Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Florbela Espanca


 

Tédio


Passo pálida e triste. Oiço dizer
"Que branca que ela é! Parece morta!"
E eu que vou sonhando, vaga, absorta,
Não tenho um gesto, ou um olhar sequer...


Que diga o mundo e a gente o que quiser!
-O que é que isso me faz?... o que me importa?...
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!



O que é que isso me importa?! Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!


E é tudo sempre o mesmo,eternamente...
O mesmo lago plácido,dormente dias,
E os dias,sempre os mesmos,a correr...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

 

Florbela Espanca


 

Amar!


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar!Amar!E não amar ninguém!


Recordar?Esquecer?Indiferente!...
Prender ou desprender?É mal?É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!


Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei-de ser pó,cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

 

 

 

Da Vinci, Madona Litta_detalhe.jpg

Início desta página

Antonio Mariano de Lima

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

Florbela Espanca


 

Esperas...


Não digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!


Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços…
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!


Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!


Espera… espera… ó minha sombra amada…
Vê que p’ra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!…


(in Antologia de Poetas Alentejanos)

 

 

 

Soares Feitosa, dez anos

Início desta página

Rubenio Marcelo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

 

 

 

 

Florbela Espanca


 

Horas rubras


Horas profundas,lentas e caladas
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas…


Ouço as olaias rindo desgrenhadas…
Tombam astros em fogo, astros dementes.
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata p’las estradas…


Os meus lábios são brancos como lagos…
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-os o luar de sedas puras…


Sou chama e neve branca misteriosa…
E sou talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu Poeta, o beijo que procuras!


(in Antologia de Poetas Alentejanos)

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

Início desta página

Cida Sepúlveda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Andreas Achenbach, Germany (1815 - 1910), A Fishing Boat

 

 

 

 

 

Florbela Espanca


 

Mais alto


Mais alto, sim! mais alto, mais além
Do sonho, onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que se não encontra! Aquela a quem


O mundo não conhece por Alguém!
Ser orgulho, ser àguia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!


Mais alto, sim! Mais alto! A intangível!
Turris Ebúrnea erguida nos espaços,
À rutilante luz dum impossível!


Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber
mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!


(in Antologia de Poetas Alentejanos)

 

 

 

Henry J. Hudson, Neaera Reading a Letter From Catallus

Início desta página

Ana Peluso

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Êxtase de São Francisco

 

 

 

 

 

Florbela Espanca


 

Mistério


Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magia e de pecados.


Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.


Pelo meu rosto branco, sempre frio,
Fazes passar o lúgubre arrepio
Das sensações estranhas, dolorosas…


Talvez um dia entenda o teu mistério…
Quando, inerte, na paz do cemitério,
O meu corpo matar a fome às rosas!


(in Antologia de poetas Alentejanos)

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Grief of the Pasha

Início desta página

Valdir Rocha

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Venus with Organist and Cupid

 

 

 

 

 

Florbela Espanca


 

As quadras dele (II)


Digo pra mim quando oiço
O teu lindo riso franco,
"São seus lábios espalhabdo,
As folhas dun lírio branco..."
 
Perguntei às violetas
Se não tinham coração,
Se o tinham, porque 'scondidas
Na folhagem sempre estão?!
 
Responderam-me a chorar,
Com voz de quem muito amou:
Sabeis que dor os desfez,
Ou que traição os gelou?
 
Meu coração, inundado
Pela luz do teu olhar,
Dorme quieto como um lírio,
Banhado pelo luar.
 
Quando o ouvido vier
Teu amor amortalhar,
Quero a minha triste vida,
Na mesma cova, enterrar.
 
Eu sei que me tens amor,
Bem o leio no teu olhar, 
O amor quando é sentido 
Não se pode disfarçar. 
 
Os olhos são indiscretos;
Revelam tudo que sentem, 
Podem mentir os teus lábios, 
Os olhos, esses, não mentem. 
 
Bendita seja a desgraça,
Bendita a fatalidade, 
Bendito sejam teus olhos 
Onde anda a minha saudade. 
 
Não há amor neste mundo
Como o que eu sinto por ti, 
Que me ofertou a desgraça 
No momento em que te vi. 
 
O teu grande amor por mim,
Durou, no teu coração,
O espaço duma manhã, 
Como a rosa da canção.
 
Quando falas, dizem todos:
Tem uma voz que é um encanto 
Só falando, faz perder 
Todo juízo a um santo. 
 
Enquanto eu longe de ti
Ando, perdida de zelos, 
Afogam-se outros olhares 
Nas ondas dos teus cabelos. 
 
Dizem-me que te não queira
Que tens, nos olhos, traição. 
Ai, ensinem-me a maneira 
De dar leis ao coração! 
 
Tanto ódio e tanto amor
Na minha alma contenho; 
Mas o ódio inda é maior 
Que o doido amor que te tenho. 
 
Odeio teu doce sorriso,
Odeio teu lindo olhar,  
E ainda mais a minh'alma 
Por tanto e tanto te amar! 
 
Quando o teu olhar infindo
Poisa no meu, quase a medo, 
Temo que alguém advinhe 
O nosso casto segredo. 
 
Logo minh'alma descansa;
Por saber que nunca alguém 
Pode imaginar o fogo 
Que o teu frio olhar contém. 
 
Quem na vida tem amores
Não pode viver contente,
É sempre triste o olhar 
Daquele que muito sente. 
 
Adivinhar o mistério
Da tua alma quem me dera!
Tens nos olhos o outono, 
Nos lábios a primavera... 
 
Enquanto teus lábios cantam
Canções feitas de luar, 
Soluça cheio de mágua 
O teu misterioso olhar... 
 
Com tanta contradição,
O que é que a tua alma sente? 
És alegre como a aurora, 
E triste como um poente... 
 
Desabafa no meu peito
Essa amargura tão louca, 
Que é tortura nos teus olhos 
E riso na tua boca! 
 
Os teus dente pequeninos
Na tua boca mimosa, 
São pedacitos de neve 
Dentro de um cálix de rosa. 
 
O lindo azul do céu
E a amargura infinita 
Casaram. Deles nasceu 
A tua boca bendita! 

                                           

16/02/1916
 
 

 

 

Ticiano, Salomé

Início desta página

Leônidas Arruda

 

 

 

11/05/2005