Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O condenado


Folga a justiça e geme a natureza - Bocage
Alma feita somente de granito,
Condenada a sofrer cruel tortura
Pela rua sombria d’amargura
- Ei-lo que passa - réprobo maldito.


Olhar ao chão cravado e sempre fito,
Parece contemplar a sepultura
Das suas ilusões que a desventura
Desfez em pó no hórrido delito.


E, à cruz da expiação subindo mudo,
A vida a lhe fugir já sente prestes
Quando ao golpe do algoz, calou-se tudo.


O mundo é um sepulcro de tristeza,
Ali, por entre matas de ciprestes,
Folga a justiça e geme a natureza.


 

Augusto dos Anjos

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

Voltar para o índice

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O corrupião


Escaveirado corrupião idiota,
Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,
E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,
Que do fundo do chão todo o ano brota!


Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada da última derrota!


A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade! ...
Ah! Tu somente ainda és igual a mim.


Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôs assim!

 

Augusto dos Anjos

Jornal de Filosofia

Voltar para o índice

Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O coveiro


Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.
 

Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh’alma entristecida
E interroguei-o: "Eterno companheiro
 

Da morte, que matou-te o coração?"
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!
 

Depois, tomando a enxada gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente: -
"Ai! Foi por isso que me fiz coveiro!"

 

Augusto dos Anjos

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

Voltar para o índice

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O deus-verme


Factor universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme — é o seu nome obscuro de batismo.


Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.


Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...


Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!

 

Augusto dos Anjos

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

Voltar para o índice

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O fim das coisas


Pode o homem bruto, adstricto à ciência grave,
Arrancar, num triunfo surpreendente,
Das profundezas do Subconsciente
O milagre estupendo da aeronave!


Rasgue os broncos basaltos negros, cave,
Sôfrego, o solo sáxeo; e, na ânsia ardente
De perscrutar o íntimo do orbe, invente
A limpada aflogística de Davy!


Em vão! Contra o poder criador do Sonho
O Fim das Coisas mostra-se medonho
Como o desaguadouro atro de um rio ...


E quando, ao cabo do último milênio,
A humanidade vai pesar seu gênio
Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!

 

Augusto dos Anjos

A menina afegã

Voltar para o índice

Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O lamento das coisas


Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!


É a dor da Força desaproveitada
— O cantochão dos dínamos profundos,
Que, podendo mover milhões de mundos,
jazem ainda na estática do Nada!


É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...


E é em suma, o subconsciente ai formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!

 

Augusto dos Anjos

Um cronômetro para piscinas

Voltar para o índice

José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O Lázaro da pátria


Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.


Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes,


Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíasis dos dedos...
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece,
 

Riem as meretrizes no Casino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!

 

Augusto dos Anjos

Blake, O compasso de Deus

Voltar para o índice

Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O lupanar


Ali! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!


Este logar, moços do mundo, vêde:
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sede!


É o afrodisíaco leito do hetairismo,
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,


Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!

 

Augusto dos Anjos

Michelangelo, Pietá

Voltar para o índice

Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O mar


O mar é triste como um cemitério,
Cada rocha é uma eterna sepultura
Banhada pela imácula brancura
De ondas chorando num albor etéreo.


Ah! dessas no bramir funéreo
Jamais vibrou a sinfonia pura
Do amor; só descanta, dentre a escura
Treva do oceano, a voz do meu saltério!


Quando a cândida espuma dessas vagas,
Banhando a fria solidão das fragas,
Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma.


Reflete a luz do sol que já não arde,
Treme na treva a púrpura da tarde,
Chora a saudade envolta nesta espuma!


Pau d’Arco - 1902


 

Augusto dos Anjos

Hélio Rola

Voltar para o índice

Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

Clique aqui: milhares de poetas e críticos da lusofonia!

Um esboço de Da Vinci

 

 

Augusto dos Anjos


O mar, a escada e o homem


"Olha agora, mamífero inferior,
"A luz da epicurista ataraxia,
"O fracasso de tua geografia
"E de teu escafandro esmiuçador!


"Ah! jamais saberás ser superior,
"Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,
"Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia
"evoando ao vento o vastíssimo vapor,


"Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!"
E a verticalidade da Escada íngreme:
"Homem, já transpuseste os meus degraus?!"


E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços
No pandemônio aterrador do Caos!

 

Augusto dos Anjos

Ruth, by Francesco Hayez

Voltar para o índice

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott