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Augusto dos Anjos


O martírio do artista


Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!


Tarda-lhe a idéa! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!


Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à mingua
Da própria voz e na que ardente o lavra


Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!
 

Augusto dos Anjos

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


O meu nirvana


No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!


Nessa manumissão schopenhauereana,
Onde a Vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na imanência da Idéa Soberana!


Destruída a sensação que oriunda fora
Do tacto — ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéas —


Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéas!
 

Augusto dos Anjos

Jornal de Filosofia

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Jornal de Tributos

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


O morcego


Meia noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vêde:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.


"Vou mandar levantar outra parede..."
— Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!


Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!


A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

 

Augusto dos Anjos

Thomas Cole, (1801-1848) The Voyage of Life; Youth

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


O pântano


Podem vê-lo, sem dor, meus semelhantes!
Mas, para mim que a Natureza escuto,
Este pântano é o túmulo absoluto,
De todas as grandezas começantes!


Larvas desconhecidas de gigantes
Sobre o seu leito de peçonha e luto
Dormem tranqüilamente o sono bruto
Dos superorganismos ainda infantes!
 

Em sua estagnação arde uma raça,
Tragicamente, à espera de quem passa
Para abrir-lhe, às escâncaras, a porta...


E eu sinto a angústia dessa raça ardente
Condenada a esperar perpetuamente
No universo esmagado da água morta!

 

Augusto dos Anjos

Maura Barros de Carvalho, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


O poeta do hediondo


Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!


Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!
 

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...


Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
 

Augusto dos Anjos

A menina afegã

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Culpa

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


O sarcófago


Senhor da alta hermenêutica do Fado
Perlustro o atrium da Morte... É frio o ambiente
E a chuva corta inexoravelmente
O dorso de um sarcófago molhado!


Ah! Ninguém ouve o soluçante brado
De dor profunda, acérrima e latente.
Que o sarcófago, ereto e imóvel sente
Em sua própria sombra sepultado!


Dói-lhe (quem sabe?!) essa grandeza horrível
Que em toda a sua máscara se expande,
À humana comoção impondo-a, inteira...


Dói-lhe, em suma, perante o Incognoscível
Essa fatalidade de ser grande
Para guardar unicamente poeira!

 

Augusto dos Anjos

Um cronômetro para piscinas

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José Saramago, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Os doentes


I
 

Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!


Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia!


Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckei compreenderam. . .


E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de biliões de raças
Que há muitos anos desapareceram!


 

II
 

Minha angústia feroz não tinha nome.
Ali, na urbe natal do desconsolo,
Eu tinha de comer o último bolo
Que Deus fazia para a minha fome!


Convulso, o vento entoava um pseudopsalmo.
Contrastando, entretanto, com o ar convulso
A noite funcionava como um pulso
Fisiologicamente muito calmo.


Caíam sobre os meus centros nervosos,
Como os pingos ardentes de cem velas,
O uivo desenganado das cadelas
E o gemido dos homens bexigosos.


Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!
Mas, em cima de um túmulo, um cachorro
Pedia para mim água e socorro
A comiseração dos transeuntes!


Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro
Reboava. Além jazia aos pés da serra,
Creando as superstições de minha terra,
A queixada específica de um burro!


Gordo adubo da agreste urtiga brava,
Benigna água, magnânima e magnífica,
Em cuja álgida unção, branda e beatifica,
A Paraíba indígena se lava!


A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo
E a câmara odorífera dos sumos
Absorvem diariamente o ubérrimo húmus
Que Deus espalha à beira do teu tálamo!


Nos de teu curso desobstruídos trilhos,
Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,
O hidrogênio e o oxigênio que tu choras
Pelo falecimento dos teus filhos!


Ah! Somente eu compreendo, satisfeito,
A incógnita psiquê das massas mortas
Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,
Na esteira egualitária do teu leito!


O vento continuava sem cansaço
E enchia com a fluidez do eólico hissope
Em seu fantasmagórico galope
A abundância geométrica do espaço.


Meu ser estacionava, olhando os campos
Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos
Reduziam os Céus sérios e rudos
A uma epiderme cheia de sarampos!


 

III
 

Dormia em baixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.


Feriam-me o nervo óptico e a retina
Aponevroses e tendões de Aquiles,
Restos repugnantíssimos de bílis,
Vômitos impregnados de ptialina.


Da degenerescência étnica do Ária
Se escapava, entre estrépitos e estouros
Reboando pelos séculos vindouros,
O ruído de uma tosse hereditária.


Oh! desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!


Estas, por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos brutos, dores não recebem;
Estas dos bacalhaus o óleo não bebem
Estas não cospem sangue, estas não tossem!


Descender dos macacos catarríneos,
Cair doente e passar a vida inteira
Com a boca junto de uma escarradeira,
Pintando o chio de coágulos sanguíneos!


Sentir, adstrictos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados
Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!


Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!


Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!


Querer dizer a angústia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!


Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A máquina pneumática de Bianchi!


E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um cronômetro gigante,
Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!


Mas vos não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,
Consagrando vossa última fonética
A uma recitação de misereres.


Antes levardes ainda uma quimera
Para a garganta omnívora das lajes
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!


Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesânica,
É a alfândega, onde toda a vida orgânica
Há de pagar um dia o último imposto!


 

IV
 

Começara a chover. Pelas algentes
Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!


Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Saía, com o vexame de uma fusa,
A mágoa gaguejada de um cretino.


Aquele ruído obscuro de gagueira
Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda.
Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!


Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.


A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!


E o índio, por fim, adstricto à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!


Como quem analisa um. apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça...
Na tumba de Iracema! ...


Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta
Desde o desbravamento da floresta
A ultrajante invenção do telefone.


E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!


A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em deante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda com a flecha!


Veio-lhe então como à fêmea vem antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua
De estrangular aquela gente iníqua,
Que progredia sobre os seus despojos!


Mas, deante a xantocróide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias,
E agora, sem difíceis nuanças dúbias,
Com uma clarividência aterradora,


Em vez da prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!


 

V
 

Era a hora em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas hamléticos dispersos
Atiram na consciência dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.


As mães sem coração rogavam pragas
Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos,
Batia com o pentágono dos dedos
Sobre um fundo hipotético de chagas!


Diabólica dinâmica daninha
Oprimia meu cérebro indefeso
Com a força onerosíssima de um peso
Que eu não sabia mesmo de onde vinha.


Perfurava-me o peito a áspera pua
Do desânimo negro que me prostra,
E quase a todos os momentos mostra
Minha caveira aos bêbedos da rua.


Hereditariedades politípicas
Punham na minha boca putrescível
Interjeições de abracadabra horrível
E os verbos indignados das Filípicas.


Todos os vocativos dos blasfemos,
No horror daquela noite monstruosa,
Maldiziam, com voz estentorosa,
A peçonha inicial de onde nascemos.


Como que havia na ânsia de conforto
De cada ser, ex.: o homem e o ofídio,
Uma necessidade de suicídio
E um desejo incoercível de ser morto!


Naquela angústia absurda e tragicômica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de nux-vômica.


E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstandar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!


Vinha, às vezes, porém, o anelo instável
De, com o auxílio especial do osso masséter
Mastigando homeomérias neutras de éter
Nutrir-me da matéria imponderável.


Anelava ficar um dia, em suma,
Menor que o anfióxus e inferior à tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,
Sem diferenciação de espécie alguma.


Era (nem sei em síntese o que diga)
Um velhíssimo instinto atávico, era
A saudade inconsciente da monera
Que havia sido minha mãe antiga!


Com o horror tradicional da raiva corsa
Minha vontade era, perante a cova,
Arrancar do meu próprio corpo a prova
Da persistência trágica da força.


A pragmática má de humanos usos
Não compreende que a Morte que não dorme
É a obsorção do movimento enorme
Na dispersão dos átomos difusos.


Não me incomoda esse último abandono.
Se a carne individual hoje apodrece,
Amanhã, como Cristo, reaparece
Na universalidade do carbono!


A vida vem do éter que se condensa,
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa.


Eu voltarei, cansado da árdua liça,
A substância inorgânica primeva,
De onde, por epigênesis, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!


Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!


 

VI
 

À álgida agulha, agora, alva, a saraiva
Caindo, análoga era... Um cão agora
Punha a atra língua hidrófoba de fora
Em contracções miológicas de raiva.


Mas, para além, entre oscilantes chamas,
Acordavam os bairros da luxúria...
As prostitutas, doentes de hematúria,
Se extenuavam nas camas.


Uma, ignóbil, derreada de cansaço,
Quase que escangalhada pelo vício,
Cheirava com prazer no sacrifício
A lepra má que lhe roía o braço!


E, ensangüentava os dedos da mão nívea
Com o sentimento gasto e a emoção pobre,
Nessa alegria bárbara que cobre
Os saracoteamentos da lascívia...


De certo, a perversão de que era presa
O sensorium daquela prostituta
Vinha da adaptação quase absoluta
À ambiência microbiana da baixeza!


Entanto, virgem fostes, e, quando o éreis,
Não tínheis ainda essa erupção cutânea,
Nem tínheis, vítima última da insânia,
Duas mamárias glândulas estéreis!


Ah! Certamente, não havia ainda
Rompido, com violência, no horizonte,
O sol malvado que secou a fonte
De vossa castidade agora finda!


Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendestes ao mundo, até que, à toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.


E estais velha! — De vós o mundo é farto,
E hoje, que a sociedade vos enxota,
Somente as bruxas negras da derrota
Freqüentam diariamente vosso quarto!


Prometem-vos. (quem sabe?!) entre os ciprestes
Longe, da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvânicas mais doces.
O noivado que em vida não tivestes!


 

VII
 

Quase todos os lutos conjugados,
Como, uma associação de monopólio,
Lançavam pinceladas pretas de óleo
Na arquitetura arcaica dos sobrados.


Dentro da noite funda um braço humano
Parecia cavar ao longe um poço
Para enterrar minha ilusão de moço,
Como a boca de um poço artesiano!


Atabalhoadamente pelos becos,
Eu pensava nas coisas que perecem.
Desde as musculaturas que apodrecem
À ruína vegetal dos lírios secos.


Cismava no propósito funéreo
Da mosca debochada que fareja
O defunto, no chão frio da igreja,
E vai depois levá-lo ao cemitério!


E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,
Sentia, na craniana caixa tosca,
A racionalidade dessa mosca,
A consciência terrível desse inseto!


Regougando, porém, argots e aljâmias,
Como quem nada encontra que o perturbe,
A energúmena grei dos ébrios da urbe
Festejava seu sábado de infâmias.


A estática fatal das paixões cegas,
Rugindo fundamente nos neurônios,
Puxava aquele povo de demônios
Para a promiscuidade das adegas.


E a ébria turba que escaras sujas masca,
A falta idiosincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da tasca.


O ar ambiente cheirava a ácido acético,
Mas, de repente, com o ar de quem empesta,
Apareceu, escorraçando a festa,
A mandíbula inchada de um morfético!


Saliências polimórficas vermelhas,
Em cujo aspecto o olhar perspícuo prendo,
Punham-lhe num destaque horrendo o horrendo
Tamanho aberratório das orelhas.


O fácies do morfético assombrava!
— Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh'alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava!


Era todo o meu sonho, assim, inchado,
Já podre, que a morféa miserável
Tornava às impressões tactis, palpável,
Como se fosse um corpo organizado!


 

VIII
 

Em torno a mim, nesta hora, estriges voam,
E o cemitério, em que eu entrei adrede,
Dá-me a impressão de um boulevard que fede
Pela degradação dos que o povoam.


Quanta gente, roubada à humana coorte,
Morre de fome, sobre a palha espessa,
Sem ter, como Ugolino, uma cabeça
Que possa mastigar na hora da morte;


E nua, após baixar ao caos budista,
Vem para aqui, nos braços de um canalha,
Porque o madapolão para a mortalha
Custa 1 200 ao lojista!


Que resta das cabeças que pensaram?!
E afundado nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar num milhão de miolos gastos,
Todos os meus cabelos se arrepiaram.


Os evolucionismos benfeitores
Que por entre os cadáveres caminham,
Iguais a irmãs de caridade, vinham
Com a podridão dar de comer às flores!


Os defuntos então me ofereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animais que apodreciam!


É possível que o estômago se afoite
(Muito embora contra isto a alma se irrite)
A cevar o antropófago apetite,
Comendo carne humana, à meia-noite!


Com uma ilimitadíssima tristeza,
Na impaciência do estômago vazio,
Eu devorava aqueje bolo frio
Feito das podridões da Natureza!


E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos.
Vendo passar com as túnicas obscuras,
As escaveiradíssimas figuras
Das negras desonradas pelos brancos;


Pisando, como quem salta, entre fardos,
Nos corpos nus das moças hotentotes
Entregues, ao clarão de alguns archotes,
A sodomia indigna dos moscardos;


Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a egualitária regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubérnio diário das quitandas!


Na evolução de minha dor grotesca,
Eu mendigava aos vermes insubmissos
Como indenização dos meus serviços,
O benefício de uma cova fresca.


Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora,
Como o íncola do pólo ártico, às vezes,
Absorve, após a noite de seis meses,
Os raios caloríficos da aurora.


Nunca mais as goteiras cairiam
Como propositais setas malvadas,
No frio matador das madrugadas,
Por sobre o coração dos que sofriam!


Do meu cérebro à absconsa tábua rasa
Vinha a luz restituir o antigo crédito,
Proporcionando-me o prazer inédito,
De quem possui um sol dentro de casa.


Era a volúpia fúnebre que os ossos
Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,
À apreensão fisiológica do faro
O odor cadaveroso dos destroços!


 

IX
 

O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!


O gênio procreador da espécie eterna
Que me fizera, em vez de hiena ou lagarta,
Uma sobrevivência de Sidarta,
Dentro da filogênese moderna;


E arrancara milhares de existências
Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,
Ia arrastando agora a alma infecunda
Na mais triste de todas as falências.


Um céu calamitoso de vingança
Desagregava, déspota e sem normas,
O adesionismo biôntico das formas
Multiplicadas pela lei da herança!


A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar depois a periferia!


Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos
Decompondo-se desde os alicerces!


A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstracto que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!


Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me n'alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!


Entrem formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!


O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva nocturna,
O vagido de uma outra Humanidade!


E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazos secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!
 

Augusto dos Anjos

Blake, O compasso de Deus

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Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


O último número


Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,
A idéia estertorava-se... No fundo
Do meu entendimento moribundo
jazia o último número cansado.


Era de vê-lo, imóvel, resignado,
Tragicamente de si mesmo oriundo,
Fora da sucessão, estranho ao mundo,
Com o reflexo fúnebre do Increado:


Bradei: — Que fazes ainda no meu crânio?
E o último número, atro e subterrâneo,
Parecia dizer-me: "É tarde, amigo!
 

Pois que a minha ontogênica Grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa,
Não te abandono mais! Morro contigo!"

 

Augusto dos Anjos

Michelangelo, Pietá

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Valdir Rocha, Fui eu

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Soneto


Ouvi, senhora, o cântico sentido
Do coração que geme e s’estertora
N’ânsia letal que o mata e que o devora,
E que tornou-o assim, triste e descrido.


Ouvi, senhora, amei; de amor ferido,
As minhas crenças que alentei outrora
Rolam dispersas, pálidas agora,
Desfeitas todas num guaiar dorido.


E como a luz do sol vai-se apagando!
E eu triste, triste pela vida afora,
Eterno pegureiro caminhando,
 

Revolvo as cinzas de passadas eras,
Sombrio e mudo e glacial, senhora,
Como um coveiro a sepultar quimeras!

 

Augusto dos Anjos

Hélio Rola

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Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos


Sonetos
 

A meu Pai doente
 

Para onde fores, Pai, para onde fores,
Irei também, trilhando as mesmas ruas.
Tu, para amenizar as dores tuas,
Eu, para amenizar as minhas dores!


Que cousa triste! O campo tão sem flores,
E eu tão sem crença e as árvores tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!


Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
De assim magoar-te sem pesar havia?!
 

— Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim .
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!


 

Augusto dos Anjos

Ruth, by Francesco Hayez

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)