Maria
da Conceição Paranhos
Mãe
Os lençóis não cobrem todo o corpo:
há buracos cerzidos, invisíveis,
pelos quais entra um vento de alfinetes.
Inútil superpor camadas de tecido
para atenuar o efeito perfurante:
nem mesmo cobertores vedariam
pontos invisíveis, como ducha
a percutir no frio da pele tensa.
Também inútil tentar ver tais furos
mesmo com requintes da ciência.
Ela sabe mais.
Não sabemos donde vem tanto saber.
Atordoa-nos, retira-nos do sono:
procuramos, em vão, em livros vários
entender o segredo do seu verbo.
Ela fala mais.
Quem fala, quem sabe a essa hora
em que toda ciência desmorona ?
Não carecemos de sabedoria:
precisamos de tintas, muitas cores
a escorregar no branco das paredes,
a salpicar de tons lençóis inúteis,
a tingir objetos incolores.
Precisamos de luzes, muitas luzes,
a iluminar essa sombra persistente
no palco em que atores estão postos
(esse zumbir perpetuado em nossas mentes).
Ela pode se calar.
Então, crescem segredos do seu ventre:
retira do seu corpo seus pertences
e os entrega a cada um,
cantando uma canção dolente.
Lá-lá-lá-lá, quem vem lá?
É ela. Sonhamos com seu rosto
iridente.
Ela sorri nos sonhos, nos acena,
nos toma no seu colo,
inventa histórias, rimas,
cantigas estranhas, persistentes.
Seus olhos quais colméias —
inquietude e faina;
seus braços se distendem,
e o balbucio amaina.
Lá-lá-lá-lá, quem vem a.
É ela. Sonhamos com sua face
incandescente.
Como é seu nome ?
Como chamá-la, esfinge,
ou responder, se o desvairio
nos atinge ?
Ensina-nos a precariedade das respostas,
a matéria volátil de que são feitas rosas.
Lá-lá-lá-lá, quem vem a.
E ela. Cada vez mais
sorridente.
Mas se não fosse ela,
há muito tempo,
restaríamos sem teto,
soltos, ao relento.
Ela arredonda os braços
e acolhe essa louca prole.
Se é impossível dormir a seu lado,
mais impossível abandonar o fado:
essa rota de abismos
que nos recolhe
e nos reverte
ao momento da semente.
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