Jornal de Poesia, o nº 1 do www.google.com

Astrid Cabral


 

URUBAMBA


Línguas d'água
                   barbas e bigodes de espuma
o rio lambe as pedras qual bicho
                   as recém-nascidas crias.
Só que as pedras são filhotes das montanhas
                    paridos em antigo parto sísmico.
De longe até parecem um rebanho
                   cujas formas agudas se perderam
na lima de milênios. Lhamas? Vicunhas? Alpacas?
                   Algumas menores até lembram ovos fósseis
de extraviado pré-histórico lagarto ou ignoto sáurio.
                    Só que o rebanho pasta imóvel.
As pedras presas por raízes de peso
                    são pausas brancas e têm pacto
com as paquidermes montanhas
                   hieráticas em molduras sagradas.
Mas o Urubamba célere, incontido
                   foge do cárcere da cordilheira
a vasta muralha dos paredões a pique.
                    Pés d'água e rendas pelo ombro
ventre prenhe de trutas e murmúrio de mar na garganta
                    o caudal vai ultrapassando as pedras
rompendo o verde paralítico das margens
                   atrás do escancarado céu em frente
lá onde abraçado ao regaço do Amazonas
                    soma-se ao oceano arregaçando auroras
sustentando navios gigantes que são ilhas à deriva
                     sem a placidez das pedras tentando
à toa amarrar a correnteza do efêmero.
 

(Machu Picchu, 10/06/2001)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

Astrid Cabral



BALEIA ALBINA


Pelo úmido azul
                  a baleia albina baila
e assombra
                  a sala em penumbra
barbatanas rêmiges
                 a massagear
volumosa massa d’água
                 o trêmulo transparente
                 corpo marinho...
Marítima mamífera
                  a espraiar
                  a cútis de elanca
Enquanto as gordas vastas ancas
                  nadam dançam
                       se lançam
pelos pastos salgados
                   de algas e sargaços...
Será menina
                   a baleia albina?
Será adulta
                   a náufraga lua animal?
Ou centenária
                   a submarina cetácea nau?
Senhora dona do aquático sítio
                  supondo-se
                  solitária soberana
desfila tranqüila na líquida passarela
                  e revela
                  coreografia de estrela
                  e solfeja
cantiga de amor arquiantiga
                   e corteja
sem saber-se a prima-dona
                   de um mega espetáculo
sem pressentir
                  a intimidade exposta
à ribalta de mil olhos
                  pelo globo em volta...
Como o mar tão vasto
                 cabe entre sofás?
como nos toca o mar
                  se a pele não nos molha?
À noite os gatos são pardos
À noite somos jonas e pinóquios
                  acomodados na barriga da sala
                  essa estranha baleia
cujas paredes entranhas
                 o oceano invade
                 e lambe até tarde...
Somos então outra casta de peixes
                  pescados nas malhas
                  de eletrônica rede.

   

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Admiration Maternelle

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Virgílio Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

Astrid Cabral


 

THE HOLLOW MEN


A Lélia Coelho Frota


Não queriam a vida.
Bastava-lhes a imagem.
Alérgicos a horizontes
não chegavam à janela.
Só miravam a paisagem
por entre câmaras e lentes
cumprindo programas
de turísticas viagens.
Nem poentes nem montes
nem sorrisos nem olhares
confiavam à memória.
Queriam fotos nos álbuns
e carrosséis de slides.
À noite, cegos, não viam
o rastro do dia nos rostos
em torno e, lábios de pedra,
não riscavam a faísca
do diálogo nem o fogo
generoso do convívio.
Preferiam o amor da novela.
Dissolvidos em poltronas
em frente à tela acesa
acordados dormiam
despidos de si mesmos.

   

 

Da Vinci, La Scapigliata

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Jorge Tufic

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

Astrid Cabral



CEMITÉRIO DE MANAUS


"Laborum meta" promete o portão
em caligrafia de ferro. Enfim
o sossego não mais sonegado.
Em berços de terra e treva
os corpos despojados fruem
a contínua noite iluminada
por estrelas de paz e sóis
de silêncio sob as sebes
de impassíveis arbustos
vestidos de verdescuro luto.
Crescem capins pelas covas
mas não mais seus cabelos.
Cantam pássaros nas copas
e mudas estão as gargantas.
Passivos, a terra os elabora
contra a tíbia resistência
de tíbias, perônios e crânios.
Legiões de formigas e miúdas
vidas assumem o processo do
reverso ao útero telúrico.
Não sabemos se restam no recesso
das urnas os restorelíquias
dos corpos redimidos de lidas
entre antigas estrelas e cruzes.
Minerais, as lápides estáticas
falam do tempo sem urgências,
propõem legendas de ternura
vãs hipóteses de esperança
em outro mundo além-campas.
Vamos atrás de nossos mortos
acender velas que também choram,
conhecer a casa que nos aguarda.
Mas nossos mortos não estão lá.
Assombram dentro de nós: múmias na
química de nossa breve memória.

   

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

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Soares Feitosa, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba,

Astrid Cabral



POR TODA PARTE O RIO


Por toda a parte o rio
solta serpente a rojar-se
na paisagem da planície
cobra domada à força por
barrancas e algemas de pontes
ou cativo fragmento no pote
na palma côncava do púcaro
no copo translúcido e mínimo
leite a pojar o seio das cuias.
Em águas batismais comungo
e mergulho o arcaico corpo de
remotíssimo passado anfíbio
nós todos tão sáurios tão
irmãos de peixes e quelônios
e espelho o rosto em fuga por
águas igualmente fugitivas
e comigo vai o rio rente rindo
roendo ruindo riando submim
num subsolo de sonhos.

   

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona

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Rubens Ricupero

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

Astrid Cabral



NO COLO DO ANJO


Empoleirado
na torre do meu sonho
um anjo resplandece.
Cílios cintilantes
estrelas nos olhos
ele me acena com plumas
e me abraça com asas.
Juntos vagamos
entre rastros de astros
a cavalgar nuvens
por planícies etéreas
até que me sinto serena.
É como se mudo dissera
não temas véus ou névoas
qualquer neblina passa.
Mas eis que então fala:
Não sejas cega, menina.
O olhar de Deus tudo abarca.
Só os homens têm pálpebras.

   

 

Rafael, Escola de Atenas, detalhes

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Nicodemos Sena

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

Astrid Cabral



JOGO DE CASA


Sob telhas
                 centelhas fagulhas borralho
                 olhos d'água água na talha
Sob telhas
                 galhos alhos coalhos
                 molhos repolhos toalhas
Sob telhas
                 agulhas retalhos
                 malhas fitilhos ilhoses
Sob telhas
                 rodilhas presilhas
                 palmilhas sapatilhas
Sob telhas
                 mulheres abelhas
                 colheres talheres
Sob telhas
                 parelhas filhos filhas
                 espelhos ilhas
Sob telhas
                 armadilhas navalhas
                 batalhas partilhas mortalhas

   

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Reflexion

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José Nêumanne Pinto