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Augusto dos Anjos


Mãos


Há mãos que fazem medo
Feias agregações pentagonais,
Umas, em sangue, a delinqüentes natos,
Assinalados pelo mancinismo,
Pertencentes talvez...
Outras, negras, a farpas de rochedo
Completamente iguais...
Mãos de linhas análogas a anfratos
Que a Natureza omnicreadora fez
Em contraposição e antagonismo
Às da estrela, às da neve, às dos cristais.


Mãos que adquiriram olhos, pituitárias
Olfativas, tentáculos subtis
E à noite, vão cheirar, quebrando portas
O azul gasofiláceo silencioso
Dos tálamos cristãos.
Mãos adúlteras, mãos mais sanguinárias
E estupradoras do que os bisturis
Cortando a carne em flor das crianças mortas.
Monstruosíssimas mãos,
Que apalpam e olham com lascívia e gozo
A pureza dos corpos infantis.

 

Augusto dos Anjos

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Mágoas


Quando nasci, num mês de tantas flores,
Todas murcharam, tristes, langorosas,
Tristes fanaram redolentes rosas,
Morreram todas, todas sem olores.


Mais tarde da existência nos verdores
Da infância nunca tive as venturosas
Alegrias que passam bonançosas,
Oh! Minha infância nunca teve flores!


Volvendo à quadra azul da mocidade,
Minh’alma levo aflita à Eternidade,
Quando a morte matar meus dissabores.


Cansado de chorar pelas estradas,
Exausto de pisar mágoas pisadas,
Hoje eu carrego a cruz das minhas dores!


 

Augusto dos Anjos

Jornal de Filosofia

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Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Mater


Como a crisálida emergindo do ovo
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dores, te emergiu do ventre!


E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
No lábio róseo a grande teta farta
— Fecunda fonte desse mesmo leite —
Que amamentou os éfebos de Sparta. —


Com que avidez ele essa fonte suga!
Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
Do que essa pequenina sanguessuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!


Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,
Essas humanas cousas pequeninas
A um biscuít de quilate muito raro
Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.


Mas o ramo fragílimo e venusto
Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,
Há de crescera há de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.


Clara, a atmosfera se encherá de aromas,
O Sol virá das épocas sadias...
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Há de beijar-te as mãos todos os dias!


Quando chegar depois tua velhice
Batida pelos bárbaros invernos!
Relembrarás chorando o que eu te disse,
A sombra dos sicômoros eternos!

 

Augusto dos Anjos

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Mater originalis


Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;


O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.


Nenhuma ignota união ou nenhum nexo
A contingência orgânica do sexo
A tua estacionária alma prendeu...


Ah! de ti foi que, autônoma e sem normas,
Oh! Mãe original das outras formas,
A minha forma lúgubre nasceu!


 

Augusto dos Anjos

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Minha árvore


Olha: É um triângulo estéril de ínvia estrada!
Como que a erva tem dor... Roem-na amarguras
Talvez humanas, e entre rochas duras
Mostra ao Cosmos a face degradada!


Entre os pedrouços maus dessa morada
É que, às apalpadelas e às escuras,
Hão de encontrar as gerações futuras
Só, minha árvore humana desfolhada!


Mulher nenhuma afagará meu tronco!
Eu não me abalarei, nem mesmo ao ronco
Do furacão que, rábido, remoinha...


Folhas e frutos, sobre a terra ardente
Hão de encher outras árvores! Somente
Minha desgraça há de ficar sozinha!

 

Augusto dos Anjos

A menina afegã

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Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Minha finalidade


Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!


Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!


Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
— A águia dos latifúndios florentinos!


Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!

 

Augusto dos Anjos

Um cronômetro para piscinas

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José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Mistérios de um fósforo


Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois
Túmulos dentro de um carvão promíscuo.


Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
Que a individual psiquê humana tece e
O outro é o do sonho altruístico da espécie
Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!


E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:
— Cinza, síntese má da podridão,
"Miniatura alegórica do chão,
"Onde os ventres maternos ficam podres;


"Na tua clandestina e erma alma vasta,
"Onde nenhuma lâmpada se acende,
"Meu raciocínio sôfrego surpreende
"Todas as formas da matéria gasta!"


Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!


Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,
Mergulho, e na ínfima ânfora, harto,
O amargor específico do absinto
E o cheiro animalíssimo do parto!


E afogo mentalmente os olhos fundos
Na amorfia da cítula inicial,
De onde, por epigênese geral,
Todos os organismos são oriundos.


Presto, irrupto, através ovóide e hialino
Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
Minha massa encefálica minguante
Todo o gênero humano intra-uterino!


É o caos da ávita víscera avarenta
— Mucosa nojentíssima de pus,
A nutrir diariamente os fetos nus
Pelas vilosidades da placenta! —


Certo, o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo o mesmo ainda é, que, ora, o que nele
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!


É a flor dos genealógicos abismos
— Zooplasma pequeníssimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos. —


Depois, é o céu abscôndito do Nada.
É este ato extraordinário de morrer
Que há de, na última hebdômada, atender
Ao pedido da célula cansada!


Um dia restará, na terra instável,
De minha antropocêntrica matéria
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!


Abro na treva os olhos quase cegos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!


Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!
Dentro um dínamo déspota, sozinho,
Sob a morfologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibráteis.


Então, do meu espírito, em segredo,
Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,
Na síntese acrobática de um salto,
O espectro angulosíssimo do Medo!


Em cismas filosóficas me perco
E, vejo, como nunca outro homem viu,
Na anfigonia que me produziu
Noniliões de moléculas de esterco.


Vida, mônada vil, cósmico zero,
Migalha de albumina semifluida,
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero;


Teus gineceus prolíficos envolvem
Cinza fetal!... Basta um fósforo só
Para mostrar a incógnita de pó,
Em que todos os seres se resolvem!


Ah! Maldito o conúbio incestuoso
Dessas afinidades eletivas,
De onde quimicamente tu derivas,
Na aclamação simbiótica do gozo!


O enterro de minha última neurona
Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar
E esse acidente químico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!


Mas minha crise artrítica não tarda.
Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida,
Na abjecção embriológica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!

 

Augusto dos Anjos

Blake, O compasso de Deus

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Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Monólogo de uma senhora


A PEDIDO DE SOARES FEITOSA
 

Zenir Campos Reis
 

Recebi o pedido do amigo nas letras: estão cobrando de mim o poema de AA "Monólogo de uma Senhora". Atenção: não é o "Monólogo de uma Sombra". Poderia mandá-lo?

A coletânea mais completa, a da editora Nova Aguilar, não registrava nada semelhante. Fui ao Parnaso de além-túmulo, poemas psicografados por Chico Xavier, nada.

Lembrei-me da bravata atribuída a Tenório Cavalcante. Conta-se que, num comício ou conferência, citou uma frase segundo ele de Rui Barbosa. No auditório, o conhecedor da obra de Rui solicitou apar-te: "Nobre deputado, Rui Barbosa nunca disse tal frase". Tenório: "Se não disse ele, digo eu". E prosseguiu a fala.

Se não escreveu AAnjos, escrevo eu. E iniciei pela "chave de ouro" um soneto. Produzi o terceto final. Procurei lembrar um poema de AA para verificar o esquema das rimas e "psicografei" o restante. Com certeza, não compreendi bem o sussurro da sombra, pois apesar de ter substituído algumas palavras, deixei escapar um verso mal medido e um cacófato.

Naturalmente seria interessante que o manuscrito do poema tivesse sido encontrado na Igreja de N. S. das Neves, em João Pessoa, dentro do livro de registro de batismos dos anos 1900-1901. Assim, sugeria um soneto antigo, contemporâneo das primeiras produções do Poeta.

É claro que o "Monólogo de uma Senhora" deve ser criação de algum tipógrafo ou de algum copista menos calígrafo. Algumas letras são comuns às duas palavras: S O R A (SOmbRA, e SenhORA).

Antecedentes não faltam. Leia-se Lima Barreto, "Esta minha letra..." (28-6-1911): "saiu um folhetim meu (...) tão truncado, tão doido, que mais parecia delírio que coisa de homem são de espírito. Tive medo de ser recolhido ao hospício... § Que (minha letra) me levasse a incorrer na crítica gramatical da terra, vá; mas que me leve a dizer coisas contra a clara inteligência das coisas, contra o bom senso e o pensar honesto e com plena consciên-cia do que estou fazendo! e não sei a razão por que a minha letra me trai de maneira tão insólita e inesperada. Não digo que sejam os tipógrafos ou os revisores; eu não digo que sejam eles que me fazem escrever - a exposição de palavras sinistras - quando se tratava de exposição de projetos sinistros. Não, não são eles, absolutamente não são eles. Nem eu. É a minha letra".

Graciliano Ramos (27-5-1915): "a simples troca de uma letra modesta, coisa que parece insignificante, mas que tem o poder de transformar as palhas em pulhas, as hastes em hostes, os corpos em cornos. § Imagine-se o desespero de uma poetisa que, tendo terminado um soneto com esta chave: "Ando a esperar um derradeiro porto", tenha depois visto o verso publicado assim: "Ando a esperar um derradeiro parto".

De qualquer modo, não devemos decepcionar nossos consulentes com essas considerações desengraçadas. A sombra de um soneto é melhor do que qualquer emenda. Ei-la, pois:




Monólogo de uma senhora


"A Morte me livrou da contingência
A que a matéria bruta não escapa,
De ver meu rosto, etapa por etapa,
Murcho, mirrado, coriáceo, ausência.
 

O Anjo iníquo da degenerescência
Que azeda o vinho, a alma e a garapa,
E cobre o mundo com a negra capa,
Povoa a terra toda de excrescênclia.
 

Quando da vida me arrancou chorosa,
Deteve o bisturi da ruga odiosa,
E o triunfo rude da madrasta Hstória.
 

Liberta dessa carne miserável
Fico guardada bela, inalterável,
Nos Arcanos insondáveis da Memória."


(Homenagem a Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos dia 20 de abril de 1999, 115º aniversário de seu nascimento).

Zenir


 

Augusto dos Anjos

Michelangelo, Pietá

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Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Monólogo de uma sombra


«Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!


A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!


Pairando acima dos mundanos tectos,
Não conheço o acidente da Senectus
— Esta universitária sanguessuga ,
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento do papirus
E a miséria anatômica da ruga!


Na existência social, possuo uma arma
— O metafisicismo de Abidarma —
E trago, sem bramânicas tesouras,
Como um dorso de azêmola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras.


Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!


Tal qual quem para o próprio túmulo olha,
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como uma vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o Infortúnio.


Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,
Trazendo no deserto das idéias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!


Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as cousas se reduzem!


E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
A mostrar, já nos últimos momentos,
Como quem se submete a uma charqueada,
Ao clarão tropical da luz danada,
espólio dos seus dedos peçonhentos.


Tal a finalidade dos estames!
Mas ele viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os agregados perecíveis,
Nas eterizações indefiníveis
Da energia intra-atômica liberta!


Será calor, causa úbiqua de gozo,
Raio X, magnetismo misterioso,
Quimiotaxia, ondulação aérea,
Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos seres,
Estrangulada dentro da matéria!


E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
— Engrenagem de vísceras vulgares —
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!


A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.


É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece ...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.


E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?! ...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
A herança miserável de micróbios!


Estoutro agora é o sátiro peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo.
Como que, em suas células vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.


Brancas bacantes bêbedas o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E à noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar do meretrício,
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.


No horror de sua anômala nevrose,
Toda a sensualidade da simbiose,
Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,
Como no babilônico sansara,
Lembra a fome incoercível que escancara
A mucosa carnívora dos lobos.


Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.
Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual à luz que o ar acomete,
Com a veemência mavórtica do ariete
E os arremessos de uma catapulta.


Mas muitas vezes, quando a noite avança,
Hirto, observa através a tênue trança
Dos filamentos fluídicos de um halo
A destra descarnada de um duende,
Que, tateando nas tênebras, se estende
Dentro da noite má, para agarrá-lo!


Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su'alma na caverna escura,
Fazendo ultra-epilépticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos.


E o despertar de um povo subterrâneo!
É a fauna cavernícola do crânio
— Macbeths da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sanguinárias
Que ele tem praticado na família.


As alucinações tácteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssirna existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!


Míngua-se o combustível da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna,
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Na própria ânsia dionísica do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!


Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de uma esfera opaca.


Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
A condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!


Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.


Continua o martírio das criaturas:
— O homicídio nas vielas mais escuras,
— O ferido que a hostil gleba atra escarva,
— O último solilóquio dos suicidas —
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!»


Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadura do sarcasmo!


Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.


E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta à quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!


 

Augusto dos Anjos

Hélio Rola

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Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Soneto


N’augusta solidão dos cemitérios,
Resvalando nas sombras dos ciprestes,
Passam meus sonhos sepultados nestes
Brancos sepulcros, pálidos, funéreos.


São minhas crenças divinais, ardentes
- Alvos fantasmas pelos merencórios
Túmulos tristes, soturnais, silentes,
Hoje rolando nos umbrais marmóreos.
 

Quando da vida, no eternal soluço,
Eu choro e gemo e triste me debruço
Na lájea fria dos meus sonhos pulcros.


Desliza então a lúgubre coorte,
E rompe a orquestra sepulcral da morte,
Quebrando a paz suprema dos sepulcros.

 

Augusto dos Anjos

Ruth, by Francesco Hayez

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John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott