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Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Pensão familiar


Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar as boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.


Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

 

Estes poemas belíssimos, de Manuel Bandeira — Estrela da Vida Inteira, Ed. Nova Fronteira, fone (021)286.78.22, Brasil — foram inspiração (e homenagem a ele) para Soares Feitosa, "in" Do Belo-Belo.
 

 Um cronômetro para piscinas

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carvagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Poema tirado de uma notícia de jornal
 

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
 

 Franz Xaver Winterhalter. Portrait of Mme. Rimsky-Korsakova. 1864.

 

Bronzino, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Trem de ferro


Café com pão
Café com pão
Café com pão


Virge Maria que foi isso maquinista?


Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(trem de ferro, trem de ferro)


Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
Da ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
Oô...
(café com pão é muito bom)


Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matar minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...


Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
(trem de ferro, trem de ferro)



(Manuel Bandeira in "Estrela da Manhã" 1936)
 

 John William Waterhouse , 1849-1917 -The Lady of Shalott

 

Mary Wollstonecraft, by John Opie, 1797

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), Classical

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


O último poema


Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
 

Hélio Rola

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), João Batista

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

Um esboço de Da Vinci

 

 

Manuel Bandeira


Os sapos
 

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
 

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
 

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
 

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
 

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
 

Vai por cinquüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
 

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
 

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
 

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
 

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".
 

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
 

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
 

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
 

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
 

Manuel Bandeira in "Estrela da Vida Inteira"

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

 

Valdir Rocha, Fui eu