo de Gastão Cruls, que lhe publicou as cartas, de Gilberto Amado, de Gilberto Freyre, temos o poeta Severiano de Resende, admirável, quase clochard em Paris, sujo, sem dinheiro, mordendo os amigos.

 

10 - Samuel Rawet escreveu um dia sobre o equilíbrio que você manteve entre essas duas fogueiras, a do “apetite do cotidiano” e a do “apetite do Absoluto”. Percebeu a “intranqüilidade permanente” que marca o seu temperamento. Hoje você parece mais sereno. Estou enganado? 
Não, não está equivocado. A idade nos pacifica. Estou mais sereno. Ou menos inquieto. Ou menos angustiado. Ou menos desesperado.

 

11 - Quando li O pensamento católico no Brasil senti como se estivesse lendo o grande romance do pensamento católico, com personagens vivos e marcantes. Como e por que escreveu esse livro?
Escrevi por encomenda do Jorge Zahar, o editor. Escrevi em um mês. Pediu duzentas páginas. Fiz logo. Diretamente à máquina. Lá no velho Hotel Bela Vista, Santa Teresa. Franklin de Oliveira fez a orelha. 

 

12 - Você escreve crítica como quem escreve memórias. Sua crítica é evocativa, de um lírico. Como se vê como ensaísta e crítico? 
Sou um poeta do ensaio e da crítica. Um menino guloso. Um passeador. Sou mesmo é um giróvago. Um andarilho do espírito.

 

13 - O Villaça que exerceu a crítica tinha os seus modelos, seus críticos preferidos? Alceu Amoroso Lima era um deles?
Sem dúvida, Alceu era meu mestre. Que ligação entre nós. Um guru. Um modelo. Na literatura e na vida. Senti tanto a sua morte. Ele estava muito sofrido na morte. Como Guimarães Rosa. Como monsenhor Joaquim Nabuco Filho. Expressão de angústia. Gilberto Amado, não. Estava lépido. Fagueiro. Ó minha comadre...

 

14 - Como vê a obra de Alceu hoje?
Como um capítulo da história de nossa crítica e de nossa ensaística de idéias. 

 

15 - Que livros de Alceu merecem reedição?
Os mais líricos, os elegíacos, os íntimos, os pessoais, como O Cardeal Leme, o João XXIII, o Europa de hoje, os Companheiros de viagem...

 

16 - Você vê alguma grande injustiça na literatura brasileira deste século?
Adelino Magalhães é tão pouco lido. 

 

17 - Quem merece ser reeditado para os tempos que estamos vivendo? 
Penso nos romances cosmopolitas de um José Geraldo Vieira, esgotados.

 

18 - Na ficção brasileira contemporânea algum poeta ou ficcionista chama a sua atenção?
O poeta é Foed Castro Chamma. O ficcionista seria Maria José de Queiroz, mineiríssima e quase parisiense.

 

19 - Que conselho daria a um jovem escritor?
Seja você mesmo. E escreva muito. Alceu dizia que a qualidade nasce da quantidade. Talvez. É preciso escrever muitos capítulos para que de repente surja o capítulo imperecível, único.
 
 

Publicado na revista BLAU n. 24,  janeiro de 1999.

 

Tiziano, O sagrado e o profano