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Eduardo Lacerda


 

A última Ceia


Há regras à mesa
como em um brinquedo
de quebra-cabeça.

/ E eu não entendo
  os dispostos à esquerda

  dos pais.

  Restos do pequeno
  que sentavam ao meio

  da mesa (como prato
  que se enche
  e procura lugar entre
  as pessoas). /

Já não me encaixo
depois que aprendi
a olhar de lado
e sair por baixo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

 

 

 

 

Eduardo Lacerda


 

Ao escuro


Aquele homem batera
todo dia à minha casa
sem nunca encontrar:

– nada – /   da janela
                 do sobrado
                 meus olhos
                 de soslaio

poderiam ir ao fundo
da própria ameaça,

salvá-los.

(meus brinquedos não
eram tão velhos para
seguir em sua viagem

sozinho)

Mas não iam ao fundo
paravam à margem
chapinhavam o medo
que nadará o homem
que nada a criança.

(Tornando-se homem
planeja a vingança
um ataque à ameaça) /

Aquele velho baterá
todo dia à minha casa,
e só encontrará nada.

E dizem que
não vejo que o velho
passa fome:

O homem do saco
leva hoje
desaforo para casa.

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Micheliny Verunschk

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

 

 

 

 

Eduardo Lacerda


 

Candelabro


That sad answer, “Never – never more.”
                             (Edgar Allan Poe)


Já a primeira vez que foi a um
cemitério a mão cobriu seus
olhos que choravam e sussurou:

– Nunca acenda velas em casa,
  que os espíritos acostumam
  e não raro nos acompanham –

Nunca mais acendeu
velas em casa, tinha era
medo dos espíritos.

Teceu-lhe a vida muitos passados,
outras passagens ao cemitério, das
últimas vezes já as trazia roubadas.

Nunca quis acender velas em casa,
tinha era medo dos espíritos. Teve
depois, muitos, muitos anos depois
medo da solidão. E acenderia estes
presentes: a gift to the ghosts, pois
os espíritos acostumam e, não raro,

nos acompanham.

 

 

 

John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

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Myriam Fraga

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

 

 

 

Eduardo Lacerda


 

Idéia de família


Não herdei de meu pai,
as neuroses de família.

Mas via na colher de pau,
à espera do vinho
que toda noite ele bebia,
o pouco que seria.

Era mais que uma colher,
sua primeira função foi ser
palmatória para meu avô.

Meu pai achava
que assim beberia
um pouco de suas mãos.

Para mim a colher voltara,

como castigo.

Quando meu pai morreu,
agarrado à colher de pau,
não deixou o seu sangue.

Já fora tarde,
e tudo aquilo tornara-se

vinagre.

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

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Ivan, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

Eduardo Lacerda


 

Ovo


A manhã. A solidão. A fome.
O ovo.

A tarde. A tristeza. A fome.
O ovo.

A noite. A dor. A fome.
O ovo.

Os dias todos. A fome.
O ovo.

Os anos voam. A saudade. A fome.
O ovo.

As bodas de ouro. A despedida. A fome.
O ovo.

A velhice. A morte que chega,
Oferecendo um último banquete.
Peço ovo.

Se pudesse faria tudo de novo.
Como ler de trás para frente – ovo.

 

 

 

William Blake (British, 1757-1827), Angels Rolling Away the Stone from the Sepulchre

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Paulo Bomfim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

Eduardo Lacerda


 

Temporada


Um pássaro sem rosto, um pelicano,
caminhava sobre o mar, esfregando
seu frágil corpo de ave. A sua carne.

Esfregando seu corpo, por vaidade.
E não o viam, ou o sabiam como,
ou de onde seria o cair de sua tarde.

Caminhava sobre o mar, sem rosto.
Arrancando carne do peito, posto
fosse esse o seu dever. Seu sangue.

Arrancando carne de seu peito,
(não sendo mais que obrigação
ou algo que qualquer pelicano
teria feito) voltava de seu mar.

/ Para sempre a sua função /

Nunca nada mais que outro
não teria feito, não. Sem rosto
caminhava sobre a margem.

/ Nunca nenhum horizonte,
  bem que o mar fosse todos /

E para além de nenhum rosto,
No vermelho da tarde, do sangue, da carne,
Arrancara alguma maquiagem.

/ Logo lavada pelo mar, sua função. Por sua
  margem. Por sua própria impossibilidade. /

 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

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Foed Castro Chamma

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

Eduardo Lacerda


 

Lírio

 

“vou sonhar com anjos,
rosas e jardins.
Tudo vai ser lindo,
nada vai ter fim.”


(Canção Infantil)

“Agora era fatal,
que o faz e conta terminasse assim
prá lá deste quintal,
era uma noite que não tem mais fim.”


(Chico Buarque)

 

Bela como orquídea,
que sem a falsa máscara,
só é planta parasita,

e mostra-nos outra face,
que pensamos, se há,
a ainda não corrompida

esta planta é parecida,
enxerto e sangue-cio de
rosa, orquídea e lírio.

(Lembrá-los-ei, porém: Acaso vós já reparastes as árvores de tronco rude e balançar seco?

Estas árvores não são portas, mas estão dispostas, e abertas, de par em par através deste corredor iluminado por pó e solidão. Estas árvores são quase postes. E isto é uma rua.

E todas são estéreis. E por acidente, vá lá, que seja, vós já vistes mais amor por uma árvore do que uma mensagem riscada à chave? – Livrai-me Deus de todo trauma –

É por isso que se entregam
a estes abraços das raízes finas,
à estas raras vagabundas

A estas flores tão pequenas
:
– a um copo-de-leite,
lágrima de cristo,
ou à queda do lírio –

São só isto, ou quase isto
sangue cio e enxerto
de rosa, orquídea e lírio.

Mas nestas espécies

de lírios ingênuos
há espinhos demais

e pétalas de menos.)

 

 

 

Franz Xavier Winterhalter, retrato de Roza Potocka

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Lucas Tenório

 

 

17.05.2005