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             Os doentes  
             
             
            I  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            Como uma cascavel que se enroscava
             
            A cidade dos lázaros dormia...  
            Somente, na metrópole vazia,  
            Minha cabeça autônoma pensava!  
             
             
            Mordia-me a obsessão má de que havia,  
            Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,  
            Um fígado doente que sangrava  
            E uma garganta de órfã que gemia!  
             
             
            Tentava compreender com as conceptivas  
            Funções do encéfalo as substâncias vivas  
            Que nem Spencer, nem Haeckei compreenderam. . .  
             
             
            E via em mim, coberto de desgraças,  
            O resultado de biliões de raças  
            Que há muitos anos desapareceram!  
             
             
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            II  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            Minha angústia feroz não tinha nome.
             
            Ali, na urbe natal do desconsolo,  
            Eu tinha de comer o último bolo  
            Que Deus fazia para a minha fome!  
             
             
            Convulso, o vento entoava um pseudopsalmo.  
            Contrastando, entretanto, com o ar convulso  
            A noite funcionava como um pulso  
            Fisiologicamente muito calmo.  
             
             
            Caíam sobre os meus centros nervosos,  
            Como os pingos ardentes de cem velas,  
            O uivo desenganado das cadelas  
            E o gemido dos homens bexigosos.  
             
             
            Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!  
            Mas, em cima de um túmulo, um cachorro  
            Pedia para mim água e socorro  
            A comiseração dos transeuntes!  
             
             
            Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro  
            Reboava. Além jazia aos pés da serra,  
            Creando as superstições de minha terra,  
            A queixada específica de um burro!  
             
             
            Gordo adubo da agreste urtiga brava,  
            Benigna água, magnânima e magnífica,  
            Em cuja álgida unção, branda e beatifica,  
            A Paraíba indígena se lava!  
             
             
            A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo  
            E a câmara odorífera dos sumos  
            Absorvem diariamente o ubérrimo húmus  
            Que Deus espalha à beira do teu tálamo!  
             
             
            Nos de teu curso desobstruídos trilhos,  
            Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,  
            O hidrogênio e o oxigênio que tu choras  
            Pelo falecimento dos teus filhos!  
             
             
            Ah! Somente eu compreendo, satisfeito,  
            A incógnita psiquê das massas mortas  
            Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,  
            Na esteira egualitária do teu leito!  
             
             
            O vento continuava sem cansaço  
            E enchia com a fluidez do eólico hissope  
            Em seu fantasmagórico galope  
            A abundância geométrica do espaço.  
             
             
            Meu ser estacionava, olhando os campos  
            Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos  
            Reduziam os Céus sérios e rudos  
            A uma epiderme cheia de sarampos!  
             
             
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            III  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            Dormia em baixo, com a promíscua 
            véstia  
            No embotamento crasso dos sentidos,  
            A comunhão dos homens reunidos  
            Pela camaradagem da moléstia.  
             
             
            Feriam-me o nervo óptico e a retina  
            Aponevroses e tendões de Aquiles,  
            Restos repugnantíssimos de bílis,  
            Vômitos impregnados de ptialina.  
             
             
            Da degenerescência étnica do Ária  
            Se escapava, entre estrépitos e estouros  
            Reboando pelos séculos vindouros,  
            O ruído de uma tosse hereditária.  
             
             
            Oh! desespero das pessoas tísicas,  
            Adivinhando o frio que há nas lousas,  
            Maior felicidade é a destas cousas  
            Submetidas apenas às leis físicas!  
             
             
            Estas, por mais que os cardos grandes rocem  
            Seus corpos brutos, dores não recebem;  
            Estas dos bacalhaus o óleo não bebem  
            Estas não cospem sangue, estas não tossem!  
             
             
            Descender dos macacos catarríneos,  
            Cair doente e passar a vida inteira  
            Com a boca junto de uma escarradeira,  
            Pintando o chio de coágulos sanguíneos!  
             
             
            Sentir, adstrictos ao quimiotropismo  
            Erótico, os micróbios assanhados  
            Passearem, como inúmeros soldados,  
            Nas cancerosidades do organismo!  
             
             
            Falar somente uma linguagem rouca,  
            Um português cansado e incompreensível,  
            Vomitar o pulmão na noite horrível  
            Em que se deita sangue pela boca!  
             
             
            Expulsar, aos bocados, a existência  
            Numa bacia autômata de barro,  
            Alucinado, vendo em cada escarro  
            O retrato da própria consciência!  
             
             
            Querer dizer a angústia de que é pábulo,  
            E com a respiração já muito fraca  
            Sentir como que a ponta de uma faca,  
            Cortando as raízes do último vocábulo!  
             
             
            Não haver terapêutica que arranque  
            Tanta opressão como se, com efeito  
            Lhe houvessem sacudido sobre o peito  
            A máquina pneumática de Bianchi!  
             
             
            E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba  
            A erguer, como um cronômetro gigante,  
            Marcando a transição emocionante  
            Do lar materno para a catacumba!  
             
             
            Mas vos não lamenteis, magras mulheres,  
            Nos ardores danados da febre hética,  
            Consagrando vossa última fonética  
            A uma recitação de misereres.  
             
             
            Antes levardes ainda uma quimera  
            Para a garganta omnívora das lajes  
            Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes  
            Contra a dissolução que vos espera!  
             
             
            Porque a morte, resfriando-vos o rosto,  
            Consoante a minha concepção vesânica,  
            É a alfândega, onde toda a vida orgânica  
            Há de pagar um dia o último imposto!  
             
             
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            IV  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            Começara a chover. Pelas algentes  
            Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,  
            Encharcava os buracos das feridas,  
            Alagava a medula dos Doentes!  
             
             
            Do fundo do meu trágico destino,  
            Onde a Resignação os braços cruza,  
            Saía, com o vexame de uma fusa,  
            A mágoa gaguejada de um cretino.  
             
             
            Aquele ruído obscuro de gagueira  
            Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda.  
            Vinha da vibração bruta da corda  
            Mais recôndita da alma brasileira!  
             
             
            Aturdia-me a tétrica miragem  
            De que, naquele instante, no Amazonas,  
            Fedia, entregue a vísceras glutonas,  
            A carcaça esquecida de um selvagem.  
             
             
            A civilização entrou na taba  
            Em que ele estava. O gênio de Colombo  
            Manchou de opróbrios a alma do mazombo,  
            Cuspiu na cova do morubixaba!  
             
             
            E o índio, por fim, adstricto à étnica escória,  
            Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,  
            Esse achincalhamento do progresso  
            Que o anulava na crítica da História!  
             
             
            Como quem analisa um. apostema,  
            De repente, acordando na desgraça,  
            Viu toda a podridão de sua raça...  
            Na tumba de Iracema! ...  
             
             
            Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,  
            Exercia sobre ele ação funesta  
            Desde o desbravamento da floresta  
            A ultrajante invenção do telefone.  
             
             
            E sentia-se pior que um vagabundo  
            Microcéfalo vil que a espécie encerra  
            Desterrado na sua própria terra,  
            Diminuído na crônica do mundo!  
             
             
            A hereditariedade dessa pecha  
            Seguiria seus filhos. Dora em deante  
            Seu povo tombaria agonizante  
            Na luta da espingarda com a flecha!  
             
             
            Veio-lhe então como à fêmea vem antojos,  
            Uma desesperada ânsia improfícua  
            De estrangular aquela gente iníqua,  
            Que progredia sobre os seus despojos!  
             
             
            Mas, deante a xantocróide raça loura,  
            Jazem, caladas, todas as inúbias,  
            E agora, sem difíceis nuanças dúbias,  
            Com uma clarividência aterradora,  
             
             
            Em vez da prisca tribo e indiana tropa  
            A gente deste século, espantada,  
            Vê somente a caveira abandonada  
            De uma raça esmagada pela Europa!  
             
             
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            V  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            Era a hora em que arrastados pelos 
            ventos,  
            Os fantasmas hamléticos dispersos  
            Atiram na consciência dos perversos  
            A sombra dos remorsos famulentos.  
             
             
            As mães sem coração rogavam pragas  
            Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos,  
            Batia com o pentágono dos dedos  
            Sobre um fundo hipotético de chagas!  
             
             
            Diabólica dinâmica daninha  
            Oprimia meu cérebro indefeso  
            Com a força onerosíssima de um peso  
            Que eu não sabia mesmo de onde vinha.  
             
             
            Perfurava-me o peito a áspera pua  
            Do desânimo negro que me prostra,  
            E quase a todos os momentos mostra  
            Minha caveira aos bêbedos da rua.  
             
             
            Hereditariedades politípicas  
            Punham na minha boca putrescível  
            Interjeições de abracadabra horrível  
            E os verbos indignados das Filípicas.  
             
             
            Todos os vocativos dos blasfemos,  
            No horror daquela noite monstruosa,  
            Maldiziam, com voz estentorosa,  
            A peçonha inicial de onde nascemos.  
             
             
            Como que havia na ânsia de conforto  
            De cada ser, ex.: o homem e o ofídio,  
            Uma necessidade de suicídio  
            E um desejo incoercível de ser morto!  
             
             
            Naquela angústia absurda e tragicômica  
            Eu chorava, rolando sobre o lixo,  
            Com a contorção neurótica de um bicho  
            Que ingeriu 30 gramas de nux-vômica.  
             
             
            E, como um homem doido que se enforca,  
            Tentava, na terráquea superfície,  
            Consubstandar-me todo com a imundície,  
            Confundir-me com aquela coisa porca!  
             
             
            Vinha, às vezes, porém, o anelo instável  
            De, com o auxílio especial do osso masséter  
            Mastigando homeomérias neutras de éter  
            Nutrir-me da matéria imponderável.  
             
             
            Anelava ficar um dia, em suma,  
            Menor que o anfióxus e inferior à tênia,  
            Reduzido à plastídula homogênea,  
            Sem diferenciação de espécie alguma.  
             
             
            Era (nem sei em síntese o que diga)  
            Um velhíssimo instinto atávico, era  
            A saudade inconsciente da monera  
            Que havia sido minha mãe antiga!  
             
             
            Com o horror tradicional da raiva corsa  
            Minha vontade era, perante a cova,  
            Arrancar do meu próprio corpo a prova  
            Da persistência trágica da força.  
             
             
            A pragmática má de humanos usos  
            Não compreende que a Morte que não dorme  
            É a obsorção do movimento enorme  
            Na dispersão dos átomos difusos.  
             
             
            Não me incomoda esse último abandono.  
            Se a carne individual hoje apodrece,  
            Amanhã, como Cristo, reaparece  
            Na universalidade do carbono!  
             
             
            A vida vem do éter que se condensa,  
            Mas o que mais no Cosmos me entusiasma  
            É a esfera microscópica do plasma  
            Fazer a luz do cérebro que pensa.  
             
             
            Eu voltarei, cansado da árdua liça,  
            A substância inorgânica primeva,  
            De onde, por epigênesis, veio Eva  
            E a stirpe radiolar chamada Actissa!  
             
             
            Quando eu for misturar-me com as violetas,  
            Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,  
            Reviverá, dando emoção à pedra,  
            Na acústica de todos os planetas!  
             
             
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            VI  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            À álgida agulha, agora, alva, a 
            saraiva  
            Caindo, análoga era... Um cão agora  
            Punha a atra língua hidrófoba de fora  
            Em contracções miológicas de raiva.  
             
             
            Mas, para além, entre oscilantes chamas,  
            Acordavam os bairros da luxúria...  
            As prostitutas, doentes de hematúria,  
            Se extenuavam nas camas.  
             
             
            Uma, ignóbil, derreada de cansaço,  
            Quase que escangalhada pelo vício,  
            Cheirava com prazer no sacrifício  
            A lepra má que lhe roía o braço!  
             
             
            E, ensangüentava os dedos da mão nívea  
            Com o sentimento gasto e a emoção pobre,  
            Nessa alegria bárbara que cobre  
            Os saracoteamentos da lascívia...  
             
             
            De certo, a perversão de que era presa  
            O sensorium daquela prostituta  
            Vinha da adaptação quase absoluta  
            À ambiência microbiana da baixeza!  
             
             
            Entanto, virgem fostes, e, quando o éreis,  
            Não tínheis ainda essa erupção cutânea,  
            Nem tínheis, vítima última da insânia,  
            Duas mamárias glândulas estéreis!  
             
             
            Ah! Certamente, não havia ainda  
            Rompido, com violência, no horizonte,  
            O sol malvado que secou a fonte  
            De vossa castidade agora finda!  
             
             
            Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,  
            Estendestes ao mundo, até que, à toa,  
            Fostes vender a virginal coroa  
            Ao primeiro bandido do arrabalde.  
             
             
            E estais velha! — De vós o mundo é farto,  
            E hoje, que a sociedade vos enxota,  
            Somente as bruxas negras da derrota  
            Freqüentam diariamente vosso quarto!  
             
             
            Prometem-vos. (quem sabe?!) entre os ciprestes  
            Longe, da mancebia dos alcouces,  
            Nas quietudes nirvânicas mais doces.  
            O noivado que em vida não tivestes!  
             
             
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            VII  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            Quase todos os lutos conjugados,  
            Como, uma associação de monopólio,  
            Lançavam pinceladas pretas de óleo  
            Na arquitetura arcaica dos sobrados.  
             
             
            Dentro da noite funda um braço humano  
            Parecia cavar ao longe um poço  
            Para enterrar minha ilusão de moço,  
            Como a boca de um poço artesiano!  
             
             
            Atabalhoadamente pelos becos,  
            Eu pensava nas coisas que perecem.  
            Desde as musculaturas que apodrecem  
            À ruína vegetal dos lírios secos.  
             
             
            Cismava no propósito funéreo  
            Da mosca debochada que fareja  
            O defunto, no chão frio da igreja,  
            E vai depois levá-lo ao cemitério!  
             
             
            E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,  
            Sentia, na craniana caixa tosca,  
            A racionalidade dessa mosca,  
            A consciência terrível desse inseto!  
             
             
            Regougando, porém, argots e aljâmias,  
            Como quem nada encontra que o perturbe,  
            A energúmena grei dos ébrios da urbe  
            Festejava seu sábado de infâmias.  
             
             
            A estática fatal das paixões cegas,  
            Rugindo fundamente nos neurônios,  
            Puxava aquele povo de demônios  
            Para a promiscuidade das adegas.  
             
             
            E a ébria turba que escaras sujas masca,  
            A falta idiosincrásica de escrúpulo,  
            Absorvia com gáudio absinto, lúpulo  
            E outras substâncias tóxicas da tasca.  
             
             
            O ar ambiente cheirava a ácido acético,  
            Mas, de repente, com o ar de quem empesta,  
            Apareceu, escorraçando a festa,  
            A mandíbula inchada de um morfético!  
             
             
            Saliências polimórficas vermelhas,  
            Em cujo aspecto o olhar perspícuo prendo,  
            Punham-lhe num destaque horrendo o horrendo  
            Tamanho aberratório das orelhas.  
             
             
            O fácies do morfético assombrava!  
            — Aquilo era uma negra eucaristia,  
            Onde minh'alma inteira surpreendia  
            A Humanidade que se lamentava!  
             
             
            Era todo o meu sonho, assim, inchado,  
            Já podre, que a morféa miserável  
            Tornava às impressões tactis, palpável,  
            Como se fosse um corpo organizado!  
             
             
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            VIII  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            Em torno a mim, nesta hora, estriges 
            voam,  
            E o cemitério, em que eu entrei adrede,  
            Dá-me a impressão de um boulevard que fede  
            Pela degradação dos que o povoam.  
             
             
            Quanta gente, roubada à humana coorte,  
            Morre de fome, sobre a palha espessa,  
            Sem ter, como Ugolino, uma cabeça  
            Que possa mastigar na hora da morte;  
             
             
            E nua, após baixar ao caos budista,  
            Vem para aqui, nos braços de um canalha,  
            Porque o madapolão para a mortalha  
            Custa 1 200 ao lojista!  
             
             
            Que resta das cabeças que pensaram?!  
            E afundado nos sonhos mais nefastos,  
            Ao pegar num milhão de miolos gastos,  
            Todos os meus cabelos se arrepiaram.  
             
             
            Os evolucionismos benfeitores  
            Que por entre os cadáveres caminham,  
            Iguais a irmãs de caridade, vinham  
            Com a podridão dar de comer às flores!  
             
             
            Os defuntos então me ofereciam  
            Com as articulações das mãos inermes,  
            Num prato de hospital, cheio de vermes,  
            Todos os animais que apodreciam!  
             
             
            É possível que o estômago se afoite  
            (Muito embora contra isto a alma se irrite)  
            A cevar o antropófago apetite,  
            Comendo carne humana, à meia-noite!  
             
             
            Com uma ilimitadíssima tristeza,  
            Na impaciência do estômago vazio,  
            Eu devorava aqueje bolo frio  
            Feito das podridões da Natureza!  
             
             
            E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos.  
            Vendo passar com as túnicas obscuras,  
            As escaveiradíssimas figuras  
            Das negras desonradas pelos brancos;  
             
             
            Pisando, como quem salta, entre fardos,  
            Nos corpos nus das moças hotentotes  
            Entregues, ao clarão de alguns archotes,  
            A sodomia indigna dos moscardos;  
             
             
            Eu maldizia o deus de mãos nefandas  
            Que, transgredindo a egualitária regra  
            Da Natureza, atira a raça negra  
            Ao contubérnio diário das quitandas!  
             
             
            Na evolução de minha dor grotesca,  
            Eu mendigava aos vermes insubmissos  
            Como indenização dos meus serviços,  
            O benefício de uma cova fresca.  
             
             
            Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora,  
            Como o íncola do pólo ártico, às vezes,  
            Absorve, após a noite de seis meses,  
            Os raios caloríficos da aurora.  
             
             
            Nunca mais as goteiras cairiam  
            Como propositais setas malvadas,  
            No frio matador das madrugadas,  
            Por sobre o coração dos que sofriam!  
             
             
            Do meu cérebro à absconsa tábua rasa  
            Vinha a luz restituir o antigo crédito,  
            Proporcionando-me o prazer inédito,  
            De quem possui um sol dentro de casa.  
             
             
            Era a volúpia fúnebre que os ossos  
            Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,  
            À apreensão fisiológica do faro  
            O odor cadaveroso dos destroços!  
             
             
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            IX  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
            O inventário do que eu já tinha sido
             
            Espantava. Restavam só de Augusto  
            A forma de um mamífero vetusto  
            E a cerebralidade de um vencido!  
             
             
            O gênio procreador da espécie eterna  
            Que me fizera, em vez de hiena ou lagarta,  
            Uma sobrevivência de Sidarta,  
            Dentro da filogênese moderna;  
             
             
            E arrancara milhares de existências  
            Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,  
            Ia arrastando agora a alma infecunda  
            Na mais triste de todas as falências.  
             
             
            Um céu calamitoso de vingança  
            Desagregava, déspota e sem normas,  
            O adesionismo biôntico das formas  
            Multiplicadas pela lei da herança!  
             
             
            A ruína vinha horrenda e deletéria  
            Do subsolo infeliz, vinha de dentro  
            Da matéria em fusão que ainda há no centro,  
            Para alcançar depois a periferia!  
             
             
            Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!  
            Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos  
            Tinham aspectos de edifícios mortos  
            Decompondo-se desde os alicerces!  
             
             
            A doença era geral, tudo a extenuar-se  
            Estava. O Espaço abstracto que não morre  
            Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,  
            Parecia também desagregar-se!  
             
             
            Os pródromos de um tétano medonho  
            Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,  
            Eu sentia nascer-me n'alma, entanto,  
            O começo magnífico de um sonho!  
             
             
            Entrem formas decrépitas do povo,  
            Já batiam por cima dos estragos  
            A sensação e os movimentos vagos  
            Da célula inicial de um Cosmos novo!  
             
             
            O letargo larvário da cidade  
            Crescia. Igual a um parto, numa furna,  
            Vinha da original treva nocturna,  
            O vagido de uma outra Humanidade!  
             
             
            E eu, com os pés atolados no Nirvana,  
            Acompanhava, com um prazos secreto,  
            A gestação daquele grande feto,  
            Que vinha substituir a Espécie Humana!  
  
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
     
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