Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

Maria da Conceição Paranhos


 

Luz inesperada


Preparei a casa para te esperar:
procurei nos cantos o passado
e engastei-o à soleira da porta,
petrificado em dor, mas refulgente.


Não foi necessário mudar de casa
para te esperar. Bastou a tua vinda,
ainda de madrugada, para que tudo mudasse,
e a lua crescente surgisse ao meio dia.


A cama está feita, a mesa está posta,
nas compoteiras brilham sobremesas
feitas para adoçarem a tua boca
quando a vida amargar, travar-se o riso.


Meu corpo não é o mesmo de ontem,
mas é mais virgem, através das horas,
que me apartaram de outros desejos
dos quais me afasto, emigrada de mim mesma.


Foi gratuito o teu chegar. Por isso fica:
permanece em mim e esquece a lágrima.
Te esperei para chamar-te "meu amor",
embora ingressem em minha voz e corpo


antigas sereias, com pentes de espelhos,
a retrançar meus cabelos destrançados,
e te convidem para o sábio mergulho
onde habitaremos: nós e o tempo.


(do livro Esporas do Tempo, Prêmio Copene,
lançado no Museu Costa Pinto, Salvador, BA, 20.06.96)


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria da Conceição Paranhos


 

Anunciação


Anunciar.
Lembra-me o encontro,
vez primeira
em que vi teu rosto no entanto oculto
por tanta e tão espessa bruma.


Tarefa de dizer.
Pedi a tua vinda,
supliquei às garras do tempo
o teu encontro.


Vieste,
a indesejada das gentes,
vieste
e te alojaste à flor
do lábio que não abre.


Tomei a iniciativa.
Ou fui, ao revés,
tomada pela iminência,
essa ganância,


essa arrogância,
essa demência,
que se aloja na garganta?


Pouco importa.
Necessário sonharmos juntos.


Vieste,
apesar da hesitação
nas fontes hostis
da História.


Doçura de ficar
em tua sombra,
permitida dessa luz
inesperada,
que me arrasta
em surtos de violência


Anunciação.

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

Início desta página

Ivo Barroso, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

Maria da Conceição Paranhos


 

Escuta


Ocorre que há uns lapsos na história,
há uns lapsos. Então vêm, videntes,
relatar histórias conhecidas
em noites longas de calor, insônia.
Ouvimos. Pacientemente.
Sob discursos jazem outras vozes.


Necessário cantar.
Animais se aninham ao nosso ânimo,
baixam seu brado à espera da canção.
E os leões de pedra dos portões
deixam rolar os globos que os sustentam.


Falamos línguas obscenas.
Não. Endureceu-se o ouvir.
Indefinidamente?
Afrontar a rija espada dos confrontos,
permitir soluços, se o peito arfa
curvado de rajadas imprudentes.
Se não se deixa a alma nesses lances
em que transidos vagamos dementes,
como afrontar as rugas, decifrar mensagens
(não correm ventos nas paisagens mortas,
largadas ao relento)?


Necessário é amar.
Primeiro e último tormento.

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Slave market

Início desta página

José Santiago Naud

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caravagio, Tentação de São Tomé, detalhe

 

 

 

 

Maria da Conceição Paranhos


 

Transição


Expressar.
Esquecer os atalhos, os desvios, a fuga.
Este é o lugar : fincar raízes
em solos aéreos, improváveis.
Decifrar imagens no espelho
esmerilhado por desastrado gesto.


Cirandas na ausência,
mãos tateando o escuro,
o turvo elemento, o verbo,
que depende.


Como depende.
Essa linguagem perseguindo
a atenção do silêncio.
Signos anunciam, seio conhecido, Vita nuova:
"Amar-te-ei em excesso após a morte.
Ninguém cantará teu amor como eu".


Cantor de improviso,
de onde vens e de onde extrais
essa sabedoria imprudente?


Começa agora outro dia.
O poeta canta.
O poeta canta.
Por males que não espanta.

 

 

 

Bernini_The_Rape_of_Proserpina_detail

Início desta página

Pedro Salgueiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Leighton, Lord Frederick ((British, 1830-1896), Girl, detail

 

 

 

 

Maria da Conceição Paranhos


 

Mãe


Os lençóis não cobrem todo o corpo:
há buracos cerzidos, invisíveis,
pelos quais entra um vento de alfinetes.


Inútil superpor camadas de tecido
para atenuar o efeito perfurante:
nem mesmo cobertores vedariam
pontos invisíveis, como ducha
a percutir no frio da pele tensa.
Também inútil tentar ver tais furos
mesmo com requintes da ciência.


Ela sabe mais.


Não sabemos donde vem tanto saber.
Atordoa-nos, retira-nos do sono:
procuramos, em vão, em livros vários
entender o segredo do seu verbo.


Ela fala mais.


Quem fala, quem sabe a essa hora
em que toda ciência desmorona ?


Não carecemos de sabedoria:
precisamos de tintas, muitas cores
a escorregar no branco das paredes,
a salpicar de tons lençóis inúteis,
a tingir objetos incolores.


Precisamos de luzes, muitas luzes,
a iluminar essa sombra persistente
no palco em que atores estão postos
(esse zumbir perpetuado em nossas mentes).


Ela pode se calar.


Então, crescem segredos do seu ventre:
retira do seu corpo seus pertences
e os entrega a cada um,
cantando uma canção dolente.


Lá-lá-lá-lá, quem vem lá?
É ela. Sonhamos com seu rosto
iridente.


Ela sorri nos sonhos, nos acena,
nos toma no seu colo,
inventa histórias, rimas,
cantigas estranhas, persistentes.


Seus olhos quais colméias —
inquietude e faina;
seus braços se distendem,
e o balbucio amaina.


Lá-lá-lá-lá, quem vem a.
É ela. Sonhamos com sua face
incandescente.


Como é seu nome ?
Como chamá-la, esfinge,
ou responder, se o desvairio
nos atinge ?


Ensina-nos a precariedade das respostas,
a matéria volátil de que são feitas rosas.


Lá-lá-lá-lá, quem vem a.
E ela. Cada vez mais
sorridente.


Mas se não fosse ela,
há muito tempo,
restaríamos sem teto,
soltos, ao relento.


Ela arredonda os braços
e acolhe essa louca prole.
Se é impossível dormir a seu lado,
mais impossível abandonar o fado:
essa rota de abismos
que nos recolhe


e nos reverte
ao momento da semente.

 

 

 

Bernini_Bacchanal_A_Faun_Teased_by_Children

Início desta página

Octavio Paz, Nobel

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), A Classical Beauty

 

 

 

 

 

Maria da Conceição Paranhos


 

As vãs procelas


Instala-se a noite
em surtos de sombra —
prenuncio de chuva
em céu de tormenta.


O cheiro do mato,
de terra pingada
por leve neblina
avisa o momento


em que tu vais chegar,
bagagem atada
na garganta,
olhar de turmalina,
buscando esmeraldas
de outro tempo.


Quando aqui chegares,
virão chuvas, densas:
de greta e cascalho,
brotarão sementes.


Mas se não chegas,
essas fivelas
do corpo (terra),
não se descerram.


As vãs procelas.

 

 

 

Albrecht Dürer, Germany, Study of praying hands

Início desta página

Juarez Leitão

 

 

 

 

 

 

 

19/12/2005