André Seffrin
Todos os
ventos
Antonio Carlos Secchin
Rio de Janeiro, Nova Fronteira Ed., 2002
por André Seffrin
Poucos poetas brasileiros têm
consciência tão aguda de sua atividade quanto Antonio Carlos Secchin.
Fato por demais provado, desde o título, por Todos os ventos, que
reúne sua produção de 1969 a 2002. Título polissêmico, ele sugere,
numa de suas variantes, uma releitura da poesia brasileira moderna.
Poeta de alusões e releituras, Secchin não andará, portanto, muito
distante das atividades de outro brasileiro que, como ele, agregou
ao temperamento do poeta a bagagem do ensaísta impregnado pelo
exercício crítico: José Paulo Paes. Tanto quanto este, Secchin é um
epigramista, um alegórico, ou seja, o poeta que tempera suas
notações com senso de humor e, muitas vezes, inteligência
fulgurante. Numa via de mão dupla, em que o poeta se alimenta do
ensaísta na mesma medida em que o ensaísta se deixa absorver pelo
poeta, são autores que escrevem com a alta consciência da literatura
e, repito, para os quais a atividade crítica e de criação, seja na
poesia, seja no ensaio, vivem de mãos dadas.
Outro paralelo seria com Mário da
Silva Brito, cuja poesia satírica, de leituras e releituras, e sob o
signo da morte, é a vértebra de um canto raciocinante e conciso.
Sobre o “processo alusivo” que desenvolveu, Mário da Silva Brito
resume: “A poesia é de todos”. Sem dúvida, trata-se de um navegante
de mares e oceanos: Sá de Miranda, Camões, Drummond... Pois Secchin
também navega nas águas tumultuosas da lírica amorosa camoniana (no
caso o emblemático “Sete anos de pastor”), criando assim uma das
mais saborosas paródias do soneto clássico. “Ontem já foi hoje e
amanhã”, diria, rindo, o engenhoso Mário da Silva Brito. Sem que nos
afastemos do século XX, vale lembrar que Manuel Bandeira foi outro
mestre da paródia...
O Antonio Carlos Secchin de um poema
como "Remorso", por exemplo, no compasso dos modernistas dos tempos
heróicos, não dispensa o olhar irônico e retrospectivo, tônica de
grande parte de seu livro: “A poesia está morta. / Discretamente, /
A. de Oliveira volta ao local do crime.” Nesse mesmo passo, o
corrosivo poema dedicado ao trio parnasiano é retrato impiedoso dos
poetas que “...aprisionam em seus versos as pombas e estrelas /
apostando que em jaula firme e decassílaba // não haverá qualquer
perigo de perdê-las. / Adestram a voz do verso em plena luz do dia.
/ À noite a fera rosna a fome da poesia.” Isso para falar pouco da
paisagem sugerida em “Notícia do poeta”: em torno do corpo de
Marcelo Gama espatifado nos trilhos do Engenho Novo, “policiais e
parnasianos se entreolham, assustados”.
Essa virtude retrospectiva é pátria da
grande poesia e revela muito da já referida alta consciência da
literatura em Antonio Carlos Secchin, cuja perspectiva pode (e deve)
ser ampliada por um de seus mais afiados aforismos: “Se eu já
soubesse o que o poema diria, não precisaria escrevê-lo. Escrevo
para desaprender o que eu achava que sabia sobre aquilo que me vai
sendo ensinado enquanto escrevo.” Apesar de retórica, é uma atitude
radical e necessária - e que bem poucos poetas teriam coragem de
assumir nestes tempos de experimentalismos ingênuos e cacoetes
antigos.
Nestas três décadas de percurso, é
visível o rito de passagem de um simbolismo juvenil para a dicção “objetivante”,
de “concretude e plasticidade das imagens”, conforme declarou em
entrevista a Ricardo Vieira Lima (Rascunho, Curitiba, n. 33, jan.
2003). Os títulos publicados de 1973 a 1988 denunciam a trajetória:
Ária de estação (1973), Elementos (1983) e Diga-se de passagem
(1988). Não por acaso, sobre o livro de estréia, José Guilherme
Merquior comentava, em 1975, que em Antonio Carlos Secchin “já
começa a boa poesia - a bem dizer ainda indecisa entre a imaginação
do símbolo e a verdade alegórica - da geração 70”.
Ao optar por reunir primeiro, na
abertura do livro, sua produção mais recente, o autor adotou prática
hoje comum. Maneira mais direta de repensar o caminho percorrido, de
afastar-se de um passado muitas vezes superado, de abrir para o
leitor, de início, a sua face atual como sinalização autocrítica
para o que veio antes. De maneira que o volume abre com a série
“Todos os ventos”, produção de 1997 a 2002, subdividida em “Artes”,
“Dez sonetos da circunstância”, “Variações para um corpo” e
“Primeiras pessoas”. A seguir, aparecem os “Aforismos” (1991-1999)
“desentranhados” das suas reuniões de ensaios Poesia e desordem
(1996) e Escritos sobre poesia & alguma ficção (que veio a lume em
2003); Diga-se de passagem, que compreende a produção de 1983 a
1988; “Elementos”, de 1974 a 1983, com as subdivisões “Ar”, “Fogo”,
“Terra” e “Água”, além de um poema de abertura; “Dispersos”, de 1974
a 1982, da mesma época, portanto, dos “Elementos”; e, por fim, “Ária
de estação”, que abrange a produção da juventude, de 1969 a 1973.
“Artes” junta 11 poemas sobre poetas e
a arte da poesia, num arco que começa em Álvares de Azevedo, passa
por Castro Alves e Cruz e Sousa e chega a um enigmático “velho
Homero de província” que se acredita “o maior vate do planeta”,
único poema sem dedicatória nesse livro todo ele repleto de poemas
dedicados. Poema tão curioso quanto ácido em seus propósitos.
Note-se que nos dois sonetos de “Dispersos” - “Linguagens” e “Soneto
das luzes” -, já se anunciava aquele espírito jocoso e crítico dos
poemas enfeixados em Diga-se de passagem, principalmente em
“Remorso”, “Notícia do poeta” e “Sete anos de pastor”. De maneira
que o campo alusivo é vastíssimo, embora não se trate de poeta que
se mantenha apenas nas alusões e paródias, uma vez que seu espectro
metafórico e temático se mostra igualmente vasto.
Secchin é sobretudo um poeta de ritmos
largos e variados, não raro identificando-se com a família dos
imagistas fecundos como Joaquim Cardozo, Ferreira Gullar, Mário
Faustino e Fernando Mendes Vianna. Assim, nos dez sonetos da
circunstância, viaja-se do construtivismo algo barroco de “A luz
maciça...” ao cristal lírico de “Com todo amor...”, cápsula temática
na qual o poeta é senhor da asa serena e ritmada da poesia. Das
“Variações para um corpo”, destaque-se o poema “Tela”, a que não
faltam o transbordamento imagístico e alguns toques surrealistas, na
corda tensionada de um dos momentos mais intensos do livro: “Há mais
amores mortos / do que araras nos jardins de Ohio. / Manhãs
lambuzando de inverno / o tambor cardíaco dos trovões, / a
serpentina farpada dos raios. (...) Troca de olhares e de espelhos:
/ em capítulos a paixão fermenta / no tapete térmico dos ursos, / no
abraço esquivo dos esquilos. / Elétricas são as guelras, as
vísceras, as penas. / Vista no ângulo da luz de Vênus, / pouco a
pouco a Terra se torna / azul e quente como um poema.” Em “Reunião”
ou em “Autoria”, a discreta genealogia familiar num sutilíssimo eco
drummondiano, do Drummond de Boitempo e Menino antigo, nas sendas do
esquecer para lembrar. Quanto aos versos de “Paisagem” - “No mármore
/ o açúcar Pérola explode em dádiva. (...) Zumbem abelhas vesgas /
na mesa onde o abacaxi / oferta sua flor feroz” -, como não sentir
aí a presença anímica de um Gullar? Ainda dos aforismos é que vamos
extrair a resposta: “...herança não é apenas aquilo que recebemos,
mas aquilo de que não conseguimos nos livrar.” Mais uma prova de que
a literatura é, entre outras coisas, diálogo.
Colóquio/Letras n.161/162, jul./dez. 2002.
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