Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

José Américo de Almeida

10.1.1887 - 10.3.1980

Jacques-Louis David (França, 1748-1825), A morte de Sócrates

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Ticiano, O amor sagrafo e o profano, detalhe

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

Carlos Nóbrega

 

 

 

 

 

 

 

 

 

albano Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

Urariano Mota

 

 

 

 

 

 

 

 

Rita Brennand

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ana Guimarães

 

 

 

 

José Américo de Almeida

 

Prefácio de Zé Limeira,

o poeta do absurdo,

de Orlando Tejo

 

Tomado de amores pela poesia popular, a manifestação mais viva da inteligência do Nordeste, Orlando Tejo escreveu este livro. 

É uma excelente contribuição para o conhecimento íntimo da musa matuta, representada por um dos seus curiosos exemplares. 

A literatura de cordel está, hoje, universalmente consagrada, como um dos testemunhos mais fiéis da tradição.  A pobreza de mitos regionais é suprida por essa fonte de comunicação imediata. 

Começa o autor enquadrando sua pesquisa no domínio do folclore, cujo conceito traduz com familiaridade e solidez. 

Finalmente, elege, um estudo, o tipo que representa, no seu entender, a revelação mais original da sobrevivência dos antigos trovadores: Zé Limeira, paraibano do Teixeira (l 886-1954). 

Esse Zé Limeira, chamado o Poeta do Absurdo, era doido ou um vidente. A figura humana encarnava um misto de excentricidade e simpatia. Alto, forte, sorridente, impressionava pelo físico e maneiras destabocadas. 

Andarilho de sete fôlegos, trazia o matulão a tiracolo e não largava a bengala de aroeira, feita um bordão. 

Meio carnavalesco, usava roupa de mescla com um lenço encarnado no pescoço. Seus dedos eram grossos de anéis. 

Cantando, com uma bonita voz, erguia, desdenhoso, o rosto guarnecido de grandes óculos escuros.  Este retrato denuncia o estado interior: 
  

                     Sou o cantador malhó  
                     Que a Paraíba criou-lo. 

                     Eu me chamo Zé Limeira,  
                     Cantor de Sabedoria. 

                     Não tem homem cuma eu. 
                     Sou o vátis das glórias desta terra. 

 

O auto-elogio é próprio dos repentistas. Nos desafios, cada um procura superar o rival com suas pabulagens.  Mas o Poeta do Absurdo, por seus exageros, desafia um diagnóstico. 

Singularizava-se ele por sua independência e altivez.  Enquanto os outros cantadores, sempre louvaminheiros, exaltavam os "donos da festa", Zé Limeira era irreverente e pornográfico dentro dos ambientes mais austeros. 

Na casa de um agrônomo, que o chamara para cantar, escandalizou a família e os convidados com estas liberdades ao celebrar as virtudes da senhora do anfitrião: 

                     Eu sou um homem de fé 
                     Mais só conheço a muié 
                     Olhando a parte de baixo. 

          

Na presença de um governador de Estado, saudou a primeira dama, depois de ter ouvido o parceiro esbofar-se em suas loas, com esta porcaria imprópria: 

                     Doutô, como eu não tenho um brinde em nota, 
                     Que possa oferecer à sua esposa, 
                     Dou-lhe um quilo de merda de raposa 
                     Numa casca de cana piojota. 

 

Tinha momentos de um saboroso realismo: 

                     Muié só presta arpejada, 
                     Porém só presta bem feme, 
                     Do jeito que foi Noeme 
                     Cum cinco mês de casada. 
  

        E no mesmo tom 

                     Só gosto de duas coisas: 
                     Vida boa e muié feme. 
                     Ainda o ano passado 
                     Fui pai dum casá de geme 

        Rebenta um imprevisto: 

                     Fui casado e bem casado, 
                     Cum quem, num digo cum quem. 
                     A muié ainda é viva, 
                     Mas morreu, mora no Além, 
                     Se um dia vortá à terra, 
                     Vai morá no pé da serra, 
                     Não casa mais cum ninguém. 

        Criou um lirismo rude: 

                     No dia que eu me zangá 
                     Mato você de carinho. 

        E mais temo: 

                     Minha muié chama Bela, 
                     Quando eu vou chegando em casa, 
                     O galo canta na brasa; 
                     Cai o texto da panela, 
                     Eu fico olhando pra ela... 
                     Morena de meu amor, 
                     Cabo de minha bengala, 
                     Segredo de minha mala, 
                     Meu cavalo corredor. 

         Admira esta fluência poética: 

                     Eu e o mestre na festa 
                     Canto até ficá de dia. 
                     Na terra só tem tristeza, 
                     No Céu só tem alegria. 
                     Se um dia eu fosse chamado  
                     Prá cantá no Céu eu ia. 

         E esta novidade de construção: 

                     Eu briguei com um cabra macho 
                     Mais não sei o que se deu: 
                     Eu entrei pru dentro dele, 
                     Ele entrou pru dentro deu, 
                     E num zuadão daquele 
                     Não sei se eu era ele 
                     Nem sei se ele era eu. 

         O que singularizava Zé Limeira era ser o antilógico: 

                     Casemo no ano de quinze,  
                     Na seca de vinte e três. 

                     Ela parece um limão 
                     Rodeado de cebola, 
                     Uma goiabeira verde 
                     Enfeitada de ceroula... 
                     Eu me lasco mas faço uma ferida  
                     No toitiço da velha madrugada. 

                     Quando uma vez eu cantava, 
                     Bem cedinho, à meia-noite, 
                     Quando eu de dia falava, 
                     Passou uma besta-fera 
                     E meus versos declamava. 

 

Baralhava ele as noções de tempo e de espaço.  E ainda pior, era a deformação pessoal.

Nos desafios, fugia do assunto, deixando de estabelecer o diálogo. 
Perdia o fio das respostas e prosseguia, desatento, distante, desarrazoado, sem ligar para o companheiro.  Fazia de conta que não ouvia a deixa.

Abusava da distorção histórica.  Não havia glória profana ou santidade que escapasse de suas caricaturas: 
  

                     Napoleão era um  
                     Bom capitão de navio: 
                     Sofria de tosse braba 
                     No tempo em que era sadio, 
                     Foi poeta e demagogo, 
                     Numa coivara de fogo 
                     Morreu tremendo de frio. 

                     Dom Pedro teve um enfarte, 
                     Tomou um chá de jumento, 
                     Vomitou, botô pra dentro, 
                     Tornô goipá outra vez... 

                     Quando Jesus veio ao mundo  
                     Foi só pra fazê justiça. 
                     Com treze ano de idade 
                     Discutiu com a doutoriça, 
                     Com trinta ano depois 
                     Sentô praça na puliça. 

                     O Marechá Floriano 
                     Antes de entrá pra Marinha,  
                     Perdeu tudo quanto tinha  
                     Numa aposta cum cigano.   
                     Foi vaqueiro vinte ano,  
                     Fora os dez que foi sargento.   
                     Nunca saiu do convento  
                     Nem pra lavá a corveta,  
                     Pimenta só malaqueta,  
                     Diz o Novo Testamento. 

                     Quando a Princesa lsabé 
                     Escapou do cativeiro, 
                     Arrodiou pru Monteiro 
                     Vei se escondê em Sumé. 
                     Foi quando uma cascavé 
                     Mordeu-lhe a junta dá mão. 
                     Foi morrê lá no Feijão, 
                     Dum jeito de fazê pena... 
                     Um dia Augusto dos Anjo, 
                     Junto com São João da Barra, 
                     Foram fazê uma farra 
                     E tivero um desarranjo. 
  
                     Jesus nasceu em Belém,   
                     Conseguiu sair dali, 
                     Passou por Tamataí, 
                     Por Guarabira também.   
                     Nessa viage de trem 
                     Foi pará no Entroncamento. 
                     Não encontrando aposento 
                     Dormiu na casa do Cabo, 
                     Jantou cuscuz com quiabo, 
                     Diz o Novo Testamento. 

 

Era assim que interrompia os torneios.  Seria uma fuga?  Um recurso de ocasião?  Um enxerto preconcebido para encontrar a rima? 

Essa incoerência não é um pensamento sem controle e, sim, uma agressão ao real.  Uma visão deformada e não o abstrato, o subjetivismo criativo. 

É exato que ele também se apresentava como inventor da linguagem: filosamia, filanlumia, pilogamia e outros termos que ninguém pescava. Deverá ser levado para o campo psiquiátrico ou seria um fenômeno de intuição realista? 

Ele mesmo disse: 

                     Eu sou um nego moderno, 
                     Foi não foi, estou pensando. 

 

De fato, era um repentista; a composição elaborada tinha outro valor. Orlando Tejo examina bem esse aspecto. 

Sabemos o que significa o automatismo contra a reflexão.  Mas não se encontra nessa poesia plebéia nenhum laivo do subconsciente ou do onírico; o que se observa é mera confusão.  Há uma exatidão intrínseca que não se deturpa. Uma coisa é ser hermético e outra é ser desconexo.

Temos mostras de surrealismo em alguns dos nossos melhores poetas: João Cabral de Meio Neto, Jorge de Lima, Murilo Mendes.  Um analfabeto não teria essa sensibilidade. 

Ou seria simplesmente uma intenção humorística, um jogo de 
crioulo doido? isso, sim. O poeta não levava as coisas a sério, trocava as bolas, procurando o pitoresco. 

Mas que imaginação picaresca! 

É um livro digno de estudo. 

O poeta Orlando Tejo expõe uma matéria nova para ser analisada ela crítica moderna.


Link para a page de Tejo

 

Cláudio Aguiar, Soares Feitosa e o poeta Orlando Tejo (Zé Limeira, o Poeta do Absurdo); a esposa de Tejo, Josimara, a quem ele chama "Minha Prinspa". O cenário é a Livra Livro 7, do Recife, mais ou menos de 1997. Foto de Majela Colares.

   
 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um esboço de Leonardo da Vinci

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Benedicto Ferri de Barros

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carlos Felipe Moisés

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rubens Ricupero

 

 

 

Dalwton Moura
 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

7.1.2007

 


 

Páginas de Américo

 


 

Há 120 anos nascia José Américo de Almeida, autor de ´A Bagaceira´. Duas décadas após sua morte, um marco ainda em debate da literatura regional.

Areia, Paraíba, 10 de janeiro de 1887. Na cidade interiorana, antigo Sertão de Bruxaxá, região do Brejo paraibano, teve início a trajetória de José Américo de Almeida. Filho de Inácio Augusto de Almeida e Josefa Leopoldina Leal de Almeida, o menino pouco conviveu com o pai. Órfão aos nove anos, passou a ser criado por um tio. O futuro romancista, ensaísta, poeta, cronista, político, advogado, professor, folclorista e sociólogo estudou no Liceu da Paraíba e, a partir de 1903, na concorrida Faculdade de Direito do Recife.

Encontrando a literatura
 

Graduado, José Américo passou a exercer na capital pernambucana as funções de promotor de justiça. Retornou à Paraíba, como promotor na cidade de Sousa. Prosseguindo no caminho do funcionalismo público e da política, em 1911 tornou-se procurador geral do Estado - com apenas 24 anos de idade. A literatura só lhe renderia destaque em 1928, quando a publicação de ´A bagaceira´ chamou atenção da crítica nacional para a força da literatura regionalista, tão pouco tempo depois do revolver de rumos da Semana de Arte Moderna. O romance foi um dos marcos da segunda geração do modernismo brasileiro, também conhecida como geração de 30, notabilizada por autores que, passada a antropofagiaCapa de Poti Lazarotto, 50 anos de A Bagaceira antiparnasiana dos revolucionários de 22, buscaram nas raízes do regional o cenário, o enredo e a poesia para o projeto de tecer uma literatura nacional.

Não que fosse um projeto absolutamente novo. Já no século XIX autores como os cearenses Domingos Olímpio (do clássico ´Luzia Homem´) e Franklin Távora (de ´O Cabeleira´) buscaram no realismo de cores regionalistas o mote e a forma para seus romances. Mas a geração de Américo retomou esse caminho, conforme deixam claro obras anteriores do autor paraibano, como ´Reflexões de um Cabra´ (sua estréia, em 1922) e ´A Paraíba e seus problemas´ (1923). Os trabalhos do Centro Regionalista Brasileiro, de Recife, contribuíram para aglutinar autores como Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego.

Durante o governo de João Pessoa na Paraíba, Américo foi secretário do Interior e de Justiça, enfrentando conflitos políticos. Em 1930 tornou-se ministro de Viação e Obras Públicas do governo Vargas. Em 1934, dois anos depois de sobreviver a um grave acidente aéreo, foi nomeado por Getúlio embaixador do Brasil junto à Santa Sé. Em 1935 elegeu-se senador da República, tornando-se depois ministro do Tribunal de Contas da União.

José Américo de Almeida chegou a ser indicado candidato à presidência da República em 1937. Tinha boas possibilidades de vitória, mas seus planos foram interrompidos pelo golpe de 10 de novembro, que manteria Getúlio no poder até 1945, dissolvendo o Congresso Nacional e implantando a Constituição do Estado Novo. Américo torna-se, então, opositor da ditadura de Vargas, conforme registra sua entrevista ao jornal carioca ´Correio da Manhã´. Mas, novamente eleito senador pela Paraíba, volta a se compor com Getúlio, reassumindo a pasta da Viação e Obras Públicas até o suicídio do ditador, em 24 de agosto de 1954.

Academia e reconhecimento
 

No mesmo ano, ´Ocasos de Sangue´ marca seu retorno às publicações literárias. A partir de 1958, inicia uma espécie de retiro pessoal, que lhe renderia o epíteto de ´solitário de Tambaú´. Dedica-se, então, a escrever suas memórias, publicando livros como ´Discursos de seu tempo´ (1964) e ´A palavra e o tempo´ (1965). Em 1966, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, na cadeira 38, que fora ocupada pelo professor e escritor Maurício de Medeiros. O discurso de saudação do novo imortal ficou a cargo de Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde.

Em 1977, após publicar ´O ano do nego´, ´Eu e Eles´ e ´Quarto Minguante´ e ´Antes que me esqueça´, outro volume de memórias, recebe o título de ´intelectual do ano´, conferido pela União Brasileira de Escritores ao homem que, transitando entre a literatura e a política, foi também governador da Paraíba, fundador e primeiro reitor da Universidade da Paraíba. E foi na capital, João Pessoa, que José Américo de Almeida faleceu, aos 10 de março de 1980. Mais de duas décadas após sua partida, ´A Bagaceira´, que já acumula mais de 30 edições, também em espanhol, francês, inglês e esperanto, segue absoluta como sua obra mais conhecida e debatida. Mas há muito mais a descobrir no universo de Américo.

Fundação mantém memória
 

Com a morte do escritor paraibano, a casa onde ele vivera, em João Pessoa, foi adaptada para receber a Fundação José Américo de Almeida, com o objetivo de manter a memória do célebre autor. Institucionalizada em lei de 1981, a casa até hoje oferece a visitação a um museu com as mesmas características da época em que o escritor vivia no local - incluindo fotografias, móveis e objetos pessoais. Há ainda um auditório, uma biblioteca com 18 mil volumes e uma sala de exposições, além de um memorial onde são guardados os restos mortais de José Américo e de sua esposa, Anna Alice Mello de Almeida, falecida em 1983.

1 "José Américo de Almeida abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro". Guimarães Rosa

2 "Livro sensacional. Até minutos antes de o ler, a literatura brasileira estava vazia desse livro. E de agora em diante já não pode viver sem ele. Não é apenas um grande livro nosso: é um grande livro humano".
Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, sobre ´A Bagaceira´

3 "Livro renovador até da língua literária e também explosão de quem o escreveu sensível a circunstâncias sociais. E exprimindo um desejo, no caso nada demagógico, de influir sobre o social". Gilberto Freyre
 

O traço de Poty

 

José Américo de Almeida teve um parceiro de peso para notabilizar sua obra. O artista pástico paranaense Poty Lazarotto (1924-1998) assina as ilustrações da clássica edição de 50 anos de publicação de ´A Bagaceira´. Nesta edição, reproduzimos algumas delas, entre capitulares bordadas por ele.

Um dos ilustradores mais solicitados por editores, Poty teve seus trabalhos adornando clássicos de outros autores regionalistas, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Gilberto Freire e Rachel de Queiroz, em trabalhos muitas vezes premiados (como as ilustrações para ´Sagarana´, que lhe renderam o primeiro prêmio na categoria livros, na X Bienal de São Paulo). Além de desenhos monocromáticos e coloridos, sua produção inclui painéis e murais, presentes em aeroportos, bancos, museus, teatros e na paisagem urbana de cidades como Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro.

Romancista em DVD
 

Hoje, a imagem de José Américo ganha outra linguagem, com o próprio autor figurando no recém-lançado DVD “Encontro Marcado com o cinema de Fernando Sabino e David Neves” (Biscoito Fino). O curta-metragem “Romancista ao Norte”, filmado pelo cronista mineiro e pelo cineasta carioca na casa do escritor, praia de Tambaú, no início dos anos 70, revela a indignação de José Américo em relação a Getúlio Vargas, que cerceou sua candidatura à Presidência da República, com o golpe do Estado Novo. “Getúlio nunca me apoiou”, protesta. No entanto, o escritor se contradiz ao voltar a assumir o cargo de Ministro da Viação e Obras Públicas de seu, temporariamente, rival.

Além da importância política para seu Estado, aos 87 anos, o ex-governador da Paraíba também tem saudada sua trajetória literária. Inclusive, em depoimento de Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, primeiro crítico literário brasileiro a reconhecer publicamente “A Bagaceira”. Saudando o escritor como um estadista, o conservadorismo do texto e das imagens de Sabino e Neves contradiz-se com seu clássico romance.
 

 

Fernanda Coutinho
 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

7.1.2007

 

 

A Bagaceira: o mundo visto de dentro

 

 

Vagar pelas léguas do sertão em busca de paisagens em que o sol, imperiosamente cruel, ceda lugar à sombra amorosa, que não deixa a água ser tragada pelas gretas do barro escaldante, parece ter sido o destino de multidões de retirantes Nordeste afora. A Literatura, amiga de relatar peregrinações, quis contar essas histórias de muito caminhar e o fez com tal freqüência e intensidade que se criou uma classificação especial para essas narrativas do século XX: o romance de 30 nordestino. Muitos desses retirantes desfilam hoje em nossa memória: Chico Bento, Cordulina e seus cinco filhos, de “O Quinze”; Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos, o mais novo e o mais velho, caminhantes das “Vidas Secas”. Só que, como se sabe, o romance de 30 tem a peculiaridade de nascer um pouco antes do tempo, em 1928, pelas mãos hábeis de José Américo de Almeida, que nesse ano, publicou “A Bagaceira”. Assim, por um critério de precedência aos personagens citados se antecipariam Valentim Pedreira, Soledade e Pirunga que fogem da tremenda seca de 1898 e vão dar no engenho de Dagoberto Marçau e de seu filho, Lúcio. O romance explora a tensão entre as práticas de comportamento de sertanejos e habitantes do brejo, marcando sua filiação ao texto de natureza documental. José Américo, contudo, abre novas possibilidades de leitura para sua narrativa que envereda pelos desvãos das almas das personagens, espaços de tormenta, habitados ora pela solidão, ora pelos ecos da memória do passado. Por essa trilha seguirão depois muitos de nossos grandes escritores. Guimarães Rosa chega a confessar: “José Américo abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro”.

Em “A Bagaceira”, pai e filho se digladiam não apenas quando a questão é o amor de Soledade, mas vivenciam, principalmente, uma luta interna por não conseguirem destravar a afetividade ligada às emoções ternas. Para o pai, morador dos ermos do casarão, a presença do filho, vindo de férias do colégio interno: “Em vez de confortar-lhe o abandono, agravava-o, mais e mais, como uma sombra intrusa”. Assim, resta ao outro solitário refazer o caminho da infância. A armação psicológica de Lúcio é construída através de uma transposição de tempos na qual o passado demonstra seu poder de virar presente na vida adulta. Não lhe cabe, porém, melhor sorte nessa viagem de volta. São muitas as lembranças da época de criança, um “enxame assanhado” delas, onde figuram a escola como atmosfera de tédio e desprazer e ainda o próprio retrato do menino de outrora com borrões que maculam a imagem da criança como alguém livre de maus instintos e onde se põe a nu a crueza do sadismo infantil. Atento a todos esses aspectos, Tristão de Athayde dizia: “Não é apenas um grande livro nosso: é um grande livro humano”. De fato, ao relatar a saga de retirantes, o romance vai além e penetra em terrenos desérticos onde moram ressequidas almas, incapazes de se comunicar, vagando a esmo numa terra ingrata, amparadas unicamente pela própria solidão.

FERNANDA COUTINHO *
* Doutora em Teoria da Literatura e Professora do Curso de Letras da UFC.

 

Genuino Sales

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

7.1.2007

 

 

 

Mestre da palavra e da arte de ensinar o gosto pela literatura, Genuíno Sales fala sobre José Américo de Almeida - que chegou a conhecer, em um encontro rápido e marcante

Embora José Américo de Almeida seja muito lembrado por uma só obra, como se pode caracterizar o conjunto da sua produção literária?

Era uma obra que primava pela natureza da língua, pelo prestígio e pelo pensamento da língua. Ele era um pensador. Não dizia quatro palavras que não fossem um pensamento. Ele diz, por exemplo, que ´ver bem não é ver tudo. É ver o que os outros não vêem´. Ou então: ´Pior do que morrer de fome no deserto é não ter o que comer na terra de Canaã´.
Genuino Sales São coisas de um grande autor, um grande pensador, autor de uma obra mais vasta. Mas claro que ´A Bagaceira´ é um romance importantíssimo. Considero José Américo o maior regionalista brasileiro, e ´A Bagaceira´ foi o primeiro romance regionalista da Geração de 30. Depois é que vêm os outros, Graciliano, Rachel, também muito grande. Mas José Américo foi pioneiro.

Que ponte se pode estabelecer entre autores regionalistas anteriores, como os cearenses Domingos Olímpio e Franklin Távora, e a obra de José Américo e o regionalismo de 30?

É uma questão de domínio, de visão e de interpretação da realidade. Aquela nossa realidade do Franklin Távora, do ´O Cabeleira´, era uma forma ainda ligada à expressão romântica e realista. Não havia toda a caracterização da linguagem que o José Américo de Almeida usa e o Graciliano Ramos, mais ainda. Como ´Luzia Homem´, do Domingos Olímpio, é um começo para algo que vai dar no romance de 30. E o José Américo tinha muito forte a questão ideológica, sem deixar de trabalhar a linguagem. Dizia, por exemplo, que ´ir à janela é uma forma de ver o mundo sem sair de casa´. Que ´o amor é uma gradação dos sentidos: começa pela necessidade de ver´. Então, é como se a gente fosse de uma geração realista para outra, neo-realista.

O que fica do regionalismo para a literatura brasileira atual, para novos autores?

Fica muita coisa: o lado ideológico, a sabedoria, o conhecimento da terra e do homem, como expressão política e filosófica da realidade. Quem diz que regionalismo não existe é quem não tem sabedoria. É preciso ter sabedoria pra compreender essa transmissão. Agora, tem muita gente que quer fazer regionalismo deturpando palavras, dizendo besteiras. O que caracteriza o escritor regionalista é ser sábio. Não é ser sabido, é ser sábio, como José Américo. O regionalismo continua influenciando a literatura brasileira e está muito presente na obra de autores da atualidade, como o Fontes Ibiapina, o Magalhães da Costa, piauienses. E aqui no Ceará é uma plêiade de escritores, como o nosso João Clímaco Bezerra (antecessor de Genuíno na cadeira de número nove da ACL), um grande romancista regionalista e contista.

Que comparação se pode fazer entre a prosa regionalista de José Américo e a escrita de Guimarães Rosa?

É uma comparação realmente necessária. O que Guimarães Rosa e José Américo fazem é praticamente a mesma coisa, com exceção do problema da linguagem, do vocábulo, da criação das palavras. Mas a lógica regionalista é a mesma. Tanto é assim que eu, piauiense, não tive a menor dificuldade de compreender ´Grande Sertão: Veredas´, porque parece muito as coisas de lá, as coisas do interior do Piauí. Ele tá dizendo coisas ali como se fossem uma experimentação, mas aquilo é mesmo que um caboclo do Piauí falando. Agora, quem nasce lá no Rio de Janeiro, aí deve achar difícil entender. Agora, assim como Guimarães Rosa era um grande contista, e seus contos são de certo modo sufocados pela dimensão de ´Grande Sertão: Veredas´, com o José Américo de Almeida acontece algo parecido, em relação aos livros de memórias dele, que são importantes, mas são sufocados pela dimensao de ´A Bagaceira´.

Por que essa atenção quase que exclusiva foi se consolidando ao longo do tempo, como se fosse um autor de uma obra só?

Porque a obra literária tem que ter uma oportunidade, uma ocasião. Por exemplo, pra mim ´Dora Doralina´ não tem nada de inferior a ´O Quinze´. Mas ´O Quinze´ foi a ocasião, o contexto. Essas obras em que a qualidade literária encontra a ocasião, a oportunidade, é que ficam realmente como os grandes clássicos.

E como foi o seu encontro com o José Américo?

Foi muito rápido, mas emocionante pra mim. Ele foi simpático, me atendeu. Foi em Natal, naquele hotel Três Reis Magos. Eu tive a oportunidade de cumprimentá-lo. Estava lá, e chegou aquele homem de terno, de cabelão, meio careca, meio com o cabelo arrupiado. Ele já tinha mais de 80 anos. Eu perguntei quem era, disseram que era o escritor José Américo de Almeida. E eu: ´Vou já falar com ele´. Cheguei: ´O senhor dá licença. Eu sou estudante, queria cumprimentar o senhor´. Ele me cumprimentou, foi simpático.

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

9.4.2007