Carlos Chagas, Tribuna 12/13 /14 Jul
Fantásticas lições de mestre (1)
BRASÍLIA - Os bons livros são como as bebidas finas. É
preciso que depois de consumidas estas, e lidos aqueles, decorra
certo tempo para a certeza de terem beneficiado o nosso
espírito. Pelo paladar, as bebidas. Pelas lições, os livros. Faz
dois meses do lançamento do "Código da vida", de mestre Saulo
Ramos. Uma obra fantástica, não pela modéstia do autor, que
apenas classifica assim o litígio judicial de uma família da
qual foi patrono. Está errado, porque fantásticos são todos os
capítulos, entremeados com a descrição do processo que serve de
fio condutor de suas narrativas.
Um retrato da política nacional, com ênfase para o período
que vai dos governos militares aos tempos atuais. Duro como
pedra, amargo como vinagre, profundo como uma perfuradora de
petróleo em alto mar. Pleno de análises capazes de destruir
pessoas e personalidades, tanto quanto de exaltar outras pelas
observações opostas. Acima de tudo, um relato dos anos de chumbo
e das décadas de esperança, mesclados de ironia só encontrada
nas obras de Voltaire.
O "Código da vida" terá despertado iras e idiossincrasias. Ao
contrário de outras biografias, não procura o auto-elogio nem se
preocupa em ficar bem como a Humanidade. A serra elétrica
derruba jequitibás e caules moles pela contundência das
observações postas. Vamos, assim, ao conteúdo, para aguçar a
curiosidade de uns, despertar a surpresa de outros e a irritação
de terceiros.
Um Gervásio chamado Saulo
Um personagem freqüenta as páginas, do começo ao fim,
apresentado como amigo fiel que opina sobre tudo e sobre todos.
Trata-se do "Gervásio", meio filósofo, meio paranormal, que não
existe se o formos procurar na lista telefônica ou no cemitério.
"Gervásio" parece o próprio Saulo, mais do que o conjunto de
seus múltiplos companheiros em permanentes e candentes
diagnósticos sobre o Brasil e seus governantes.
Certas observações do "amigo fiel", percebe-se, são do
próprio autor. Outras, de outros, acabam por ele absorvidas,
numa simbiose de emoções incontidas. Não deixa de ser singular a
entrada no palco do "Gervásio", quando Saulo era quase um
menino, e sua permanência através das décadas com o hoje
advogado setentão. Se existisse, "Gervásio" teria no mínimo uns
150 anos.
O "Gervásio-Saulo" chega aos dias atuais, defendendo o
esforço do governo brasileiro em difundir o etanol, mas não
poupa as duas figuras principais, afirmando que tanto Bush
quanto Lula "entendem bastante de álcool"... O americano, em
outra passagem, é mostrado como "o mal em putrefação". Hugo Chávez vê-se rotulado de imbecil. E Fidel Castro, nas linhas e
entrelinhas, surge como tão cheio de ciúmes de Che Guevara ao
ponto de ter revelado à CIA e aos bolivianos o local onde o
amigo se encontrava, na selva, para ser preso e assassinado.
Em matéria de traições, "Gervásio" investe até sobre Luís
Carlos Prestes, que em troca de caminho livre para fugir dos
horrores de 1964 teria combinado com o Dops paulista deixar para
trás seus cadernos com endereço de companheiros comunistas. E
chegou a voltar ao aparelho que a polícia visitaria depois, para
pegar o casacão da mulher, esquecida do longo exílio que
enfrentariam na União Soviética. Ninguém precisa acreditar no
"Gervásio", mas suas revelações, se verdadeiras, são de
estarrecer, ou seja, Saulo Ramos não as afasta. Ao contrário, as
endossa, ao divulgá-las.
O sociólogo no pelourinho
Uma das figuras mais fulminadas no "Código da vida" é o
ex-presidente Fernando Henrique, que "Gervásio" acusa de ter
plantado as sementes das impunidades colhidas e multiplicadas
pelo MST: "(...) Pediu expressamente que os brasileiros
esquecessem tudo o que havia escrito, e sua palavra passou a
ser, para sempre, um risco na água. Hoje está por aí, falando
mal do governo, querendo voltar ao poder, confessando desejá-lo
para comandar o atraso. No caso da freira Dorothy, parece que
ele calou o bico.
Por quê? Porque ele, indiretamente, permitiu as
circunstâncias para matarem a freira. (...) Um dos maiores males
que o Fernando Henrique fez ao Brasil foi ter criado a reeleição
e eleito o Lula, que se reelegeu graças ao grande sociólogo. Ele
foi o maior eleitor desse espetáculo de vacuidade".
Em outro capítulo, Fernando Henrique é chamado de culto,
inteligente, mas esperto, "que tapeia todo mundo e queria uma
Constituição (em 1988) cozida no caldo das espertezas", porque
na Constituinte tentou o golpe parlamentarista, mas, depois de
eleito duas vezes presidente, jamais tocou no assunto. FHC
também é acusado de montar um grupo de espionagem sobre Roseana
Sarney, responsável pela explosão da candidatura presidencial da
então governadora do Maranhão.
Mais ainda, Fernando Henrique convenceu José Serra, "homem
bom, quase ingênuo", a aceitar a maquinação, ainda que o plano
fosse também contra o próprio Serra, já que o sociólogo não
queria nenhum companheiro para sucedê-lo e já havia queimado
Paulo Renato e Tasso Jereissati. Pretendia ver Lula eleito e
voltar em 2006... A "maquinação" é plena de detalhes. Do grupo
para deletar Roseana faziam parte agentes da Abin, delegados,
procuradores federais, técnicos em inteligência política e
especialistas com curso na CIA.
Aluísio Nunes Ferreira, então ministro da Justiça, mandou
instalar em São Luís uma sofisticada e poderosa estação de
escuta, a pretexto de combater o narcotráfico, ainda que a
capital do Maranhão nunca estivesse na rota da cocaína. O autor
escreve que FHC deu início ao mais cínico plano de degradação da
moralidade política, a serviço da ambição de um homem fascinado
pelo poder e inconformado em ter que deixá-lo.
13 Jul
Fantásticas lições de mestre (2)
BRASÍLIA - O "Código da vida", de Saulo Ramos, é cheio
de revelações. Uma delas de que, já eleito Fernando Collor, o
então presidente Sarney reuniu alguns ministros, como ele, Saulo
Ramos, da Justiça, Mailson da Nóbrega, da Fazenda, João Batista
Abreu, do Planejamento, Leônidas Pires Gonçalves, do Exército,
Otávio Moreira Lima, da Aeronáutica, Henrique Sabóia, da
Marinha, Ronaldo Costa Couto, do Gabinete Civil, e Ivan de Souza
Mendes, do SNI.
Ninguém sabia o objetivo da reunião, o diagnóstico sombrio da
área econômica, no sentido de que a inflação iria disparar em
janeiro, e por isso Maílson da Nóbrega recomendava que Sarney
renunciasse imediatamente. O ministro da Fazenda teve o apoio do
ministro do Planejamento, que, para o autor, "era um pouco
delicado demais, tinha uns trejeitos de mãos e falava afetado".
Saulo conta ter ficado irritadíssimo e indagou se o dr. Ulysses
estava de acordo, pois a ele caberia substituir Sarney.
João Batista respondeu que estava e o ministro da Justiça
explodiu, dizendo que os ministros da Fazenda e do Planejamento
estavam propondo uma traição. Mailson retrucou dizendo não
aceitar a expressão, mas o ministro do Exército, Leônidas Pires
Gonçalves, deu um murro na mesa e exclamou: "Vai aceitar, sim
senhor!" A hipótese foi logo afastada, a reunião terminou,
Sarney completou o mandato sem renunciar e o relato do episódio
é encerrado com um estranho adendo: "O general Ivan de Souza
Mendes votou com os ministros da área econômica...".
Collor pagaria dez milhões
Outra revelação do livro é que, tendo voltado para sua banca
de advogado em São Paulo, depois do governo Sarney, estava uma
noite no aeroporto de Cumbica, embarcando para a Europa, quando
foi chamado pelos alto-falantes. Era o telefonema de um amigo,
pessoa muito ligada ao presidente Collor.
Sem meias palavras, ouviu que Collor mandava convidá-lo para
assumir outra vez o Ministério da Justiça. Já andava alta a
crise gerada pelas acusações a PC Farias e o interlocutor foi
direto ao assunto: o presidente queria um ministro, mas, também,
um eficiente advogado que o livrasse do processo de impeachment
já iniciado. E estava oferecendo, junto com a nomeação, US$ 5
milhões!
Recusou, é claro, enfatizando que nem pelo dobro daquela
quantia aceitaria. Do outro lado do telefone, ouviu que não
estava autorizado a tanto, mas que daria notícias. Em Paris, na
embaixada brasileira, com o embaixador Leite Barbosa e o
ex-presidente José Sarney, foi contatado outra vez, com a
notícia de que os US$ 10 milhões estavam aceitos. O embaixador
lembrou que aquela quantia o deixaria sem problemas até o fim da
vida, mas Sarney foi veemente na necessidade da recusa, de resto
já decidida desde a primeira vez.
Por ironia, quando o Senado insistiu em processar Collor, que
já tinha renunciado, Saulo Ramos foi contratado como advogado
dos senadores, para levar o processo até o fim, o que acabou
acontecendo com a suspensão dos direitos políticos do
ex-presidente por oito anos.
Pau no Lula
O "Código da vida" não poupa o presidente Lula. Saulo Ramos
começa pegando leve, mas vai aumentando o diapasão, depois de
escrever que o presidente conseguiu imensa popularidade com o
Bolsa-Família e com a política financeira, mas passou a ser o
pai dos pobres e a mãe dos ricos. Acabou com Fernando Henrique,
o "sátrapa de Higienópolis", e seu plano quixotesco de voltar ao
poder, "uma das boas obras do Lula".
Lembra que na campanha eleitoral de 2006, desesperado, o
ex-presidente e ex-sociólogo promulgou um manifesto contra o seu
próprio partido e ousou criticar a desonestidade dos outros,
inclusive a de Lula. "O gambá falando da raposa em defesa do
galinheiro". Para as mais veementes críticas ao presidente da
República, o autor vale-se outra vez do amigo fiel, o
"Gervásio", que reaparece inconformado com as imagens de um
diretor dos Correios recebendo propina em nome do PTB:
"(...) Aquela cena, transmitida pela TV, deu origem a um dos
maiores escândalos da história do Brasil em matéria de
corrupção, bandalheira, suborno de deputados, negociatas
denunciadas pelo então deputado Roberto Jefferson. Quem diria?
Justo o governo Lula, que pregava a ética, `não roubo e não
deixo roubar', acabou trocando os valores morais por `valérios'
imorais. (...) Não pretendo chamar ninguém de burro ou de
analfabeto. Aliás, nessas histórias, ninguém comeu capim. Lula é
inteligente. Iletrado, sem cultura, mas inteligente e muito
esperto. Ele nunca sabe de nada. (...)
Estou falando do governo Lula e da imoralidade que nele se
instalou com a distribuição de cargos nas empresas estatais, de
contratos de obras, de publicidade, de superfaturamentos, de
Valério distribuindo dinheiro para deputados e partidos
políticos, de depósito no exterior de milhões de dólares na
conta do publicitário de Lula, Duda Mendonça. Comércio descarado
de compra de consciências para assegurar votações no Congresso.
(...) Sabia (Lula) de tudo ou quase tudo. Em Paris, ele concedeu
entrevista dizendo que o caixa dois é costumeiro nos partidos
políticos. Deu a entender que não reprovava. O ex-ministro da
Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse que caixa dois é coisa de
bandido. Logo, o presidente aprova coisa de bandido."
O trator passa, também, sobre a administração:
"Com o Bolsa-Família, está resolvido. Não há atividade
produtiva, que geraria empregos. Não há infra-estrutura, que
geraria atividade produtiva, salvo a indústria da tapioca. Com a
família no bolso, nem precisa dessas coisas. Muitos não vão
querer trabalhar para não serem privados da mensalidade
embolsada e, no futuro, perder o emprego que por acaso surgir."
É citada a jornalista Maria Sylvia Carvalho Frenco, para quem
"Lula escolheu a via tortuosa da esperteza, minando as
instituições, atingindo o calcanhar de adversários e aliados: o
dinheiro, num mundo de mercado e escassez, foi seu astucioso
aparato destrutivo; desmoralizou a soberania e a representação
do povo, catalizou a desonra de pessoas, admitiu a corrupção de
consciências, relegou velhos aliados ao haraquiri para
salvar-se, expandiu a desigualdade, pôs à venda, por pratos de
lentilhas, a altivez e a dignidade dos pobres."
Fantásticas lições de mestre (final)
BRASÍLIA - É bom parar, neste terceiro artigo de
comentários sobre o recente livro de Saulo Ramos, o "Código da
vida". O risco seria de revelar ao leitor mais do que os
fascinantes, poucos e simples detalhes aqui apresentados, de uma
obra destinada a gerar uma das maiores polêmicas dos tempos
atuais.
Porque o autor, sem papas na língua, nem no computador, conta
episódios por ele testemunhados que fariam corar um frade de
pedra. Isso se ainda existissem frades de pedra entre nós.
Julgamentos de valor são feitos a respeito de pessoas e de
situações, transformando o célebre advogado em férreo promotor
público, mas sem perder a ironia e, no fundo, a esperança de
sair vitorioso em mais uma causa, desta vez, a causa da
moralidade e da ética. Porque denunciar bandalheiras,
mesquinharias, escândalos e espertezas consiste no primeiro
passo para vê-los corrigidos, senão punidos.
A metralhadora giratória de Saulo Ramos parece daquelas que
não têm fim, ou melhor, são automaticamente remuniciadas assim
que descarregadas. E com humor. Montes de outros personagens não
referidos nos dois primeiros artigos aqui apresentados também
sofrem. Numa referência simples e incompleta:
Bernardo Cabral (relator da Assembléia Nacional Constituinte
e senador pelo Amazonas) - "Jamais leu um livro de Direito
Constitucional, levava pão fresco todas as manhãs na minha casa,
insinuando-se para o café da manhã e para receber lições. Não
entendia nada do que deveria fazer. Não sabia o que era Poder
Constituinte Derivado. Não tinha alfabetização suficiente para
distinguir uma redação má de uma redação boa".
Mailson da Nóbrega (ministro da Fazenda do governo Sarney) -
"Deveria usar babador".
Ivan de Souza Mendes (chefe do SNI no governo Sarney) -
"Desistiu de brigar quando respondeu que tratava o então
presidente da República de `Vossa Excelência' e o ministro da
Justiça tratava de `Zé'..."
José Dirceu (ex-chefe da Casa Civil de Lula) - "Quer a
anistia e eleger-se presidente da República".
Celso Amorim (ministro de Relações Exteriores do governo Lula) -
"Um estoque de ingenuidades".
Fernando Collor (ex-presidente da República e senador por
Alagoas) - "Consegue falar sem mexer os músculos da face,
enrijecidos por óleo de peroba".
José Celso de Mello (ministro do Supremo Tribunal Federal) -
"Ingrato, votou contra o presidente que o nomeara (Sarney) e, no
nosso último telefonema, eu lhe disse, antes de desligar: `Você
é um juiz de merda!'"
Celso Daniel
Uma catilinária especial do livro de Saulo Ramos, ainda sob a
aparência de "Gervásio", refere-se ao levantamento pormenorizado
das circunstâncias e dos personagens envolvidos no assassinato
do prefeito Celso Daniel. São apresentados os nomes de nove
testemunhas também assassinadas, numa espécie de queima de
arquivo para esconder a corrupção que cercava a administração
petista de Santo André, contra a qual Celso Daniel se teria
insurgido.
Até o apagão aéreo
O "Código da vida" é tão atual que chega ao caos nos
aeroportos, abordando o apagão aéreo: "O presidente Lula é
criticado por dizer uma coisa na sexta-feira e no sábado, para
desdizer tudo na segunda-feira. O primeiro de abril caiu no
domingo..."
As últimas referências ao governo Lula são duras: "(...)
Está, realmente, difícil acreditar que teremos, a curto prazo,
dias melhores na ética e na moralidade. (...) Não me importam as
últimas eleições, as reeleições de Lula e seus mensaleiros. Nem
sequer fui votar. Tenho mais de 70 anos. A Constituição me poupa
o dilema de falta de escolha. Sei apenas que a ausência de
decência, a ausência de hombridade e de vergonha passaram a
conviver no dia-a-dia do meu país..."
Para não dizer que não falei de erros
Para concluir e não continuar tomando o tempo do leitor, bem
mais interessado no livro, vale alinhar uns poucos erros
cometidos por Saulo Ramos nas 467 páginas do "Código da vida":
O ministro de Relações Exteriores do governo Garrastazu
Médici não foi Vasco Leitão da Cunha, mas Mário Gibson Barbosa.
Leitão foi o primeiro chanceler do governo Castello Branco.
O ministro Luís Octávio Galloti, José Aparecido e Carlos
Castello Branco não moravam, em Brasília, no "Hotel do Lago",
mas no Brasília Palace Hotel. Os jovens não saíram às ruas
pintados de verde e amarelo, para pedir o impeachment de
Fernando Collor, mas pintados de preto. Os governos militares
não implantaram a rodovia Belém-Brasília. Foi Juscelino
Kubitschek.
O comandante Júlio de Sá Bierrembach não prendia todo mundo
no navio-prisão "Raul Soares", que comandou. Pelo contrário, o
depoimento dos presos era de que procurava tratá-los com
respeito. Mais tarde, promovido a almirante, foi ministro do
Superior Tribunal Militar e responsável pela reabertura do
processo do Riocentro.