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Gilson Nascimento


 

Rosa imortal


Minha mãe, pálida e fria
Mudez no gesto, na fala
Minha mãe que já não reza
Minha mãe de olhar apagado
De mãos álgida, inúteis
Não acenam.
Não abençoam.


Riso sem cor – desbotado
Palavra inerte – não soa
Lábios murchos – não se abrem
Flores que o vento da morte
Despetalando, esboroa


Mãe partindo às horas mortas
Do porto alvo da aurora
Nos braços da madrugada
Sem despedida, sem laivo
De beijo, de abraço ou riso.


Mãe – flor que não emurchece
Não cresta, não perde o brilh
Rosa orvalhada de prece
No jardim da alma do filho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

Gilson Nascimento


 

Entardecer da vida


Minha vida entardece, de repente
Sinto o peso dos anos. Na verdade
Revivo o meu passado no presente
Surpreso me pergunto: isso é da idade?


Meu íntimo responde: é, tens razão
Ao passo que se vive não se esquece
O que já foi vivido. A emoção,
O riso, o sonho, o gargalhar, a prece


Os bons e maus momentos tecem a vida
Todos eles na alma têm guarida
Onde dormitam pelo tempo afora


E de repente, então, meu caro amigo
O que no imo procurou abrigo
À saudade, desperta, como agora.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

Gilson Nascimento


 

Brincando de criança


Mergulhar no passado de mansinho
É tarefa que cumpro a cada instante
Detendo-me da existência no caminho
Alço vôo e então pouso no distante


Quem me leva de volta é a saudade
Que vive no meu peito se aninhando
No entardecer da vida quem não-há-de
Viver sempre o seu ontem namorando


Namoro-o, sim, e é o pensamento
Que tudo alcança dentro de um momento
De tão ardente amor a viva chama


Apagá-la? Jamais! Pois, na verdade,
De criança brincar, fugir à idade
É algo que a velhice sempre ama.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

Gilson Nascimento


 

A n i v e r s á r i o


Um ano a mais tens hoje, caro filho
Um instante na vida – longa estrada
Dos teus olhos relembro o vivo brilho
No alvorecer de tua caminhada


Àquele tempo quando articulavas
Os vocábulos que aos poucos aprendias
E com teu riso infância os libertavas
O amor interpretava o que dizias


Homem, guardas, contudo, da criança
Algo que às vezes ao adulto cansa
Ser sincero, leal e bom amigo


Que ao longo do caminho a percorrer
A flor do bem não deixes perecer
Ao sol da vida; rega-a, dá-lhe abrigo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

Gilson Nascimento


 

Olhando a serra


Quando te olhei, oh serra, da distância
E percebi teu verde me fitando
Cavalguei pelos longes da infância
Vi fiapos de névoa te beijando


De pássaros ouvi terno gorjeio
Do arvoredo deitei-me ao sombrear
Pensei-me numa ladeira e bem do meio
Vibrei do Pirapora ao transbordar


Das Pretinhas banhei-me no riacho
Escorreguei os olhos rio abaixo
Procurando matar minha saudade


E preso, assim, a teias do passado
O menino senti, vivo, a meu lado
E afoguei na emoção a minha idade

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Titian, Three Ages

 

Gilson Nascimento


 

A morte do escorrego


Do Escorrego a bica se finou
Como cantava! Agora emudeceu
Foi o homem, bem sei, que a magoou
Insensível e forte, ele a venceu


Perdida a sombra leve do arvoredo
Os pássaros, tristonhos, debandaram
A secura e o sol lhes deram medo
Bateram asas, longe, além, pousaram


Do bambusal se foi o sombrear
Da água não ouço o forte marulhar
Na paisagem há dor, há solidão


Na serra amiga os olhos meus pousando
Antevejo-lhe o verde estertorando
A implorar a nossa proteção

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

Gilson Nascimento


 

Primeiro soneto aos invernos de outrora


Os invernos de outrora não esqueço
Preciosos guardados da lembrança
Revê-los, quem me dera, a qualquer preço
Mas somente a saudade hoje os alcança


Meu rio, o Pirapora, transbordava
O céu era de um cinza carregado
O trovão noite a dentro ribombava
E o coração do povo era aguado


Quando uma chuva visitava a noite
O vento solto semelhava açoite
Ainda hoje escuto-lhe o silvar


Quando relembro esse passado agora
O homem, bem baixinho, vezes chora
E diz que ao menino quer voltar

 

 

 

 

 

 

10.08.2005