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Everardo Norões

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna: 


Alguma notícia do autor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ticiano, Flora

 

 

 

 

 

Hildeberto Barbosa Filho

 

Vegetelizar o poema...

 

Lendo os poemas de Everardo Norões, reunidos em Retábulo de Jerônimo Bosch, é impossível não pensar nas implicações semânticas deste título. Pintor holandês da transição do século XV para o século XVI, Bosch tematiza, por meio de cores fortes e de técnica libertária, os antagonismos entre céu e inferno, em meio aos quais o homem se debate desesperadamente contra seu inimigo eterno, transmutado em diversas figurações: animas, vegetais, monstros, duendes, seres fantásticos, enfim, toda uma grei que o cerca de terror e de espanto. Os paradoxos, as antíteses e os oxímoros, associados à plasticidade das metáforas, constituem, portanto, os recursos naturais de sua sintaxe pictórica.

A correspondência entre poesia e pintura não se dá, aqui, tão somente por esta ou aquela alusão que algum poema faça ao criador do “Jardim das delícias”, mas, sobretudo, porque a poética de Everardo Norões, desde Poemas (1999) e A rua do padre inglês (2006), assim como na obra em foco, deixa-se habitar pelos elementos da natureza. Em essência, os quatro elementos (ar, água, fogo e terra), como também seus derivados: frutas, bichos, objetos, paisagens, personas... Tudo, no entanto, submetido a um dinamismo metafórico e sinestésico que protagoniza, assim como em Bosch, os eternos conflitos da alma humana. Hildeberto Barbosa Filho

Sua poesia, por conseguinte, trai, de início, um compromisso frontal com o dizer, entenda-se o dizer como o conteúdo pensante e afetivo da mensagem, em que pesem, sempre na arquitetura de sua dicção, o logos do fazer,o sentido de depuração estilística e a consciência da linguagem. Seu lirismo, como bem percebeu Fábio Andrade, em breve ensaio que lhe dedicou na revista Crispim, número 2, “não é transbordamento sentimental do verso, mas, ao contrário, força de concentração e depuramento poético de todo excesso que traga facilidade no sentir”.

Nas sete partes do livro é este o princípio que rege as estratégias do discurso. Os treze primeiros poemas como que ensaiam um pequeno tratado da memória, um exercício de recordar, isto é, de trazer o mundo de volta ao coração como sugere Emil Staiger, nos seus Conceitos fundamentais da poética. Porém um recordar que dispensa o saudosismo romântico, que foge ao lugar-comum da “poesia-lágrima”, para injetar, no corpo da lembrança, o sal de um olhar cético, distanciado, aberto à presença de aspectos invisíveis e de ingredientes insuspeitados. O poema de abertura já define o modus operandi do poeta:

O canário
debulhava trinados.
Na rede
fluíam fábulas.
Sobre muros e telhados
os urubus empinavam
lições de trevas.
No alto,
apenas uma nuvem
me escutava.

Observe-se que o procedimento descritivo não é nada linear. Não há intenção realista na composição do quadro. O locus, que não é ameno, é descrito por sugestão, diria por desconstrução da tópica tradicional, o que, não diluindo a substância emotiva, essencial à fatura do poema, instiga o pensamento e a reflexão. Eis uma técnica que se repete e repercute nos outros textos e que, decerto, define a linguagem de um poeta. No poema número 3, cujo motivo é a cabra, as “estacas” se transformam, num belo e ousado exemplar metafórico, em “retas submetidas / à álgebra do cativeiro”, e a própria cabra, um desses bichos que reside na morada poética de Everardo Norões, “De longe, resplandece: // focinho de luz ondeante, // a deslumbrar entre galhos”.

Descrições estranhas de coisas conhecidas, o familiar se transformando no insólito, os objetos se apresentando de maneira criativa, a energia visual, olfativa, tátil, melódica, gustativa impregnando os seres, os âmbitos, os lugares, os climas, as atmosferas, tudo converge, nesta poesia singular, para a medida lírica concentrada, para a linguagem como item aglutinador de dispersos fragmentos, para a harmonização dos vocábulos, no plano geométrico da forma, face ao caos natural que rege o movimento da matéria. Veja-se, por exemplo, qualquer texto da segunda, terceira ou quarta partes. Quer me detenha no ludismo conceitual e imagético de poemas como “Goiaba”, “Pitanga”, “Buriti” e “Hortelão”, quer atente para a metalinguagem indireta e oblíqua de “Mancha” e “Euclides”, tudo nos leva ao brilho e ao império transfigurador da linguagem e à desautomatização do olhar. Leia-se o poema “Euclides”: “O fascínio do cacto. // A ponta do espinho. // A fulguração do tiro. // Vegetalizar o homem: // tudo tornar folha, // corroída // pelas minúsculas formigas // das letras”.

“Vegetalizar o homem”: considere-se a força metafórica deste verso. Diria que  Everardo Norões intenta vegetalizar o poema, encharcando-o com os líquidos vitais da natureza orgânica. A propósito, fundir os reinos animal, vegetal e mineral não consistiria num eco poético de Bosch contaminando a pintura vocabular de Everardo? “Sob as palavras // tudo se transfigura: // a urze, a pedra, o horto.”, diz o poeta em “Mancha”. “Flamboyant”, por sua vez, assim termina:

sou
apenas a ferida
no alto de uma tarde
uma coroa de espinhos
no silêncio.

Em rápida entrevista, também publicada na Crispim, número 2, o poeta afirma que a poesia, para sobreviver, “tem que revelar todas as coisas que o olho comum não vê”, ou, à maneira de um Manoel de Barros, “precisa guardar o cheiro de nossos quintais”. Pois bem: a manufatura apurada, de teor erudito, urbano e cosmopolita, não deixa, contudo, de compactuar com as raízes telúricas, com os veios identitários do seu ethos cultural, com os mitos de origem, embora este pacto, na expressão poética deste cearense-pernambucano, não se feche, em momento algum, ao intercâmbio com outras geografias literárias, numa dialógica intertextual das mais ricas e variadas. Basta perceber a componente européia, árabe e africana que o autor aproveita na tessitura de tantos versos.

Para além de Bosch, que detecta o homem acuado sob garras de inimigos cruéis e monstruosos, aparecem, na lírica de Everardo Norões, outras vozes que sinalizam para a propositura do humano, para a perspectiva do poético, para a opção seminal da experiência artística, face à barbárie dos engodos materiais e tecnológicos que a razão, aquela razão a princípio humanística, depois instrumentalizada, não conseguiu evitar. Neste sentido, sua poesia, como toda autêntica poesia, é germe de resistência, é “técnica a serviço da emoção”, no feliz enunciado de Marco Lucchesi, em nota de orelha sobre A rua do padre inglês.

Lucchesi, aliás, o poeta Lucchesi, vê-se representado, neste Retábulo de Jerônimo Bosch, num dos seus mais belos poemas, “O coração do poeta”. Texto dramático em que o coro, a primeira e a segunda voz operam como que uma espécie de dissecação estético-visceral deste autor que, ao lado de nomes como Euclides, Faulkner, Ovídio Martins, Hafiz, Hemingway, Rimbaud, Santo Agostinho e Ovídio, entre outros, compõem o complexo de suas “afinidades eletivas”.

Lendo os poemas de Everardo Norões, revivo a experiência decisiva das epifanias poéticas, convicto de que, entre tantos fermentos da vida cultural, a poesia é indispensável, sobremaneira quando a poesia não teme o limite do verso, não abdica da origem metafórica e, em especial, não se compraz, a exemplo de tantos arrivistas das falsas formas, na lúdica mitografia da linguagem pela linguagem, no artifício vazio dos metabolismos experimentais, na pirotecnia tautológica do grafismo ou da página em branco.

 

 

Comarca das Pedras, maio de 2008.

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

     
 
Um cronômetro para piscinas

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Andréa Santos

 

 

 

 

 

 

 

 

 
Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci, página do editor

 

 

Fábio Andrade

 

Leitura de Retábulo de Jerônimo Bosch

(orelhas)

 

Ao ler Retábulo de Jerônimo Bosch, encontrei a definição que Paul Celan dava à poesia: uma conversa que tem lugar num quarto, que poderia transcorrer indefinidamente, se algo não acontecesse – mas acontece. Aqui não se trata de uma conversa de portaria, ou do solilóquio neurótico (e pós-moderno) em que se fechou parte da poesia contemporânea. Nesse recinto de intimidade nasce um pedido de participação, uma solicitação de diálogo que vem, pelos matizes da memória, potencializar o significado da experiência poética. Na poesia de Everardo, a experiência poética é sempre uma experiência de vida, onde a vida se embate por afirmar-se para além de suas terríveis dialéticas, para além dos “infantes mortos” e das “sílabas do batismo”. Entrevemos, em seu desejo por fixar o sentido do que passou, uma atitude catártica que, mais uma vez, para além dos céus e infernos de Bosch, constitui a essência mesma da poesia: a reminiscência. A reminiscência como redefinição do humano em nosso mundo. Porque através dela, somos chamados a seguir interpretando para não derrocar frente o esvaziamento. Não se pense, entretanto, que a reminiscência consiste em alguma forma de evasão. A mediação da memória que busca interpretar é feita de uma curiosa mescla de passado e presente. Pois aquele que procura dar sentido às experiências mais fundas tem como ponto de partida o presente branco de uma incontornável inquietação. O quarto em que se desenrola a conversa tem as portas abertas para o mundo, para o ruído e, não obstante, perpetua sua determinação em encontrar uma voz que debulhe o real e o poema – como sua mãe debulhava o milho. Assim, para além das limitações do tempo, Everardo encontrou o poema, como o definiu mais uma vez Celan: “O poema é solitário. É solitário e andante”.

   
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

Everardo Norões

Um pequeno bloco de poemas

uma seleção de Carlos Machado

 

Caros,

Natural de Crato, Ceará, o economista, poeta e crítico literário Everardo Norões (1944-) é um homem do mundo: viveu na França, Argélia e Moçambique e hoje está radicado em Recife. Estreou com o volume Poemas Argelinos, de 1981. Depois, publicou Poemas (2000); Nas Entrelinhas do Mundo (2002); A Rua do Padre Inglês (2006); e Retábulo de Jerônimo Bosch (2009). Norões escreve artigos e crônicas para jornais e também se exercita na criação teatral. É co-autor das peças Auto das Portas do Céu e Nascimento da Bandeira, de Ronaldo Correia de Brito.

Everardo Norões tem também seu nome ligado ao do poeta e engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo (1897-1978). Ele organizou a obra completa de Cardozo, que acaba de sair pela editora Nova Aguilar. 

                          •

Tive o primeiro contato com a poesia de Norões no ano passado, quando a poeta baiana Ana Cecília de Sousa Bastos me recomendou a leitura de alguns textos dele disponíveis na internet. Li e fiquei vivamente impressionado. Depois, a poeta nos aproximou virtualmente e tive a oportunidade de ler, de capa a capa, os dois livros mais recentes de Norões: A Rua do Padre Inglês e Retábulo de Jerônimo Bosch. A miniantologia deste boletim reúne poemas extraídos dessas duas coletâneas.

Norões é um poeta de dicção marcante. Não é possível passar impune pelos seus livros. Ora, ele nos captura atenção e emoção com o agreste de versos desabridamente nordestinos: "E na garupa / do cavalo, a sentença das esporas. / Pendentes dos estribos, estão as horas, / relampejos de facas. E o sono da jurema" ("Tristão").  Esses versos têm a mesma pisada seca que se ouve em "Os Encourados": A tarde chega, / a luz se dispersa. / É uma luz de sede / do sol dos Inhamuns: / branca e calada".

Mas, afinado em outro diapasão, o lirismo de Everardo Norões também nos aparece cantante e melodioso, como no breve poema "Corpo" ou em "Tua Fala": "Tua fala parecia / a rede, toda bordada, /
onde a noite amanhecia". Obviamente, o ritmo aí é ainda bem nordestino, porém marcado por um recorte íntimo, que passa longe da secura dos agrestes.

Há ainda uma terceira face do poeta cratense, que é aquela bafejada pelos ventos do mundo. Entre os poemas mostrados aqui, ela se manifesta especificamente em "Café". Ali se percebe o cruzamento das experiências pessoais e leituras do poeta com a sua sensibilidade lírica. Como um Proust, ele extrai de uma xícara de café (menos do aroma que da cor) um conjunto de sensações e divagações nostálgicas. "De onde vem o grão / dessa saudade?"


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado <cmachado@algumapoesia.com.br>

 

 

 

 

CORPO

Teu corpo
se enxuga em minha água:
calafeta,
enxágua.
Completa
o que não vem de mim.
E por ser água e calma,
sonâmbula
como a
distraída voz do lume,
lembra um vago perfume
de jasmim.


 

 

 

CAFÉ

Desencarno arábias
de uma xícara morna
de café.
E um fio negro
me assedia a boca.

(Através da janela
o galho de pitanga
ostenta seu adorno
encarnado).

Viajo
pelo negror do pó:
Dar-El-Salam,
Bombaim,
Áden
(sem Nizan, sem Rimbaud):
as colinas ocres,
a poeira dos dias.

De onde vem o grão
dessa saudade?

Desentranho arábias
dessa xícara fria.
Enquanto aguardo o dia
que não chega.

Desacordo e sorvo
a sombra morna
do que sou
na borra
do café.
 

 

 

OS ENCOURADOS

A tarde chega.
A luz se dispersa:
quem anunciará a morte,
soltará o chicote,
abrirá a fresta?

Quem domará o espaço
entre o gume e a alma,
entre a cerca e a palma,
entre o assombro e a calma?

E dormirá no cio
de árvores cativas
ao solstício das pedras,
no despencar das sombras?
A tarde chega,
a luz se dispersa.
É uma luz de sede
do sol dos Inhamuns:
branca e calada.

Os encourados se miram
num horizonte de varas.
A copa é pequena:
na redondez dos cabos,
lâminas severas.

Nem palavras:
o vento soletra a mata,
converte-se em faca.
Sumida nos esteiros,
detida nas vazantes,
segue,
na garupa,
a sina dos instantes.

Adonde vosmecê,
alumia o sobrosso,
desmazelo do corpo?

A alma se estropia
nesses retirados
dentro dos Teus lustres...
A tarde chega.
A luz se dispersa.

E uma luz de sede
do sol dos Inhamuns:
branca e calada.

Ponto de cruz ou estrela:
uma rede bordada.

               De Retábulo de Jerônimo Bosch (2009)

 

 

 

A MÚSICA

                   Para Isaac Duarte

Sem pedir licença,
insinua-se pelos cômodos,
invade os espelhos,
derrama suas jarras de luz.
Vejo-a
pelos canteiros da casa,
na nitidez dos bordados
de minha mãe,
no brilhar de tua íris
quando os deuses descem
para beber a insensatez
das águas.
Depois,
ela se transforma em seios,
goiabas,
espigas.
E nua, adormece,
enquanto a lua brinca
entre meus dedos
e lagartixas
passeiam pelas pedras do pátio...


 

 

 

A RUA DO PADRE INGLÊS

Na rua do Padre Inglês
um louco joga xadrez.

Joga o xadrez da desgraça:
uma sombra na vidraça
é o seu parceiro demente.

(Entre a dama e o cavalo,
corre um rio de afogados).

De sua cama, ainda quente,
um bafo de nicotina.
Vem um cheiro de latrina
da cela defronte à sua.

Na rua do Padre Inglês
um louco fala francês
com acentos de Baudelaire...

(O flamboyant encarnado
se mistura ao espetáculo
da esquizofrênica rua).

O bispo toma o cavalo
das mãos da dama de preto.
(São cinco horas da tarde:
as luzes se apagam cedo.)

Batente do meio-fio:
vem vindo a sombra da noiva,
sozinha, morta de medo.

(O louco avista das grades
as andorinhas azuis
que voam feito morcegos.)

Na rua do Padre Inglês,
um cheiro de gasolina.

{O louco engendra seu mate
contra a sombra na vidraça.}

São cinco em ponto da tarde
(cinco de Ignacio Mejías,
pensa o louco em sua cela)
— dos girassóis de Van Gogh
à solidão amarela...

O cavalo solta as crinas,
a noiva voa na rua
e nas vozes de um menino
acordes de um violino.

O louco sabe que o tempo
de dormir já vem chegando...

(Corujas soltas na cela
bicam as flores de papel
e uma boneca de pano).

Corre, corre, vem depressa,
Que a noite já vem chegando!

Na rua do Padre Inglês
um louco joga xadrez...


 

 

 

TRISTÃO

             Em pé, ao sol e ao vento do sertão,
             ele não se decompôs.
                         Pedro Nava (Baú de Ossos)

As palavras no alforje. E o rosário,
a escorrer das penas e dos dias.
O azul da barba lembra uma paisagem
onde campeiam cabras. E ramagens
desatam-se em sombras nas janelas.
A morrinha dos bichos. O mormaço,
trazendo o desespero, em vez de março:
um luto atravancando as taramelas.
A sela desapeada. E na garupa
do cavalo, a sentença das esporas.
Pendentes dos estribos, estão as horas,
relampejos de facas. E o sono da jurema.
O braço descarnado, o giz dos dentes,
e o olho além do corpo do poema.
No chão do meu degredo, sempre chão,
sete frases do ofício e um bordão.



 

 

 

SONETO I

Agonizavam os rastros de novembro.
E os meus ossos, cansados das neblinas,
doíam, no concerto das esquinas
da cidade, onde um dia, ainda me lembro,

penetrou-se de escuro a minha alma,
quando um cão, a ladrar contra o sol-posto,
mordeu o lado oculto do meu rosto
e deixou seus sinais à minha palma.

Lembro-me que era de tarde. Ainda chovia.
O eco dos espelhos conduzia
meus passos que jaziam pelas ruas.

Havia o som da água que caía.
E no horizonte, além da agonia,
um cemitério de meninas nuas.


 

 

 

 

TUA FALA

Tua fala parecia
uma rede de varandas,
branca,
no meio da sala.

(Uma coisa que envolve
e, ao mesmo tempo, se esquiva):
gesto seco de uma chama,
morrendo,
e sempre mais viva.

Era assim, tua palavra:
escorreita, sem medida.
Falas como pés descalços,
presos à relva macia.
Ou um cheiro de curral
quando a manhã principia.

(Tua fala parecia
a rede, toda bordada,
onde a noite amanhecia).

               De A Rua do Padre Inglês (2006)


 

Everardo Norões

•  "Café", "Corpo", "Os Encourados"
    Retábulo de Jerônimo Bosch
    
7Letras, Rio de Janeiro, 2009
•  "A Música", "A Rua do Padre Inglês", "Tristão", "Soneto I", "Tua Fala"
    A Rua do Padre Inglês
   
7Letras, Rio de Janeiro, 2006

 

   

 

 

 

 

 

 

03/10/2006