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                   Betty
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                Pingo
                no I de Instantes, indevidamente atribuído 
                a Borges... e também a “Nadine Stair”
                
                 
                 
                
                 
                Difícil
                decidir o que é pior para um escritor: ter um texto seu atribuído
                a outrem ou a divulgação,  como sendo de sua autoria, de algo que não escreveu.
                
                 
                Sempre
                houve enganos desse tipo. Um exemplo pré-internet é o do poema
                de Eduardo Alves da Costa, No Caminho, com Maiakovski,
                frequentemente citado como obra de Brecht ou do próprio
                Maiacovski. O poema é longo. Os versos divulgados popularmente
                estão na segunda estrofe: “Tu sabes, / conheces melhor do
                que eu / a velha história. / Na primeira noite eles se
                aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não
                dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam
                as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que
                um dia / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, /
                rouba-nos a luz, e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz
                da garganta. / E já não podemos dizer nada.” 
                
                 
                
                  Na
                internet, não encontrei este texto como sendo de Brecht nem de
                Maiacovsky, mas encontrei-o sem qualquer referência a autor,
                acompanhado da preocupante mensagem “envie este texto a um
                amigo” – como soe acontecer. Digo “preocupante” porque
                é essa ordem, à qual carneiros de toda espécie obedecem sem
                hesitação, que faz com que nossas caixas de correio
                superlotem-se. Estava num blog, o “Blogger do Lendário Rody”.
                
                Encontrei-o, ainda, também sem crédito ao autor e com o título
                modificado para “Pisam nas Flores”, em um site
                voltado – imaginem! – à defesa dos direitos civis. 
                
                 
                Assim
                é que alguns textos tornam-se, aos poucos, de “domínio público’. 
                
                
                 
                
                  O
                caso mais conhecido de autoria espuriamente atribuída é o
                daquela pérola de auto-ajuda divulgada como sendo de Jorge Luis
                Borges e chamada, em português e em espanhol, “Instantes”.
                Talvez nenhum i tenha sido mais pingado que esse, por
                pessoas esclarecidas que previnem os que deglutem informação
                falsa. 
                
                 
                
                  Apesar desse esforço conjunto, há 505 sites em português atribuindo-o a 
                  Borges. Em espanhol, 697. Em inglês, 512. Em italiano, 97. Em alemão, 
                  33. Como interromper o processo de disseminação desse engano? Mais: 
                  como ensinar um jovem a distinguir o bom do ruim, em literatura, 
                  quando está convencido de que um autor sobre cuja grandeza há 
                  consenso escreveu aquela patacoada?
                
                 
                
                  Estranhamente, não encontrei um único site com uma versão em francês 
                  de “Instantes”, embora Benjamin Rossen, que pesquisou exaustivamente 
                  as origens do texto, afirme que há traduções para “o espanhol, 
                  o francês, o finlandês, o sueco, o norueguês e o português”. 
                  Não sou versada em línguas escandinavas, e não pude checar essas 
                  versões, mas agradeço o envio de referências em francês, se alguém as tiver.
                
                 
                
                  Diz José Nêumanne Pinto, em artigo que se pode ler no 
                    Jornal de Poesia, que “o escritor 
                   gaúcho Moacyr Scliar sente-se parcialmente responsável por sua divulgação 
                   no Brasil, por ter encontrado o texto em Buenos Aires e o publicado em 
                   português, em Porto Alegre.”
                
                 
                
                  Na Folha de São Paulo, em 17 de dezembro de 1995, Moacir Scliar conta que 
                  conheceu o texto na Argentina, em 1987, atribuído a Borges. 
                  Ao retornar ao Brasil, transcreveu-o no jornal Zero Hora. “A 
                  repercussão foi extraordinária. ... ... imediatamente surgiram cópias 
                  que eu encontrava afixadas em lugares os mais variados: casas de amigos, 
                  restaurantes, repartições públicas. Ao mesmo tempo, pessoas me escreveram 
                  de Buenos Aires, contestando a autoria de INSTANTES.” E mais adiante: 
                  “INSTANTES não foi escrito por Borges e sim por uma norte-americana 
                  chamada Nadine Stair, foi publicado numa antologia da Bantam, e 
                  divulgado por Leo Buscaglia, autor de muitos livros de auto-ajuda. 
                  Em 1986 o texto apareceu em Buenos Aires numa revista tipo New Age, 
                  intitulada “Uno Mismo”. Daí chegou aos rádios, aos jornais e 
                  ao xerox..."
                
                 
                
                  Conta-nos Pascoalino S. Azords, no artigo Um Borges do Paraguai: 
                  “Quando esses versos já tinham chegado aos quatro cantos do mundo, 
                  só restou a Maria Kodama[4] apelar à justiça argentina para que os 
                  direitos autorais do texto apócrifo não fossem depositados na sua conta.” 
                  E continua o artigo com uma suposição: “A iniciativa da viúva de procurar 
                  a suprema corte argentina talvez tenha menos de escrúpulos do que de 
                  prudência. Caso amanhã apareça um herdeiro do verdadeiro autor de 
                  “Instantes”, Maria Kodama não estará lhe devendo nem um mísero 'muchas gracias'.”
                .
                
                 
                
                  No Caderno 2 do Estadão, em 13 de abril,  em artigo sobre texto 
                  indevidamente atribuído a Neruda, Haroldo Ceravolo Sereza cita o 
                  poeta e tradutor Ivo Barroso, que diz acreditar que a predominância, 
                  aqui, de atribuições a escritores latino-americanos se deva à 
                  semelhança entre as duas línguas: o espanhol seria mais fácil de 
                  imitar. Haroldo Ceravolo cita também Eric Nepomucemo: "é mais fácil 
                  detectar se um texto foi traduzido do inglês (pela estrutura da língua) 
                  do que se foi traduzido do espanhol" e “talvez a imagem 'exótica' 
                  dos latino-americanos favoreça a aceitação desses apócrifos. 
                  Somos, acima de tudo, desconhecidos e desprotegidos."
                
                 
                
                  Certo. Só que este texto não foi originalmente publicado em espanhol, 
                  mas em inglês, com o título de Daisies (margaridas). A versão mais 
                  divulgada pelos que se preocupam em livrar desta pieguice a cara de 
                  Borges é que quem perpetrou o poemeto foi uma americana de Louisville, 
                  no estado de Kentucky: Nadine Stair.
                
                 
                Instantes
                e Daisies
                
                 
                
                  É o que está, por exemplo, no Jornal de Poesia, num artigo de José
                Nêumanne Pinto onde se comenta o artigo do Nêumanne.
                
                 
                Aqui
                vai o texto objeto destas considerações, na forma como
                geralmente circula, em inglês: 
                
                 
                DAISIES: If I had my life to live over again, I'd try to make more
                mistakes next time. I would relax. I would limber up. I would be
                sillier than I have been this trip. I know of very few things I
                would take seriously. / I would be crazier. I would be less
                hygienic. I would take more chances. I would take more trips. I
                would climb more mountains, swim more rivers, and watch more
                sunsets. / I would burn more gasoline. I would eat more ice
                cream and fewer beans. I would have more actual problems and
                fewer imaginary ones. / You see, I am one of those people who
                live prophylactically and sensibly and sanely. Hour after hour.
                Day by Day. / Oh, I have had my moments, and if I had it to do
                over again, I'd have more of them. In fact, I'd having nothing
                else. Just moments, one right after another instead of living so
                many years ahead of each day. / I have been one of those people
                who never go anywhere without a thermometer, a hot water bottle,
                a gargle, a rain coat, and a parachute. / If I had it to do over
                again, I would go places and do things and travel lighter than I
                have. If I had my life to live over, I would start barefoot
                earlier in the spring and stay that way later in the fall. / I
                would play hockey more often. I would ride more merry-go-rounds.
                I'd pick more daisies.
                
                 
                
                  Note-se que é exatamente o correspondente em inglês à versão divulgada 
                  em espanhol como sendo de Borges  (exceto pela divisão em maior número 
                  de ”versos” na segunda). Entretanto, ainda não é a versão original em 
                  inglês. Pesquisadores dedicados concluíram que Nadine, ou quem quer que 
                  seja responsável pela versão acima, em inglês, cometeu plágio.
                
                
                 
                
                  Assim como os supracitados, em minha cruzada na defesa de autores que 
                  reviram em suas covas e na pressa de salvar Borges dessa fogueira, eu 
                  mesma cheguei a pedir a titulares de sites de poemas que trocassem o 
                  nome de  Borges pelo de Nadine, no que fui atendida. (Entretanto, os 
                  responsáveis por estes sites passaram a receber cartas indignadas 
                  corrigindo-os e exigindo que se desse a “Borges o que é de Borges”, 
                  na equivocada opinião dos missivistas.)
                
                 
                
                  Vejamos (argh!) a versão em espanhol. Não sei por que as mesmas frases 
                  soam muito mais derramadas, muito mais derretidas e piegas em espanhol 
                  ou em português que em inglês. Em inglês fica “quase” palatável. 
                  Em espanhol, é isto aqui:
                
                 
                Instantes: Si pudiera vivir nuevamente mi vida, 
  / En la próxima trataría de cometer más errores. / No intentaría ser tan perfecto, 
  me relajaría más. / Sería más tonto de lo que he sido, / de hecho tomaría muy pocas 
  cosas con seriedad. / Sería menos higiénico. // Correría más riesgos, / haría más 
  viajes, / contemplaría más atardeceres, / subiría más montañas, / nadaría más ríos. 
  // Iría a más lugares adonde nunca he ido, / comería más helados y menos habas, / 
  tendría más problemas reales y menos imaginarios. // Yo fui una de esas personas 
  que vivió sensata / y prolíficamente cada minuto de su vida; / claro que tuve 
  momentos de alegría. // Pero si pudiera volver atrás trataría / de tener solamente 
  buenos momentos. / Por si no lo saben, de eso está hecha la vida, / sólo de momentos; 
  no te pierdas el ahora. // Yo era uno de esos que nunca / iban a ninguna parte sin 
  un termómetro, / una bolsa de agua caliente, / un paraguas y un paracaídas; / 
  si pudiera volver a vivir, viajaría más liviano. // Si pudiera volver a vivir / 
  comenzaría a andar descalzo a principios / de la primavera / y seguiría descalzo 
  hasta concluir el otoño. // Daría más vueltas en calesita, / contemplaría más 
  amaneceres, / y jugaría con más niños, / si tuviera otra vez vida por delante. 
  // Pero ya ven, tengo 85 años y sé que me estoy muriendo.
                
                 
                
                  Tradução
                (na forma como circula na net): Se eu pudesse viver novamente a minha vida, 
                  / na próxima trataria de cometer mais erros. / Não tentaria ser tão perfeito, 
                  relaxaria mais./ Seria mais tolo ainda do que tenho sido; / na verdade, bem 
                  poucas coisas levaria a sério. / Seria menos higiênico. Correria mais riscos, 
                  / viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, / subiria mais montanhas, 
                  nadaria mais rios. / Iria a mais lugares onde nunca fui, / tomaria mais 
                  sorvete e menos lentilha, / teria mais problemas reais e menos imaginários. 
                  / Eu fui uma dessas pessoas que viveu / sensata e produtivamente cada minuto 
                  da sua vida. / Claro que tive momentos de alegria. / Mas, se pudesse voltar 
                  a viver, / trataria de ter somente bons momentos. / Porque, se não sabem, 
                  disso é feito a vida: / só de momentos - não percas o agora. / Eu era um 
                  desses que nunca ia a parte alguma / sem um termômetro, uma bolsa de água 
                  quente, / um guarda-chuva e um pára-quedas; / se voltasse a viver, viajaria 
                  mais leve./ Se eu pudesse voltar a viver, / começaria a andar descalço no 
                  começo da primavera / e continuaria assim até o fim do outono. / 
                  Daria mais voltas na minha rua, / contemplaria mais amanheceres / e 
                  brincaria com mais crianças, / se tivesse outra vez uma vida pela frente. 
                  / Mas, já viram, tenho 85 anos / e sei que estou morrendo.
                
                 
                 
                
                 
                
                  Terrível, hein? Mas, exceto pelas duas frases finais, a versão atribuída 
                  a Borges é tradução praticamente ao pé da letra do texto em inglês. O que 
                  nos leva a concluir que não procedem as lamúrias de que somos mais plagiáveis, 
                  nós, os latinos, por serem “exóticas” as nossas línguas. Talvez, ao 
                  contrário, quanto mais difundida uma língua, mais plagiadores terão 
                  acesso a ela.
                
                 
                Vejamos
                como Borges se expressa, quando dá o título de Instantes
                a um poema: 
                
                  EL INSTANTE: ¿Dónde estarán los siglos, dónde el sueño / de espadas que 
                  los tártaros soñaron, / dónde los fuertes muros que allanaron, / dónde 
                  el Árbol de Adán y el otro Leño? / El presente está solo. La memória / 
                  erige el tiempo. Sucesión y engaño / es la rutina del reloj. El año / 
                  no es menos vano que la vana historia. / Entre el alba y la noche hay 
                  un abismo / de agonías, de luces, de cuidados; / el rostro que se mira 
                  en los gastados / espejos de la noche no es el mismo. / El hoy fugaz es 
                  tenue y es eterno; / otro Cielo no esperes, ni otro Infierno. 
                
                  Isto é Poesia. Isto é Jorge Luis Borges. Grandes autores não produzem 
                  baboseiras. (Note-se que o poema não deixa de ser fortemente religioso: 
                  a citação ao “outro Lenho”, com maiúscula, é certamente uma referência à 
                  cruz das religiões cristãs, assim como “não esperes outro Céu, nem outro 
                  Inferno” revela o Borges místico.)
                
                 
                Nadine 
                
                 
                Mas
                estávamos falando em Nadine Stair – e quem foi ela, afinal?
                Uma escritora? Quem? 
                
                 
                Ivan
                Junqueira, relata que a jornalista 
                  Joannie Liesenfelt, especializada na busca de pessoas desaparecidas, ficou intrigada
                com uma “antología de mujeres poetas” publicada pela
                Papier Mache Press, que tem como título um trecho deste “poema”, e viajou ao
                Kentucky para tentar descobrir a autora. Concluiu que Nadine não
                pertence a nenhuma das quatro famílias Stair do Kentucky.
                Entretanto, uma das pessoas com quem conversou, Laura Stair,
                contou que, por causa das muitas cartas que recebeu pedindo
                dados sobre Nadine, tinha realizado sua própria pesquisa, que a
                levou a uma Nadine Strain, já falecida, mas com quem
                conversou por telefone.
                
                 
                
                  Por
                indicação de Laura, Joannie chegou a Byron Crawford,
                colunista do Louisville Courier-Journal, que descobriu uma
                sobrinha de Nadine Strain, segundo a qual sua tia não deixou
                outros escritos: a Música é que era sua paixão. Cega na
                velhice (como Borges), e vivendo em um asilo, Nadine pedia para
                ser levada ao piano todos os dias e tocava enquanto os outros
                faziam suas refeições.
                
                 
                
                  Sabemos,
                pois, que Nadine Strain existiu: nasceu em 20 de novembro de
                1892, morreu em 20 de novembro de 1988 e deixou seu corpo para a
                Escola de Medicina da Universidade de Lousiville. Em
                contrapartida, nada se sabe de Nadine Stair, a não ser que
                ninguém no Kentucky tinha esse nome, naquela época. 
                
                 
                O
                autor
                
                 
                
                  A mais antiga publicação comprovada deste texto está nas Seleções do Reader's 
                  Digest, de outubro de 1953, e seu autor é Don Herold (1889-1966), escritor e 
                  humorista, autor de cerca de uma dúzia de livros. Começa com a frase “Of course, 
                  you can't unfry an egg, but there is no law against thinking about it.” 
                  (É claro que não se pode desfritar um ovo, mas não há lei que proíba 
                  pensar nisso). Só então ele começa a desfiar as considerações sobre viver 
                  a vida outra vez, tirando-lhes, com essa introdução, o tom lamurioso. E a 
                  fatídica frase final não está lá – nem em nenhuma outra versão em inglês, 
                  exceto as que foram retraduzidas do espanhol. Estas, é claro, dão ao Borges 
                  a autoria – e seu conteúdo é ligeiramente diferente da versão original em 
                  inglês, como inevitavelmente acontece, ao se reverter qualquer coisa à 
                  língua original a partir de uma tradução.
                
                 
                
                  Mas como foi que isto – acrescido da pungente frase final – passou a ser 
                  pespegado na lapela do terno de Jorge Luiz Borges, como uma tarja da web? 
                  Quem é o culpado? Quem foi o primeiro a associar grande autor e texto 
                  medíocre, numa lorota tão pegajosa que dificilmente se conseguirão recolher, 
                  algum dia, todas as suas penas?
                
                 
                
                  Respostas
                no próximo palpitante capítulo. 
                
                 
                 
                
                
 
                  Betty
                Vidigal é poeta, autora de Posto de Observação, entre outros
                livros.
                
                 
                 
                  O retrato que ilustra esta matéria é de Ionaldo Cavalcanti, pintor e artista 
                  gráfico, falecido no dia 6 de maio deste ano. Ionaldo trabalhou na Última 
                  Hora e na Editora Abril, onde foi chefe de arte de várias revistas. Escreveu 
                  Esses Incríveis Heróis de Papel, sobre personagens de HQ.
                  
                
                 
                
                  Chamada:
                Difícil decidir o que é pior para um escritor: ter um texto seu atribuído
                a outrem ou a divulgação, 
                como sendo de sua autoria, de algo que não escreveu.
                
                 
                Olho
                1: “Quando esses versos já tinham chegado aos quatro cantos do mundo, só
                restou a Maria Kodama apelar à justiça argentina para que os
                direitos autorais do texto apócrifo não fossem depositados na
                sua conta.”
                
                 
                Olho
                2: A mais antiga publicação comprovada deste texto está nas Seleções
                do Reader's Digest, de outubro de 1953, e seu autor é Don
                Herold, escritor e humorista.
                
                 
                
                
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                O
                FIM DO MISTÉRIO 
                Betty
                Vidigal 
                 
                
                 
                “A
                solução do mistério é sempre inferior ao mistério” (Dunraven) 
                 
                
                 
                
                  Enquanto pratos de porcelana decorados com o texto “Instantes”, 
                  apocrifamente atribuído a Jorge Luiz Borges, eram vendidos no Mercado 
                  da Praça de San Telmo, em Buenos Aires, o mal feito não era grande. 
                  Como diz Pascoalino C. Azords, no artigo “Um Borges do Paraguai”, 
                  “a coisa só pegou mesmo quando caiu na Internet. Através do computador 
                  o texto pode chegar aos lugares mais distantes, e o que é pior, 
                  inteiro, já que uma mensagem eletrônica não se quebra fácil como 
                  um prato.” 
                
                  Maria Kodama, viúva do poeta e editora das suas obras, 
                  diz, no prefácio do volume “Borges en la Revista Multicolor”, 
                  um livro improvisado que inclui textos de Borges e outros a 
                  ele atribuidos: “O mais incrível é que as mesmas pessoas que 
                  não aprovam a publicação de três obras inéditas de Jorge Luiz 
                  Borges {“El Tamaño de mi Esperanza”, “El Idioma de los Argentinos” 
                    e “Inquisiciones”], nada fizeram, diante do poema “Instantes”, 
                    da escritora norte-americana Nadine Stair, atribuido falsamente 
                    – creio que por ignorância – a ele. Essas pessoas, repito, 
                    nada disseram sobre o estilo ou o conteúdo desses versos, 
                    apesar da linguagem infantil que neles é empregada e apesar 
                    do conteúdo que desdiz totalmente todos os princípios que 
                    Borges sustentou até o fim da sua vida. Chegou-se ao horror 
                    de ler e estudar, em instituições oficiais, esse poema sem 
                    nenhum valor literário, atribuindo-se-o a Borges.” 
                No livro “Borges-Bioy”,
                Rodolfo Braceli inclui o seguinte diálogo: 
                –
                Si volviera a vivir?      
                –
                Bueno... volvería a hacer las cosas que hice. Porque uno es  como es ¿no? 
                
                  Mas isto, naturalmente, não emociona até as lágrimas 
                  os que desejariam ver um Borges arrependido de ter sido 
                  quem sempre foi. Querem-no dizendo, em vez disso, que 
                  “se pudesse viver novamente minha vida, na próxima trataria 
                  de cometer mais erros.” 
                
                  Ivan Almeida observa: “Queremos que [Borges] continue sendo Borges, 
                  mas que (...) em vez de poemas crípticos, diga o que gostaríamos de 
                  ouvir e que só as revistas que desprezamos dizem. Num mundo perfeito, 
                  um livro de Roberta Menchú seria assinado por Wittgenstein, 
                  “A Imitação de Cristo” seria de Joyce e a canção “We Are the World” 
                  teria sido composta por Mallarmé. Queremos poder dizer que nosso 
                  poema favorito é aquele de Borges.” 
                
                  Quando “Instantes” apareceu no livro “Nightglow: Borges Poetics of Blindness”, 
                  da professora Florence Yudin, da Universidade Internacional da Flórida, o 
                  Centro Borges de Estudos e Documentação pediu-lhe um esclarecimento quanto 
                  à fonte do texto. Ela indicou o número 212 da revista mexicana “Plural”, uma 
                  das mais influentes na vida cultural da América Latina, fundada por Octavio 
                  Paz em 1971 e dirigida por ele até 1976. O poema aparecia numa nota 
                  assinada por Mauricio Ciechanower, intitulada  “Un poema a pocos pasos 
                  de la muerte”, nas páginas 4 e 5 do número de maio de 1989. 
                
                  Talvez a primeira dúvida quanto à autoria tenha sido despertada pelo 
                  décimo-segundo “verso”: “Yo fui una de esas personas que vivió sensata 
                  y prolíficamente”. O espanhol deselegante dessa frase, totalmente 
                  atípico, foi o que motivou a consulta do Centro Borges à professora. 
                
                  Mauricio Ciechanower, por sua vez, tinha utilizado como fonte o livro 
                  “Todo México”, de Elena Poniatowska, onde há um capítulo de 45 páginas 
                  com uma entrevista que ela alega ter feito em 1976 com Jorge Luis Borges 
                  (o livro é de 1990). Na página 144 do primeiro volume desse livro, 
                  em meio a uma conversa sobre “Shaw e Conrad, Tolstoi e Dostoievski e 
                  Balzac e Proust”, a jornalista diz ter declamado a Borges dois poemas 
                  dele. O primeiro foi “Instantes”. O segundo, “El Remordimiento” (O Remorso). 
                  Ela descreve sua reação: “Borges escuta com incredulidade, com atenção, 
                  com seriedade. (...) Sorri: – Que me importa ter sido infeliz ou ditoso? 
                  Isto se passou há tanto tempo... Estes poemas são muito autobiográficos, 
                  são remorsos.” 
                
                  Em 1976, Borges tinha 77 anos. Por que razão diria “faz tanto tempo”, 
                  referindo-se a um poema “escrito” aos 85?[8] Ou, admitindo-se que 
                  exerceu aí o papel de um poeta fingidor – como somos, todos os poetas – 
                  e escreveu um poema na primeira pessoa, mas “sobre” alguém que teria os 
                  85 anos que ele não tinha, por que teria dito o que disse à jornalista? 
                
                  A entrevista foi publicada, dividida em quatro partes, no jornal 
                  mexicano Novedades, nos dias 9 a 12 de dezembro de 1973 – e não de 
                  1976. Não haveria nada de errado em incluí-la no livro: é usual 
                  jornalistas reunirem suas melhores entrevistas para publicação 
                  num formato mais duradouro. Mas o professor Rafael Olea Franco, 
                  na “Gaceta del Fondo de Cultura Económica”, por coincidência 
                  em um número que continha também matéria de Elena Poniatowska,  
                  observa que a data em que foi feita a entrevista é na verdade 
                  anterior à que consta no livro. 
                
                  O poema “El Remordimiento”, que é comprovadamente de Borges, foi 
                  publicado pela primeira vez em 21 de setembro de 1975, no jornal 
                  argentino La Nación, e portanto é impossível que tenha sido citado 
                  por quem quer que seja em 1973. Isso justificaria, então, o fato de 
                  a autora ter deslocado a data da entrevista, situando-a em 1976,  
                  depois de “El Remordimiento” ter sido publicado. 
                
                  A entrevista se realizou, sim, em 1973, como comprovam diversos 
                  dados: o Prêmio Afonso Reis concedido a Elena Poniatowska nesse 
                  ano; a preocupação externada por Borges com a saúde de sua mãe; 
                  o nome de sua acompanhante na época (Claudine Hornos de Acevedo). 
                  Mas, examinando-se a publicação original da entrevista, verifica-se 
                  que nela não estão as passagens em que Poniatowska teria comentado 
                  com Borges os autores Conrad, Tolstoy e Dostoyevsky, entre outros,
                  nem aquela em que teria declamado poemas a ele. 
                
                  Elena Poniatowska teria sido, então, a responsável pela atribuição 
                  de “Instantes” a Jorge Luis Borges? Ou realmente acreditava ser 
                  dele o texto e, embora tendo fabricado ou alterado alguns dados 
                  na publicação da entrevista, não foi a responsável direta por 
                  esse engano específico? 
                
                  Sabemos hoje da existência do texto do humorista americano Don Herold, intitulado 
                  “I'd Pick More Daisies” e publicado no Reader's Digest de outubro de 1953. Pelo 
                  simples fato de começar com a bem humorada frase “Of course, you can't unfry an 
                  egg, but there is no law against thinking about it”, o restante suaviza-se, 
                  torna-se quase uma piada de humor negro:. “If I had my life to live over 
                  again, I would try to make more mistakes”, etc.” E, é claro, lá não está 
                  a melancólica frase final, que talvez tenha sido a real contribuição de 
                  Nadine Strain (e não Stair) ao texto. 
                
                  Portanto, aparentemente, as dezenas de versões que circulam, 
                  em diversas línguas, são todas plágio de um único autor, e um 
                  autor com copyright, ou seja, Don Herold. 
                
                  Ivan Almeida nos consola, sábio: “Não há motivos para indignação. 
                  Não nos esqueçamos de que, apesar de tudo, há pessoas que 'por causa' 
                  desse texto passaram a ler e amar o verdadeiro Borges. Ele 
                  escreveu um texto célebre, chamado “Borges e eu”. Não sabemos 
                  com qual dos dois está história toda está acontecendo, mas 
                  podemos ter certeza de que o 'outro' Borges está se divertindo 
                  imensamente.” 
                
                  Nota: toda a investigação sobre a inexistência de Nadine Stair está no 
                  artigo anterior, “Pingo no I de Instantes”. 
                
                  Betty Vidigal é poeta, autora de “Eu e a Vela”, entre outros
                livros. 
                
                  Link para sua página no Facebook
                 
                 
                
                 
                 
                
                 
                Chamada: 
                Conclusão
                da investigação sobre o texto “Instantes” popular e
                erroneamente atribuido a Jorge Luiz Borges 
                Olho:
                Talvez a primeira dúvida quanto à autoria tenha sido
                despertada pelo espanhol deselegante do décimo-segundo
                “verso”. 
                 
                
                 
                
                
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