Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

André Seffrin

Jornal do Brasil

20.3.1999


 

Roteiro de quase memória

 

Os anos mais antigos do passado
Carlos Heitor Cony
Record, 251 páginas

ROTEIRO DE QUASE MEMÓRIA
 

Carlos Heitor Cony tinha passado duas décadas sem publicar romance quando ressurgiu com Quase memória (1995). Como cronista, publicou pouco em livro: Da arte de falar mal (1963), O ato e o fato (1964) e agora este Os anos mais antigos do passado que, como Quase memória, é livro que já nasce clássico. 

Uma reunião de crônicas que vale como um volume de memórias. Embora fragmentado em relatos de viagens, em recordações da infância, em alegorias de fatos políticos (cheias de humor e sarcasmo), em registros da rotina do mundo fixados com o pulso do ficcionista, a espinha dorsal do livro é uma longa e mansa busca do tempo perdido. A sua fragmentação é condicionada sobretudo pelo exercício diário que define o gênero, mas suas páginas não deixam de nos transmitir o gosto difuso e fascinante da grande aventura da vida. Seja através da visão retrospectiva dos anos mais antigos do passado (elemento do memorialismo), seja pela notação diária dos fatos transpostos num lirismo de primeira água. São as marés montantes do passado, como queria Mário Quintana, que chegam sem avisar, e tanto são motivo de apreensão quanto de surpresa e maravilhamento.

A face amargurada, marcante em Cony, dá sempre lugar a um certo tom elegíaco e à índole lírica. As suas memórias, que a rigor talvez Cony nunca escreveria, aqui estão, como em Quase memória, disfarçadas, quem sabe exorcizadas. É a sua história, o belo e o feio da humana lida, que aos poucos ele dilui e transfixa nos romances e nas crônicas. 

Neles, Cony sabe rir como poucos deste circo do mundo, com toda sua carga de frustrações e desastres, sua beleza e sua glória. Ri de um universo que é regido dos altos tronos, seja por Deus, o diabo ou um ser qualquer que se arrogue.

Descido aos infernos de sua saudade e de sua incompreensão das coisas, o cronista revive uma fantasia de carnaval antigo, as rezas da mãe contra possíveis desgraças, os extraordinários balões que o pai fabricava, os tantos personagens de rua do subúrbio do menino, o amigo Otto Maria Carpeaux, a visão das mãos do pai morto, impressionante visão: “Mãos que começaram a ficar mais brancas e mais quietas: dentro delas, o nada cheio de tudo o que ele fora”. O lirismo é mesmo o elemento fixador desses movimentos de fluxo e refluxo da memória, pois Cony vê as coisas com os olhos transfigurados do poeta. 

Se podemos dizer que o seu humor é uma doce herança machadiana, na crônica sua veia lírica só encontra paralelo em escritores da estirpe de Rubem Braga, Antonio Maria e Drummond. E também José Carlos Oliveira ou o Tabajara Ruas de Um porto alegre (Mercado Aberto, 1998). São cronistas que escrevem iluminados pelo poeta que não deixam de ser. Líricos deste tempo escuro e trepidante.

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe
 

 

 

Elizabeth Marinheiro

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Rodrigo Marques, ago/2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Culpa

 

 

 

André Seffrin

Jornal do Brasil

4.9.1999


Moacyr Félix

 

Revisão de percurso poético 

Moacyr Félix mostra o 
melhor e pior de sua produção
em livro catártico e sintético 

Introdução a escombros
Moacyr Félix
Bertrand, 201 páginas
R$ 20

ANDRÉ SEFFRIN

 Tanto em Introdução a escombros quanto em Singular plural (Record, 1998), sem sub ou superestimar-se demasiado, Moacyr Félix faz uma revisão de seu percurso de homem e de poeta. Vale assinalar que "singular plural" é uma das definições mais adequadas para o seu itinerário de cantor da aurora socialista. Mas seu ponto alto, sem dúvida, está na lírica amorosa, em páginas desde já definitivas de nossa poesia contemporânea.

 Voltagem poética menor vamos encontrar na sua vertente política, filosofante e apologética, também muito presente nas páginas de Introdução a escombros, um livro que traz o melhor e o pior de sua produção. Todavia, é livro catártico, de acerto de contas consigo mesmo e com o mundo, uma espécie de síntese de tudo que o autor publicou até hoje, misto de caderno de anotações e profissão de fé na vida - uma vida que se transfigura na luta de um "singular plural". 

Toda sua poesia pode ser lida como um longo canto à morte e ao amor ("a morte que anda dentro da vida"), e nestes "escombros" o poeta se revela mais machucado e sombrio. Contudo, não deixa de pensar "a história de cada um dentro da história de todos", num poema a que chamou "Pedaços de um diário de poeta", cuja parte final é o vértice das suas indagações de hoje, nas perspectivas intelectuais que o animam desde a estréia, com Cubo de trevas, em 1948.

 Título previsto pelo poeta desde meados dos anos 70, Introdução a escombros, como Singular plural, é um pequeno novo apanhado de sua poesia na versão que hoje considera definitiva, e que veio constantemente sendo reescrita nas antologias Um poeta na cidade e no tempo (1966), Invenção de crença e descrença (1978), ambas pela antiga Civilização Brasileira, e na Antologia poética (1993), pela José Olympio.

 Mas, é bom que se diga, a boa poesia vem agora acompanhada de um material que se publica sem os devidos cortes, algo como uma gaveta de guardados posta na rua como uma roupa ainda nos alfinetes e alinhavos. Faltou um copidesque para as diversas notas de pé de página, que atestam algumas deficiências da edição. Sem falar no excessivo da fortuna crítica, inútil e incômoda. De fato, muito ganharia sua poesia se fossem eliminados os prefácios do autor e a parafernália de textos que a acompanha sempre. 

Se o que verdadeiramente interessa na obra de um escritor é antes de mais nada o que ele escreve, em edições como esta são dispensáveis os manuais e guias de leitura, função que cabe à crítica e ao ensaísmo posteriormente preencher. Neste passo, no prefácio que escreveu a Neste lençol (1977), Moacyr Félix perdeu a oportunidade de deixar a poesia chegar primeiro ao leitor, nesse que talvez seja o seu melhor livro. Pois muito da força elegíaca dos poemas de Introdução a escombros é soterrada pela enxurrada de textos, notas e dedicatórias encomiásticas. Perseguido por estas amarras circunstanciais, o poeta cada vez mais desgasta uma fortuna crítica considerável, cujo melhor destino seria a edição crítica que sua obra está a exigir, de reunião e estabelecimento definitivo de texto - que as suas sucessivas edições e reedições têm, de certa forma, desvirtuado. Trata-se de uma poesia que não necessita destas muletas para sobreviver. Longe de qualquer acessório, ela reafirma sua força em verdadeiras sínteses de seu itinerário: "Aproximar-se da oportunidade sexual como o escultor se aproxima da matéria a ser esculpida".

 Poeta do discurso numa época em que pouco valor se deu à poesia discursiva, seus pares estão muito próximos: Thiago de Mello, Ferreira Gullar, Geir Campos, Affonso Romano de Sant’Anna. Uma linhagem muito bem situada na literatura contemporânea. Entre todos, Moacyr é o que mais e melhor se entregou àquilo que podemos (com ele) chamar de militância poético-social. Nesse aspecto, foi sempre e continua sendo fiel a si mesmo. 

André Seffrin é crítico e ensaísta 

 

 

 

Artur Eduardo Benevides

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Benedicto Ferri de Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

 

 

André Seffrin


Davino Ribeiro de Sena

 

CONSTRUTIVISMO LÍRICO

Poeta inventor, Davino Ribeiro de Sena alia muito bem ao construtivismo uma disponibilidade lírica. Já foram apontadas certas semelhanças suas com Augusto dos Anjos e João Cabral de Melo Neto, de quem adotou algum vocabulário e procedimento técnico. Pela seriedade de seu projeto e pelo seu temperamento, eu o aproximo ainda de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Joaquim Cardozo e Alberto da Cunha Melo. Como eles, Davino é um lírico e por vezes um elegíaco, atento sempre à arquitetura do poema, tendendo até a um certo hermetismo, à maneira dos três últimos. A poesia social, o memorialismo e o poema narrativo, no caso especial de Davino, complementam o universo mental de quem possivelmente não vê antinomia entre inspiração e construção.

Castelos de areia (Estação Liberdade, 1991), seu livro de estréia, foi detentor do primeiro lugar na 5ª Bienal Nestlé de Literatura. Publicou mais tarde Pescador de nuvens (Thesaurus, 1996), O jaguar no deserto (Bagaço, 1997) e Retrato com guitarra (Sette Letras, 1997), aos quais vêm agora juntar-se Ferro e vidro, fixando definitivamente seu nome entre os melhores poetas da nova geração.

Davino compõe Ferro e vidro em quatro partes: “Arquitetura do eu”, “História do casal”, “Arquitetura da história”, “História da arquitetura”. Apesar do aparente esquematismo, prevalece no livro o tom coloquial. O autor tem consciência da necessidade do aparato instrumental e domínio técnico sem se deixar seduzir pelo cerebralismo neoparnasiano que preside grande parte da poesia contemporânea. 

Ele familiarizou-se com a tradição para manejar seu conhecimento não como um simples verse-maker (na acepção de Mario Faustino), mas como um notável explorador de caminhos. Os ecos de Bandeira e João Cabral, muito presentes, não são apenas intencionais mas programáticos. Nesse sentido, ele não é um continuador ou, como muitos, um diluidor, pois procura fazer uma obra que amplie e redimensione suas modulações a cada momento. 

Embora de maneira episódica, o poeta novamente abre o álbum de família em busca do tempo perdido. Na lembrança da figura do pai ou na recordação de objetos e acidentes da infância, ele vai recompondo cenas como quem segue à procura do cisma, da ruptura. São poemas de circunstância, espécie de leitura do avesso, um baú de histórias que ele passa a trabalhar com o apoio de imagens recorrentes como areia, ferro e vidro. Na memória da infância, o espelho da velhice e da morte, o passado “refletido na transparência do vidro”. É nesse universo de reflexos e ressonâncias que se desenvolvem os principais núcleos temáticos de toda sua obra.

Nesta forma fixa que parece se adequar aos seus propósitos e que chama de fotoneto, segundo suas próprias palavras uma forma quase “laboratorial”, vezenquando vemos luzir como jóia um verso solitário, desprendido do concreto armado do poema ? vale citar como exemplos o poder sugestivo de “No travesseiro, alguns fios/ de cabelo ensinam a morrer”, e a lapidar lição de paisagem expressionista contida num verso como aquele “O medo infiltrou-se na tarde”, condensando toda atmosfera do poema. Às vezes, ao contrário, fala o poema inteiro, em vibração, espessura e ritmo ? “O brasão”, “O porco na folhagem”, “Paralelismo”, “Atavismo”, a delícia do “Sarau parnasiano”, “Arte românica” e, pela plasticidade,  “Restaurante catalão”, entre aqueles que merecem figurar em qualquer antologia da moderna poesia brasileira. Assinale-se ainda que, dispensando quase sempre o adjetivo ornamental, ele o insere como elemento de estrutura. Um entre os tantos recursos de poeta senhor de sua matéria. 

Quando afastado da dicção raciocinante e antilírica (João Cabral), o poeta se aproxima de uma face mais emotiva e elegíaca. É o melhor Davino, aquele que podemos identificar na mesma família espiritual dos já aludidos Jorge de Lima e Joaquim Cardozo, da qual descende também Alberto da Cunha Melo ? poetas artífices da palavra encantada. 

E em Davino Ribeiro de Sena a palavra se encanta e se ilumina diante do “espelho do passado”, diante da realidade mais crua e de seus reflexos que vibram em vidro, em ferro, em tudo. Feche a cortina sobre as horas, diz o poeta: “A eternidade apenas começa”.
 

André Seffrin

Rio, março de 1999.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

André Seffrin


Luís Augusto Cassas

 
Bhagavad-Brita (A canção do beco)
Luís Augusto Cassas
Imago
(ainda sem preço definido) 


UM ILUMINADO DISTRIBUIDOR DE POESIA 

 

Bhagavad-Brita (A canção do beco), novo livro de Luís Augusto Cassas, parece sugerir uma breve pausa em sua obra em curso, um olhar retrospectivo sobre o caminho percorrido. Sintetizando as linhas fundamentais desenvolvidas em sua poesia - a vertente mística e a vertente pop - este talvez seja o mais intimista de seus livros. Desde a estréia, com República dos becos (Civilização Brasileira, 1981), Cassas assumiu a poesia como missão. 

Nos ritmos largos, animada por um extraordinário senso de humor, sua poesia é o avesso do comedimento. O manejo hábil do coloquial é uma clara herança de Drummond e de Bandeira. Todavia, seus compassos de celebração e encantamento, sua astúcia e seu conhecimento da tradição, que trabalha com mestria, são dignos de nota e o distanciam de influências incômodas. “A poesia deve queimar as mãos”, escrevia ele em 1990, dando bem a medida de seu compromisso. 

A poesia social, bastante presente em sua obra, indica outros possíveis parentescos. Se podemos eventualmente aproximá-lo da dicção de Affonso Romano de Sant’Anna, de Moacyr Félix ou de Thiago de Mello, ele pode ser melhor identificado ao lado de Affonso Ávila e de José Paulo Paes que, embora contidos, fazem da poesia social um exercício de fina ironia. Mas Cassas transita entre essas duas linhagens sem contudo se filiar a nenhuma. Sua posição é de admirável independência. 

Com nove livros publicados, vale registrar que os seus destemperos verbais e um certo gosto pelo exagero às vezes o prejudicam. Contudo, são detalhes que não decompensam a obra. O Cassas do verbo desatado teve sua hora em O retorno da aura (Nórdica, 1994), na sua “caminhada rumo à claridade”. Foi um rito de passagem como o dos “poemas da paixão” que ele reuniu em Liturgia da paixão: opus da compaixão (Nórdica, 1997), quando, inflamado, trabalhava em função da iluminação do verbo. 

A edição simultânea de três livros: Titanic-Boulogne: a canção de Ana e Antônio, O Shopping de Deus & A alma do negócio e Ópera barroca (Imago, 1998), trouxe a perspectiva que faltava para a análise de sua poesia. O Shopping de Deus & A alma do negócio é, ao que parece, o seu livro por excelência, aquele que reúne todas as suas qualidades, seja porque nele alcança a suprema ironia, tão própria de seu espírito, seja pela cristalização de seu lirismo. É uma liturgia pop - que, de certa maneira, resgata o Cassas de Rosebud (Massao Ohno, 1990), livro que não devemos perder de vista em sua produção - mas desta vez com o tempero do visionarismo lírico que nasceu com O retorno da aura. E se Ópera barroca é, sem nenhum menosprezo, um apêndice a O shopping de Deus, Titanic-Bologne é o momento menos feliz, quando o canto não alcança plenamente o tema proposto.

Esse lirismo afeito às asperezas do mundo, que caracteriza a maturidade do poeta, transparece no breve Bhagavad-Brita (A canção do beco). Aí reside o seu mot juste, a forma que lhe deu, neste momento, sustentação à voltagem emocional. Um livro escrito entre a contenção e a reflexão: “nos becos da vida / revela-te sábio: / cigarra e formiga”. É o poeta em sua morada. Indignado e provocador, assaltante e guardião, atento às vozes de Deus e do demônio que habitam a cidade e o homem, ei-lo “agora no chão: / pra entender a matéria / e o seu coração.” A via estreita é o beco, poderoso eco de um mundo de governo e desgoverno no qual ele assume seu canto como um predestinado, um iluminado distribuidor de poesia. Como quem diz: no beco da existência, a céu aberto, caminhar é o caminho. 

 

André Seffrin é crítico e ensaísta

 

Tiziano, O sagrado e o profano

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

André Seffrin


 
Todos os ventos
Antonio Carlos Secchin
Rio de Janeiro, Nova Fronteira Ed., 2002

por André Seffrin
 

Poucos poetas brasileiros têm consciência tão aguda de sua atividade quanto Antonio Carlos Secchin. Fato por demais provado, desde o título, por Todos os ventos, que reúne sua produção de 1969 a 2002. Título polissêmico, ele sugere, numa de suas variantes, uma releitura da poesia brasileira moderna. Poeta de alusões e releituras, Secchin não andará, portanto, muito distante das atividades de outro brasileiro que, como ele, agregou ao temperamento do poeta a bagagem do ensaísta impregnado pelo exercício crítico: José Paulo Paes. Tanto quanto este, Secchin é um epigramista, um alegórico, ou seja, o poeta que tempera suas notações com senso de humor e, muitas vezes, inteligência fulgurante. Numa via de mão dupla, em que o poeta se alimenta do ensaísta na mesma medida em que o ensaísta se deixa absorver pelo poeta, são autores que escrevem com a alta consciência da literatura e, repito, para os quais a atividade crítica e de criação, seja na poesia, seja no ensaio, vivem de mãos dadas.

Outro paralelo seria com Mário da Silva Brito, cuja poesia satírica, de leituras e releituras, e sob o signo da morte, é a vértebra de um canto raciocinante e conciso. Sobre o “processo alusivo” que desenvolveu, Mário da Silva Brito resume: “A poesia é de todos”. Sem dúvida, trata-se de um navegante de mares e oceanos: Sá de Miranda, Camões, Drummond... Pois Secchin também navega nas águas tumultuosas da lírica amorosa camoniana (no caso o emblemático “Sete anos de pastor”), criando assim uma das mais saborosas paródias do soneto clássico. “Ontem já foi hoje e amanhã”, diria, rindo, o engenhoso Mário da Silva Brito. Sem que nos afastemos do século XX, vale lembrar que Manuel Bandeira foi outro mestre da paródia...

O Antonio Carlos Secchin de um poema como "Remorso", por exemplo, no compasso dos modernistas dos tempos heróicos, não dispensa o olhar irônico e retrospectivo, tônica de grande parte de seu livro: “A poesia está morta. / Discretamente, / A. de Oliveira volta ao local do crime.” Nesse mesmo passo, o corrosivo poema dedicado ao trio parnasiano é retrato impiedoso dos poetas que “...aprisionam em seus versos as pombas e estrelas / apostando que em jaula firme e decassílaba // não haverá qualquer perigo de perdê-las. / Adestram a voz do verso em plena luz do dia. / À noite a fera rosna a fome da poesia.” Isso para falar pouco da paisagem sugerida em “Notícia do poeta”: em torno do corpo de Marcelo Gama espatifado nos trilhos do Engenho Novo, “policiais e parnasianos se entreolham, assustados”.

Essa virtude retrospectiva é pátria da grande poesia e revela muito da já referida alta consciência da literatura em Antonio Carlos Secchin, cuja perspectiva pode (e deve) ser ampliada por um de seus mais afiados aforismos: “Se eu já soubesse o que o poema diria, não precisaria escrevê-lo. Escrevo para desaprender o que eu achava que sabia sobre aquilo que me vai sendo ensinado enquanto escrevo.” Apesar de retórica, é uma atitude radical e necessária - e que bem poucos poetas teriam coragem de assumir nestes tempos de experimentalismos ingênuos e cacoetes antigos.

Nestas três décadas de percurso, é visível o rito de passagem de um simbolismo juvenil para a dicção “objetivante”, de “concretude e plasticidade das imagens”, conforme declarou em entrevista a Ricardo Vieira Lima (Rascunho, Curitiba, n. 33, jan. 2003). Os títulos publicados de 1973 a 1988 denunciam a trajetória: Ária de estação (1973), Elementos (1983) e Diga-se de passagem (1988). Não por acaso, sobre o livro de estréia, José Guilherme Merquior comentava, em 1975, que em Antonio Carlos Secchin “já começa a boa poesia - a bem dizer ainda indecisa entre a imaginação do símbolo e a verdade alegórica - da geração 70”.

Ao optar por reunir primeiro, na abertura do livro, sua produção mais recente, o autor adotou prática hoje comum. Maneira mais direta de repensar o caminho percorrido, de afastar-se de um passado muitas vezes superado, de abrir para o leitor, de início, a sua face atual como sinalização autocrítica para o que veio antes. De maneira que o volume abre com a série “Todos os ventos”, produção de 1997 a 2002, subdividida em “Artes”, “Dez sonetos da circunstância”, “Variações para um corpo” e “Primeiras pessoas”. A seguir, aparecem os “Aforismos” (1991-1999) “desentranhados” das suas reuniões de ensaios Poesia e desordem (1996) e Escritos sobre poesia & alguma ficção (que veio a lume em 2003); Diga-se de passagem, que compreende a produção de 1983 a 1988; “Elementos”, de 1974 a 1983, com as subdivisões “Ar”, “Fogo”, “Terra” e “Água”, além de um poema de abertura; “Dispersos”, de 1974 a 1982, da mesma época, portanto, dos “Elementos”; e, por fim, “Ária de estação”, que abrange a produção da juventude, de 1969 a 1973.

“Artes” junta 11 poemas sobre poetas e a arte da poesia, num arco que começa em Álvares de Azevedo, passa por Castro Alves e Cruz e Sousa e chega a um enigmático “velho Homero de província” que se acredita “o maior vate do planeta”, único poema sem dedicatória nesse livro todo ele repleto de poemas dedicados. Poema tão curioso quanto ácido em seus propósitos. Note-se que nos dois sonetos de “Dispersos” - “Linguagens” e “Soneto das luzes” -, já se anunciava aquele espírito jocoso e crítico dos poemas enfeixados em Diga-se de passagem, principalmente em “Remorso”, “Notícia do poeta” e “Sete anos de pastor”. De maneira que o campo alusivo é vastíssimo, embora não se trate de poeta que se mantenha apenas nas alusões e paródias, uma vez que seu espectro metafórico e temático se mostra igualmente vasto.

Secchin é sobretudo um poeta de ritmos largos e variados, não raro identificando-se com a família dos imagistas fecundos como Joaquim Cardozo, Ferreira Gullar, Mário Faustino e Fernando Mendes Vianna. Assim, nos dez sonetos da circunstância, viaja-se do construtivismo algo barroco de “A luz maciça...” ao cristal lírico de “Com todo amor...”, cápsula temática na qual o poeta é senhor da asa serena e ritmada da poesia. Das “Variações para um corpo”, destaque-se o poema “Tela”, a que não faltam o transbordamento imagístico e alguns toques surrealistas, na corda tensionada de um dos momentos mais intensos do livro: “Há mais amores mortos / do que araras nos jardins de Ohio. / Manhãs lambuzando de inverno / o tambor cardíaco dos trovões, / a serpentina farpada dos raios. (...) Troca de olhares e de espelhos: / em capítulos a paixão fermenta / no tapete térmico dos ursos, / no abraço esquivo dos esquilos. / Elétricas são as guelras, as vísceras, as penas. / Vista no ângulo da luz de Vênus, / pouco a pouco a Terra se torna / azul e quente como um poema.” Em “Reunião” ou em “Autoria”, a discreta genealogia familiar num sutilíssimo eco drummondiano, do Drummond de Boitempo e Menino antigo, nas sendas do esquecer para lembrar. Quanto aos versos de “Paisagem” - “No mármore / o açúcar Pérola explode em dádiva. (...) Zumbem abelhas vesgas / na mesa onde o abacaxi / oferta sua flor feroz” -, como não sentir aí a presença anímica de um Gullar? Ainda dos aforismos é que vamos extrair a resposta: “...herança não é apenas aquilo que recebemos, mas aquilo de que não conseguimos nos livrar.” Mais uma prova de que a literatura é, entre outras coisas, diálogo.


Colóquio/Letras n.161/162, jul./dez. 2002.

 

 
 

 

 

 

06/07/2005