Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Edson Bueno de Camargo


 

Me vejo fechado


me vejo fechado
entre quatro paredes escuras
feitas de pedras lisas e duras
meus olhos cegos tateando no escuro
em uma busca vã
a procura de luz


me vejo calado
no meio exato do breu
nem um passo e nem um dedo
nem a menos nem a mais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Venus Presenting  Arms to Aeneas

 

 

 

 

 

Edson Bueno de Camargo


 

Sinceridade do vento


não acredite na sinceridade do vento
porque o vento mente o tempo todo
trás conversas de boca miúda de sereias, ninfas e fadas


trás pequenas conchas e areia da praia
para o deleite do menino que ri
de nossa surpresa


não acredite que o vento
possa ser sincero
porque o vento é poeta de horas incertas
de rimas quebradas
e versos sorrateiros
que corre os vales, sem eira nem beira
e nunca fica


não se façam crer que o vento diga a verdade
nem o poeta que vos fala
que fala com a voz do vento
mas, não sabe nem ir e nem vir,
ancorado que está em salgadas saudades...

 

 

 

Da Vinci, Cabeça de mulher, estudo

Início desta página

André Seffrin

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, Rebecca at the Well

 

 

 

 

Edson Bueno de Camargo


 

Esquife


enterrei o seu esquife
no chão de minha sala
toda a madeira perfumei
com incensos e jasmins


esculpi em ouro e prata
seu retrato só para mim
pintei nas minhas palmas
uma grande cruz carmim


sentei durante dias
diante da janela aberta
e quando na rua chovia
no fundo eu bem sabia
eram lágrimas por mim derramadas

 

 

 

Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

Início desta página

Conceição Paranhos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Nurture of Bacchus

 

 

 

 

 

Edson Bueno de Camargo


 

Porta azul


parado
esperando alguma coisa acontecer
a porta azul entreaberta
os carros aguardando lá fora
o silêncio tomando conta de tudo


parado
como se não esperassem mais nada
e nada mais fosse acontecer
nem a porta azul se fechar


e se os carros nunca mais andarem
como se tudo criasse raízes
os postes desenvolvessem copas
tudo tomasse forma vegetal
plantados no mesmo lugar.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

Início desta página

Alberto da Costa e Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Theodore Chasseriau, França, 1853, The Tepidarium

 

 

 

 

Edson Bueno de Camargo


 

Aqui estou


aqui estou
exilado de outras eras
como um sonâmbulo andando no mundo dos vivos


não há tempo que não seja o passado
semente se apossando de minhas entranhas
fígado, baço, estômago, tripas,
pulmões, coração,
um bom tanto de sangue, gordura e fezes
e um monte de estranhas dúvidas


uma sensação de acordar/dormir permanente


o sangue que suja minhas mãos é real ou imaginário?
este cheiro acre em minhas narinas, não sei!


aqui estou
andando por ruas que não conheço
procurando um lugar que não vi
com um endereço que não tenho
como um pesadelo recorrente,
como se pudesse ver com os olhos dos mortos.

 

 

 

Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

Início desta página

Claudio Willer

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Tributos, o lado profissional de Soares Feitosa

 

 

 

 

 

Edson Bueno de Camargo


 

Uma casa


uma casa para mim seria o suficiente
me basta o espaço de quatro paredes
onde pudesse ser eu mesmo o tempo todo
e a verdade fosse a única religião


um lugar onde não me sentisse um estrangeiro
um alienígena
um alienado
um exilado do próprio chão


um refúgio onde estivesse a salvaguarda
sem salvo condutos
passaportes
documentos pessoais
hábeas corpus


uma embaixada pessoal
a salvo


sob a proteção da ONU
das leis internacionais
da Convenção de Genebra
da Declaração Universal dos Direitos do Homem


onde um homem e uma mulher
pudessem ser amantes sem pudores
sem dores
sem culpas
sem desculpas
sem cobranças de nenhuma espécie

 

 

 

Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

Início desta página

Clotilde Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

 

 

Edson Bueno de Camargo


 

Café filosófico


caminham pela rua
empurrando suas carriolas carregadas
pai e filho
céu azul e limpo ( quase sem nuvens )
calcada de cimento
asfalto negro e áspero


carregam o fardo do trabalho
e a esperança de dinheiro ( alimentação? desejos? )


sentem eles a falta da Cultura?
dos livros que permeiam a minha vida
as angustias aflitivas


tenho lido Nietzche, Walter Benjamim e Adorno
divagado a respeito do universo
do nascimento e morte das estrelas
da ligação que tem todas as coisas
mas não sou feliz


será feliz o vendedor de mandioca,
fruto do ventre da terra?
 
 

 

 

Leonardo da Vinci,  Study of hands

Início desta página

Raymundo Silveira

 

 

 

08/04/2005