Hildeberto Barbosa Filho
Vegetelizar o poema...
Lendo os poemas de Everardo Norões, reunidos em Retábulo de
Jerônimo Bosch, é impossível não pensar nas implicações
semânticas deste título. Pintor holandês da transição do século XV
para o século XVI, Bosch tematiza, por meio de cores fortes e de
técnica libertária, os antagonismos entre céu e inferno, em meio aos
quais o homem se debate desesperadamente contra seu inimigo eterno,
transmutado em diversas figurações: animas, vegetais, monstros,
duendes, seres fantásticos, enfim, toda uma grei que o cerca de
terror e de espanto. Os paradoxos, as antíteses e os oxímoros,
associados à plasticidade das metáforas, constituem, portanto, os
recursos naturais de sua sintaxe pictórica.
A correspondência entre poesia e pintura não se dá, aqui, tão
somente por esta ou aquela alusão que algum poema faça ao criador do
“Jardim das delícias”, mas, sobretudo, porque a poética de Everardo
Norões, desde Poemas (1999) e A rua do padre inglês
(2006), assim como na obra em foco, deixa-se habitar pelos
elementos da natureza. Em essência, os quatro elementos (ar, água,
fogo e terra), como também seus derivados: frutas, bichos, objetos,
paisagens, personas... Tudo, no entanto, submetido a um dinamismo
metafórico e sinestésico que protagoniza, assim como em Bosch, os
eternos conflitos da alma humana.
Sua poesia, por conseguinte, trai, de início, um compromisso frontal
com o dizer, entenda-se o dizer como o conteúdo pensante e
afetivo da mensagem, em que pesem, sempre na arquitetura de sua
dicção, o logos do fazer,o sentido de depuração
estilística e a consciência da linguagem. Seu lirismo, como bem
percebeu Fábio Andrade, em breve ensaio que lhe dedicou na revista
Crispim, número 2, “não é transbordamento sentimental do
verso, mas, ao contrário, força de concentração e depuramento
poético de todo excesso que traga facilidade no sentir”.
Nas sete partes do livro é este o princípio que rege as estratégias
do discurso. Os treze primeiros poemas como que ensaiam um pequeno
tratado da memória, um exercício de recordar, isto é, de trazer o
mundo de volta ao coração como sugere Emil Staiger, nos seus
Conceitos fundamentais da poética. Porém um recordar que
dispensa o saudosismo romântico, que foge ao lugar-comum da
“poesia-lágrima”, para injetar, no corpo da lembrança, o sal de um
olhar cético, distanciado, aberto à presença de aspectos invisíveis
e de ingredientes insuspeitados. O poema de abertura já define o
modus operandi do poeta:
O canário
debulhava trinados.
Na rede
fluíam fábulas.
Sobre muros e telhados
os urubus empinavam
lições de trevas.
No alto,
apenas uma nuvem
me escutava.
Observe-se que o procedimento descritivo não é nada linear. Não há
intenção realista na composição do quadro. O locus, que não
é ameno, é descrito por sugestão, diria por desconstrução da tópica
tradicional, o que, não diluindo a substância emotiva, essencial à
fatura do poema, instiga o pensamento e a reflexão. Eis uma técnica
que se repete e repercute nos outros textos e que, decerto, define a
linguagem de um poeta. No poema número 3, cujo motivo é a cabra, as
“estacas” se transformam, num belo e ousado exemplar metafórico, em
“retas submetidas / à álgebra do cativeiro”, e a própria cabra, um
desses bichos que reside na morada poética de Everardo Norões, “De
longe, resplandece: // focinho de luz ondeante, // a deslumbrar
entre galhos”.
Descrições estranhas de coisas conhecidas, o familiar se
transformando no insólito, os objetos se apresentando de maneira
criativa, a energia visual, olfativa, tátil, melódica, gustativa
impregnando os seres, os âmbitos, os lugares, os climas, as
atmosferas, tudo converge, nesta poesia singular, para a medida
lírica concentrada, para a linguagem como item aglutinador de
dispersos fragmentos, para a harmonização dos vocábulos, no plano
geométrico da forma, face ao caos natural que rege o movimento da
matéria. Veja-se, por exemplo, qualquer texto da segunda, terceira
ou quarta partes. Quer me detenha no ludismo conceitual e imagético
de poemas como “Goiaba”, “Pitanga”, “Buriti” e “Hortelão”, quer
atente para a metalinguagem indireta e oblíqua de “Mancha” e
“Euclides”, tudo nos leva ao brilho e ao império transfigurador da
linguagem e à desautomatização do olhar. Leia-se o poema “Euclides”:
“O fascínio do cacto. // A ponta do espinho. // A fulguração do
tiro. // Vegetalizar o homem: // tudo tornar folha, // corroída //
pelas minúsculas formigas // das letras”.
“Vegetalizar o homem”: considere-se a força metafórica deste verso.
Diria que Everardo Norões intenta vegetalizar o poema,
encharcando-o com os líquidos vitais da natureza orgânica. A
propósito, fundir os reinos animal, vegetal e mineral não
consistiria num eco poético de Bosch contaminando a pintura
vocabular de Everardo? “Sob as palavras // tudo se transfigura: // a
urze, a pedra, o horto.”, diz o poeta em “Mancha”. “Flamboyant”, por
sua vez, assim termina:
sou
apenas a ferida
no alto de uma tarde
uma coroa de espinhos
no silêncio.
Em rápida entrevista, também publicada na Crispim, número
2, o poeta afirma que a poesia, para sobreviver, “tem que revelar
todas as coisas que o olho comum não vê”, ou, à maneira de um Manoel
de Barros, “precisa guardar o cheiro de nossos quintais”. Pois bem:
a manufatura apurada, de teor erudito, urbano e cosmopolita, não
deixa, contudo, de compactuar com as raízes telúricas, com os veios
identitários do seu ethos cultural, com os mitos de origem,
embora este pacto, na expressão poética deste cearense-pernambucano,
não se feche, em momento algum, ao intercâmbio com outras geografias
literárias, numa dialógica intertextual das mais ricas e variadas.
Basta perceber a componente européia, árabe e africana que o autor
aproveita na tessitura de tantos versos.
Para além de Bosch, que detecta o homem acuado sob garras de
inimigos cruéis e monstruosos, aparecem, na lírica de Everardo
Norões, outras vozes que sinalizam para a propositura do humano,
para a perspectiva do poético, para a opção seminal da experiência
artística, face à barbárie dos engodos materiais e tecnológicos que
a razão, aquela razão a princípio humanística, depois
instrumentalizada, não conseguiu evitar. Neste sentido, sua poesia,
como toda autêntica poesia, é germe de resistência, é “técnica a
serviço da emoção”, no feliz enunciado de Marco Lucchesi, em nota de
orelha sobre A rua do padre inglês.
Lucchesi, aliás, o poeta Lucchesi, vê-se representado, neste
Retábulo de Jerônimo Bosch, num dos seus mais belos poemas, “O
coração do poeta”. Texto dramático em que o coro, a primeira e a
segunda voz operam como que uma espécie de dissecação
estético-visceral deste autor que, ao lado de nomes como Euclides,
Faulkner, Ovídio Martins, Hafiz, Hemingway, Rimbaud, Santo Agostinho
e Ovídio, entre outros, compõem o complexo de suas “afinidades
eletivas”.
Lendo os poemas de Everardo Norões, revivo a experiência decisiva
das epifanias poéticas, convicto de que, entre tantos fermentos da
vida cultural, a poesia é indispensável, sobremaneira quando a
poesia não teme o limite do verso, não abdica da origem metafórica
e, em especial, não se compraz, a exemplo de tantos arrivistas das
falsas formas, na lúdica mitografia da linguagem pela linguagem, no
artifício vazio dos metabolismos experimentais, na pirotecnia
tautológica do grafismo ou da página em branco.
Comarca das Pedras, maio de
2008.
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