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Rodrigo Magalhães


 

Carta sobre o Achamento das Cousas de Fulana
 

 

 

 

 

 

 

A  mulher, pois, vendo que o fruto
daquela árvore era bom para se comer,
era  formoso, e agradável  à vista,
tomou dele, e comeu, e deu a seu marido,
que comeu do mesmo fruto como ela.
( Gênese, 3: 6)
 

 

 

 

 

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Edna Menezes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), The Picador

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Esquizofrenia
 

 

Primeiro dia
 

Eu              Sei que o rádio me perscruta
                  e, de propósito, quando o tinha em menor volume,
                  com maldade, pra minha escuta, pro meu ciúme,
 

Analista   (pigarro)
 

Eu              acompanhou a voz dela com a do Chico, e,
                  enquanto a primeira renunciou o lume, a segunda
                  completava, anunciando o íntimo:
                 

                  E antes que o teu gosto não seja ou seja morno,
                  A7+           A#º        D#7/9-          G#m7   C#7/9
                  quero ser a cicatriz risonha e corrosiva,
                  a fim de que o meu seja indecente ou não te sirva,
                           F#7/13           B7/9-
                  marcada a frio, a ferro e fogo
                  pouco, resta-me um até logo
                            E7+ B7
                  em carne viva
 

 

Segundo dia
 

Analista      (De soslaio, a mosca e o espelho do olho esquerdo)
 

Eu              Outro dia, no banho, meus dedos engilhavam
                  enquanto conversavam o Sinatra e o meu pai.
                  O Sinatra sorriu: “ E o ocaso ali à frente...”.
                  “ Ele sabe. Viu meus cabelos brancos.” – concluía,
                  sem pesares, o meu pai.
 

Analista      (O espelho pisca e a mosca sai)
 

Eu              A mão engilhada não sente o linho da toalha,
                  e o que guardei de outra pele já não lembra o cheiro
                  que ela traz.

 

 

Terceiro dia
 

Eu              E, doravante, o que me alimenta parece
                  que se molha ou se apimenta, e à língua lembra
 

Analista     (bocejo curto)
 

Eu              a libido, pois, nágua, o músculo, mesmo seco,
                  vira musgo, e ainda geme aquele orvalho.
 

Analista     (bocejo longo)
 

 

Quarto dia
 

Eu    “ Deve doer...”, foi assim, uníssonos, o meu pai e o Sinatra,
        pois, diante do espelho, concordavam, vendo o fio dental
        tenso, ao longo, três nós, densos, entretanto, entre os dentes,
        mão e gengiva e o combate em silêncio.
 

 

Quinto e último dia
 

O analista, debruçado nos compêndios,
concluindo o raciocínio
com o novo conceito pragmático-sistêmico,
falou de paranóia, declarou esquizofrenia
e se esqueceu de Irene.

 

 

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Maura Barros de Carvalhos, Tentativa de retrato da alma do poeta

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Rodrigo Garcia Lopes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Dois momentos de Joana
 


I

‘Foi-se a última chance’, disse. Ela,
‘Nem aí’, sorrindo, apesar do gesto
de exílio e do aboio de quem vai embora.

Bati a porta.

‘Não preciso’, ‘Ele nem era tão bom’,
‘Cretino, isso sim’, ‘Mas as suas mãos,
os seus modos de não perder delírio...
cretino’

Caiu em si, insolúvel.

‘Aquele jeito desregrado’


II

Cheguei à porta, e falou o diabo de Jó:
‘Andei dando volta pelo mundo e passeando por ele’.

O olho, o meu, fitava pra baixo,
pralém dos azulejos.
O olho, o dela,
perdendo a minha imagem e transbordando.

Não houve lenço

e parando seu choro com o dedo, estendido,
fitava pra frente, pralém da sua lágrima.

O olho, o dela,
secando a minha imagem e imaginando.
 

 

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William Bouguereau (French, 1825-1905), Mignon Pensive

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Secchin

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Goya, Antonia Zarate, detalhe

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Relatividade


Antes,
na cama,
Joana, exata,
explicava as verdades atentas, calculadas,
da Relatividade de Einstein.


‘Todos os nossos juízos nos quais o tempo desempenha
um papel são sempre juízos de eventos simultâneos.


Por exemplo,
se eu disser: aquele trem chega aqui às sete horas,
o que quero dizer, de fato, é algo como:
o ponteiro pequeno de meu relógio apontado para o sete
e a chegada do trem são eventos simultâneos.’


Agora,
sem relógio, na cama,
o tempo é, simultaneamente, o lábio noutro lábio
úmido, o dedo no escuro, úmido,
e a primeira gota de um tempo úmido na vidraça.

 

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Alexander Ivanov. Priam Asking Achilles to Return Hector's Body

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Roberto Pompeu de Toledo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Lírica


Anverso


Naquele minuto que Diana me fitou terna
e, cúmplice, suspirou ao pé do ouvido:


“Poeta, o amor é cego”


Tremi
                                      e com os olhos cheios de lágrima


lavei o chão com um soneto em braile.



Verso


Diana me fitou guerra,
e ali, tão perto, ao pé do ouvido,
mordeu-me as cartilagens, sorrindo,
em devaneios de fera.


“Homem, deixa de rodeio!”


“Porra de soneto!” – dizia a sua boca
pelo ventríloquo de minha pele. Metro a metro,
tocando, percorria.


“É assim – tangia – que o amor é cego.”


Os meus olhos cheios, ainda. Plenos,
num líqüido de água-viva. Pelo
ventríloquo de minha pele, o outro corpo persistia:


“ Veja: o olho perde o lado morno.
Joga-me no chão, facilito o pasto.
Engasga meus espaços... Isso,
isso. Cum gosto.”

 

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Um cronômetro para piscinas

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Maurício Matos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Rodrigo Magalhães


 

Feromônio


Domingo, mal Joana acordou, eu vi a insônia de seus gestos
e maiores interjeições – é difícil esconder a cara de porre.
Espetou-me o cambaleio com argumentos e farelos de antiga
broa, inda cuspindo-me a fração de água e dentifrício.


                    “Porra, por que todo homem é assim?”


Dizia, tinha um ódio marcado – vestida de mármore.
Um desejo de sangrar – expelir o vinagre,
que fluía nas frases e na fonética tóxica de seus gritos.
Proferiu áspera:


                    “Esta mania estúpida por jogo!”


Não satisfeita, exibia-se nos palavrões da melhor cartilha
e, como condimento a toda pungente lida,
varou a cortina o embrulho do pão e a tinta do gim.
Puto, pedi as findas contas e a melhor bermuda.


                   “Para cá, eu não volto ! Levo o canário e o microondas;
                   a máscara grega – corroído o fio de fantasia;
                   o último tom da Marselhesa – já exposto teu esboço de
                   [revolução.”


Lívida, mirou sem muito critério.
De seus olhos mornos, ralos incertos,
despida a miúda lágrima, lenta, colhendo cascalhos
nas poças do sebo, dos afluentes nos lábios.
Ficou a lembrança do olfato buscando o feromônio da roupa.
As mandíbulas de saúva gemendo os ruídos do sexo
espontâneo, aninhando nos jornais entreabertos;
o gole do magma escoando no epicentro do corpo.


Então tocaram-me os dedos (mudara o esmalte).
Pedra e feminina, catapultada em meus braços,
trêmula, adentrada num rasgo de lança e volúpia, sussurrava.


                  “Não pára,
                  não pára,
                  não pára...”

 

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Herbert Draper (British, 1864-1920), A water baby

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João Scantimburgo

 

 

 

 

28/03/2005