Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Gilson Nascimento


 

Dé e a bruxa


Tinha uma boneca rota, esfarrapada
A que com os dedos imprimia vida
Dava riso de graça à meninada
E tornou-se pessoa mui querida


No fundo de minhalma está guardada
A lembrança dos dois, que é incontida
Vejo a boneca, cara amarfanhada
Junto ao peito do dono, adormecida


O tempo – vil ladrão – tudo nos leva
Deixa, contudo, nalma de reserva
Algo que à infância roubou o coração


Dé e a bruxa, mortos, eu contemplo
Sem esquecer jamais o seu exemplo
Trazer com um trapo alegria à solidão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gilson Nascimento


 

Canção da esperança


Céu de cinza, meu imo se penumbra
A chuva cai, minhalma lacrimeja
O bem perto tem ares do bem longe
Meu pensamento, célere, voeja


Retalhos de lembranças vou juntado
Pedaços de conversa reunindo
E HOJE, bem desperto, acorda o ONTEM
Que dentro de meu ser vive dormindo


O afago ao distante em mim renasce
Na mudez infinita, mas presente
Dos olhos, num ligeiro garoar


Chuva, não chova! Pare! Vá embora!
E no longe, onde tudo é seco agora
A canção da esperança vá cantar

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

Gilson Nascimento


 

Viver a dois


A um dois de setembro hoje chegaste
Um aniversário a mais, minha querida
Em espinhos, bem sei, vezes pisaste
Mas rosas também houve em tua vida


Alegrias, tristezas tu tiveste
Soubeste aproveitá-las, reconheço
E na vida o incentivo que me deste
Pelos anos afora não esqueço


Que não te roube a vida o bom - humor
A afeição que tens ao teu labor
Aos amigos, aos teus, ao rir à vida


Muitos setembros, queira Deus., alcances
E do viver a dois jamais te canses
Sempre a tirar lições da nossa lida

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA, 1948) - Hanna

 

Gilson Nascimento


 

Resposta difícil


Avô e neto, amor nos olhos, vi
Pelas ruas alegres da cidade
Os extremos da vida se tocavam
Coração novo e velho ambos pulsavam
O pulsar doce da felicidade.


Defronte a uma vitrine os dois pararam
E os olhos do garoto namoraram
Um namoro gosto e demorado
Com uma bola vestida der listrado
Que derramava cor na exposição.


E olhos buliçosos, o Netuno
Fitando o olhar baço do velhinho
Voz aflita lhe fez esse pedido:
Compre essa bola, meu avô, pra mim
Olhe pra ela, não é bonitinha ?
Procure aí um dinheiro no seu bolso
Pergunte o preço, depressa, àquele moço
Eu me amarro, vovô, em futebol.


E o velho, que era rico de pobreza
Mas do metal que compra muito pobre
Só tinha de abastança o coração
E a alma, sem tamanho, pura e nobre.


Perdeu, então, a fala de repente
Procurou-a. Inútil seu intento
Só encontrou pra responder ao neto
Um orvalhar de olhos bem discreto
E a fala muda de seu pensamento

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jornal de Filosofia

 

Gilson Nascimento


 

Maranguape


Maranguape, verde - serra
Com debruns névoa-algodão
És assim, oh minha terra
Aos olhos do coração


Quando chove aqui no Rio
E há vento solto soprando
Em mim uma saudade-frio
Vai de ti me aproximando


E o pensar, que é passarinho
Mais ligeiro que avião
Bate asas, toma o caminho
Que lhe indica o coração


Cidade tem vida, sim
Vida igualzinha à da gente
Nasce, morre, tem um fim
Tem até alma que sente


E por isso é relembrada
De maneira tão constante
E pode ser relembrada
Do bem perto ou do distante

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gilson Nascimento


 

Vero palhaço


Nascer, o vir à vida, a caminhada
A alegria, a tristeza, o desengano
É o que sentimos a cada passada
De uma a outra etapa, ano após ano


Mal o riso se fecha o peito dói
Há choros que esbarram em gargalhar
De vez em quando a mágoa que corrói
À porta da alegria vem chorar


De contrastes assim tece-se a vida
Pesares abrem nalma uma ferida
Há risos a fluir até no olhar


E o homem, ora rindo, ora chorando
Enquanto vive a vida caminhando
Vero palhaço, ri o seu penar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

 

Gilson Nascimento


 

Escorrego


Manhãzinha. Meu pai e eu saindo
De toalha rumamos nós sozinhos
Amiudar de galos. Sol sorrindo
Brisa mansa e sossego nos caminhos


Passada a nossa rua, a Guabiraba
Um dos bairros descalços da cidade
Cruzar de gente. O rumo é do mercado
Tudo é tão simples que me dá saudade


A bica do Escorrego. O corpo encaroçado
Uma mão me amparando – a imagem do cuidado
Evitando que a água o filho derrubasse


A volta, o dia claro, caminhando
E meu pai, satisfeito, me contando
Histórias várias de seu mundo antigo


O bar, o abafador, o café quente
O pão cheirando a forno à nossa frente
E o sol brincando réstias pelo chão


Esse tempo envelhece, mas não morre
Se fraqueja a saudade logo acorre
É amiga, é terna, é leve a sua mão

 

 

 

 

 

 

 

10.08.2005