Alessandro Allori, 1535-1607, Vênus e Cupido

 

 

 

 

 

 

 

Luís Antonio Cajazeira Ramos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Francisco Carvalho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jorge Tufic

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Junot Silveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ivan, 2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lau Siqueira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Antônio Houaiss

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Luiz Bello

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Francisco Brennand

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Paulo bomfim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Aníbal Beça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Maria Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rodrigo Marques, ago/2003

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Erorci Santana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Elaine Pauvolid

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

José Alcides Pinto

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thiago de Mello

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Márcia Carvalho entrevista Vicente Franz Cecim


 

Vicente Franz Cecim: O natural é sobrenatural

 

Tudo vem como sombra do Um e para o Um volta como sombra. Aqui, na breve Residência, a vida, imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos, as sombras estão no Vários, e se tornam coisas

Vicente Franz Cecim/

K: O escuro da semente, livro inédito de Andara

 

O escritor paraense Vicente Franz Cecim é um sucesso de crítica, no Brasil e em Portugal, embora nem tanto de público, mas parece não dar a menor importância para esse fato: 

 

Não escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida. Os especialistas atribuem isso às características inovadoras da sua literatura. Segundo já foi dito, no caldeirão de uma escrita em absoluta liberdade, a literatura como alquimia, em sua obra o autor abole as fronteiras entre a prosa e a poesia, funde o natural e o sobrenatural e incorpora o profano ao sagrado, para se lançar numa intensa busca metafísica do sentido do ser e da vida. Cecim, por sua vez, diz que os livros visíveis de Andara, que escreve em livros, ainda podem ser lidos como literatura fantástica. Mas ao irem se reunindo em Viagem a Andara, o livro invisível - que é o título geral de toda a sua obra - o não-livro que o autor não escreve e que vai se formando à medida que os livros individuais de Andara vão sendo escritos, o resultado final, segundo ele, já é literatura fantasma. Nesta entrevista, Cecim fala do seu novo livro recém-lançado em Portugal, Ò Serdespanto (Íman Edições, Lisboa, 2001), que a crítica portuguesa apontou como o segundo melhor livro do ano, em consulta feita pelo jornal Público, da Amazônia transfigurada em Andara, dos limites da literatura e do advento de uma literatura fantasma. 

 

Já não faço literatura, faço Escritura, ele diz. E afirma: - O natural é sobrenatural. 

 

O que é o livro Ó Serdespanto, ou talvez fosse mais apropriado perguntar: o que é um ser de espanto?

 

Cecim: Serdespanto sou eu, és tu, é quem está lendo esta entrevista. Seres de espanto somos todos nós. Não é difícil ser um serdespanto, para isso basta nascer, surgir na vida como ser humano. Um trecho do livro nos diz assim: Em Andara, é quando os homens esperam um anoitecer mais calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras e asas de areia vêm nos açoitar. Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto. Passando, pois, aquele homem a se chamar assim. Serdespanto. Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer Em Andara, pois. Mais um tendo vindo. De rastros, humano.

 

Vamos falar um pouco mais a respeito de Ó Serdespanto: ser de espanto. A expressão Ó, por si só, já demonstra sentimento de espanto.

 

Cecim: O livro Ó Serdespanto já acabou de se falar, por si próprio, nesta entrevista. E um livro não sabe falar outra linguagem além daquela em que foi escrito, é preferível não falarmos mais por ele.

 

E Andara, o que é Andara?

 

Cecim: Andara é uma região imaginária, toda ela onírica, que eu criei, ou que quis se criar através de mim, de qualquer maneira: que eu sonhei, mas sua matéria prima é a Amazônia, a Floresta Sagrada onde eu nasci, com suas águas, seus peixes, suas aves, seus insetos, seus animais, suas árvores. Só que em Andara tudo pode acontecer e ainda mais do que acontece na Amazônica, que em si já é uma região naturalmente encantada: árvores podem falar com os homens, aves que caem do céu se transformam instantaneamente em terra, retornando ao pó, o vento vem nos contar histórias, tu podes te deparar com uma mulher alada como Caminá, do segundo livro visível de Andara, Os animais da terra, há muitos outros seres alados em Andara, talvez anjos ou sejam demônios, que descem do céu com suas asas negras, com suas asas brancas para conviver com os seres humanos. Também é grande a presença de serpentes em Andara. Pois o que está no Alto é como o que está Embaixo, como disse Hermes Trimegisto. Andara é lugar de sonhar, em Andara tudo é possível, Andara é a imaginação em liberdade, Andara quer abolir a razão do ato de escrever. Andara é quase um manifesto prático contra a literatura regionalista, mimética, que geralmente se limitava a copiar, e copiar mal, a realidade amazônica. Mas a realidade é oculta em si mesmo: se disfarça em sua epiderme. Fazer literatura assim é ampliar o ilusório. Heráclito, que entendia dessa Obscuridade, já nós advertiu há quase 25 séculos atrás: - Vida ama ocultar-se. Andara quis romper, desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de 1979, com essa tradição que quer nos reduzir a criadores de uma literatura superficial, anedótica, supérflua, com raras e parciais exceções. Quais? Só cito nomes quando chegar o Dia do Juízo Final, então os bons serão separados dos maus, segundo as Escrituras. Por enquanto, digo apenas isso. Escrever, sonhar os livros de Andara foi uma opção muito solitária, e do que havia sido escrito aqui na Amazônia, pelos escritores cultos, chamemos assim, eu não me nutri de quase nada. Meu único alimento foi a literatura oral, as lendas, os mitos, que aprendi desde criança a admirar através da minha mãe, Yara Cecim, hoje também escritora, que nos contava, não os contos dos irmãos Grimm, de Perrault, que tem coisas geniais, de Andersen, que é todo ele um gênio, mas umas histórias delirantes da região, para nos fazer dormir, a mim e aos meus irmãos. O sono vinha, mas como um portal de acesso a todo esse mundo feérico. Não sabíamos mais o que era natural e o que era sobrenatural.

 

Ó Serdespanto faz parte de um longo projeto literário, que é Viagem a Andara, o livro invisível. Livro que contém outros livros, que são histórias imaginárias fisgadas de uma memória guardada da infância, vivida na Amazônia. Andara é uma história infinita?

 

Cecim: Não se pode dizer que essa Andara que se criou através de mim é a Amazônia, não é a verdade. E dizer que a Amazônia é Andara, também não é a verdade. Não há uma verdade única nesse caso. Onde está a verdade, então? Se tu olhares com olhos de alquimista, que são os únicos que interessam, vais perceber que o que se dá é uma transmutação: a Amazônia é a matéria prima, Andara é o resultado. O que sobra, fica de fora: é o que os alquimistas chamavam resídua. A transmutação da Amazônia em Andara deixou muita resídua, material imprestável para literatura. E como em toda a Alquimia, e a alquimia da criação literária não é diferente, para entender o que acontece é preciso compreender estas palavras de Raimundo Lúlio: Deves saber, meu filho, que o curso da natureza é transformado, para que tu (...) possas ver, sem grande agitação, os espíritos que se evolam (...) condensados no ar, sob a forma de diversas criaturas ou seres monstruosos que vagueiam de um lado para o outro como nuvens. São palavras misteriosas, mas não há outras melhores para se iniciar na transfiguração da vida pela arte. É por isso que, como eu disse: Andara é lugar de sonhar. E eu digo: A viagem a Andara não tem fim. Porque depois de mim, outros, que vierem, poderão dar continuidade à viagem a Andara e habitar seu território, com outros livros, outros sonhos, outros seres de espanto.

 

Os críticos têm sido generosos em elogios aos livros de Andara. Leo Gilson Ribeiro, em entrevista a O Estado de São Paulo, após o lançamento de Viagem a Andara, o livro invisível (Iluminuras, 1988) que lhe valeu o Grande Prêmio da Crítica da APCA, disse: "Quem escreve como Vicente Cecim hoje em dia na França, na Inglaterra. Ele tem um talento desmesurado." E por ocasião do lançamento de Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, 1994), completou: "A fulminante trajetória literária de Cecim, que se iniciara com o belo, poético e enigmático poema em prosa Viagem a Andara, o livro invisível, prossegue com um livro, se possível, mais rico e fascinante ainda: Silencioso como o Paraíso. Um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos, imbuído de poesia, encanto e o que Guimarães Rosa chamava de ‘peregrinação álmica’ (da alma)." Não foi a primeira vez que os críticos evocaram Guimarães Rosa ao falarem da sua obra.

 

Cecim: Muito me alegra a sua companhia, mas é evidente que se há ecos dele em Andara, são desprezíveis. Guimarães Rosa é infinitamente superior a tudo o que foi escrito em ficção na língua portuguesa, incluindo Clarice Lispector, a enfeitiçadora de palavras, e o Machado de Assis daquele inacreditável, lunar, Memorial de Aires, escrito, já no fim da vida, com uma serenidade encantatória assombrosa, como se diz que o arqui-anjo Bach compunha as suas últimas obras.

 

E ao que você atribui essas aproximações que fazem da sua obra com Guimarães Rosa? E isso em vários pontos do país. Por exemplo, o crítico gaúcho Antônio Hohlfeldt, no Correio do Povo, escreveu: "Depois de Guimarães Rosa, o paraense Vicente Cecim é o responsável por um dos mergulhos mais fantásticos e essenciais que a literatura brasileira já realizou sobre o sentido do homem." E Oscar D’Ambrosio, no Jornal de Tarde, de São Paulo, não deixou por menos: "Ler Viagem a Andara é penetrar em narrativas poéticas subversivas e míticas que trazem à tona, sempre renovado, o aforismo roseano: Viver é perigoso."

 

Cecim: Talvez seja é porque são literaturas de invenção de linguagem, ou porque minha escritura tem a mesma má intenção da de Guimarães Rosa: abolir as fronteiras artificialmente demarcadas entre a prosa e a poesia. Mas, talvez, principalmente, porque Rosa fez com o Sertão a mesma coisa que eu estou tentando fazer com a Amazônia: transmudar, ele, o Sertão, eu, a Amazônia, no que eu chamo de regiões metáforas da vida.

 

Você já anunciava esse seu projeto em Flagrados em delito contra a noite, o Manifesto Curau que lançou em 1983. Nele, você dizia: Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar. Falo do Sertão de João Guimarães Rosa. (...) Em sua geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, mais ainda, soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região.

 

Cecim: Logo o Flagrados em delito contra a noite/Manifesto Curau vai completar 20 anos de lançado (1983-2003), mas a sua Palavra principal, aquela que faz uma auto-acusação grave, pois nos acusa de sonharmos pouco ainda que vivamos numa região em si mesma naturalmente onírica, pouco foi ouvida. Praticamente quase nada mudou desde então, nesse sentido. Assim como a literatura de Andara, que logo chegará aos seus 25 anos de invenção (1979-2004), semeou muito pouco do que pretendia com sua Presença, mas aqui provavelmente a culpa é minha: eu apenas consigo fazer um esboço do que poderia ser a invenção de Andara. Por isso, aguardo pelos que virão, que sejam melhores dotados. Poeticamente, politicamente, insisto no que foi dito no Manifesto Curau: - Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.

 

Você se empenha nisso em sua literatura, pelo que se vê nos seus livros.

Cecim: Mas não é só na literatura, também na vida, que mesmo oculta em si mesma sempre nos permite entrever que é sempre mais secreta e mais bela que a literatura: a Literatura quer a amplidão, a ampliação e provoca estranhos milagres nas fronteiras das impossibilidades da Vida, mas é precisamente nela, vida, vivendo, nos vivendo em nós, e certamente também escrevendo, que se corre o risco de obter a Revelação essencial: a de que o natural é sobrenatural e sua versão refletida num espelho: a de que o sobrenatural é natural. Essa consciência é o alimento, o Único, que devesse nos nutrir enquanto seres e enquanto criadores, e o que dá sentido à literatura.

 

A crítica parece perceber bem isso nos seus livros. E já há algum tempo. Mais uma vez aqui citado, Leo Gilson Ribeiro, por exemplo, escreveu uma página no Jornal da Tarde de São Paulo após o lançamento das suas primeiras obras, intitulada O universo de Vicente Cecim criado por inspiradas metáforas e alegorias, em que dizia: "Há um real submerso no homem que a literatura linear, de mera denúncia da disparidade social, não alcança e quase como o grande visionário, o poeta Novalis, Vicente Cecim também confirmaria que je poetischer, umso wahrer: quanto mais poético, mais verdadeiro."

 

Cecim: Essa comparação com Novalis, um poeta sublime, me deixou atordoado por alguém tempo, sem conseguir escrever nada. Foi um exagero do Leo Gilson Ribeiro. Mas enquanto declaração de princípios, sim: é isso mesmo o que busco e no que creio.

 

Mas não é só ele. A revista Vogue também disse: "O lírico, o fantástico, a imaginação em sua total liberdade: a linguagem de Cecim é poética e única." E Benedito Nunes, escrevendo sobre o seu livro Os animais da terra, disse: "Uma invenção poética. Que melhor denominação para este texto libertário, insurrecto?"

 

Cecim: Sim, mas o preço de ter feito essa opção por uma linguagem que admite o poético e transgride e dilacera a camisa de força da prosa na ficção é bem grande.

 

E a alegria não deve ser menor. Por exemplo, o que você sente quando lê coisas como a que escreveu sobre a sua obra Carlos Emílio Correa Lima no Jornal do Brasil? Ele afirma: "É provável que seja a melhor literatura fluindo no Brasil." E há comparações entre você e autores que são verdadeiros clássicos modernos de várias línguas, como Nietzsche e Láutreamont, que deixariam qualquer escritor feliz, como a que faz Moacir Amâncio em O Estado de São Paulo: "Lembra Zaratustra e Maldoror e se esses livros são poesia, a prosa de Cecim não seria outra coisa. O fascínio sobre o leitor é permanente."

 

Cecim: O que não impede que curiosos desastres aconteçam. Por exemplo, o livro Ó Serdespanto, editado pela Íman, de Portugal, havia sido oferecido antes ao Samuel Leon, da Iluminuras, de São Paulo, que já havia editado as minhas duas reuniões de livros de Andara anteriores: Viagem a Andara, o livro invisível e Silencioso como o Paraíso. Samuel é um editor criterioso, que lê o que edita, eu sei. Mas às vezes não basta a vontade do editor: existe uma economia, umas leis de mercado editorial, uns vícios e umas estruturas mortas arqueológicas que se erguem entre o livro e o leitor. Samuel me falou algo assim, tentando me explicar o fenômeno: Estás escrevendo cada vez melhor, Vicente, mas nós temos um problema: os leitores brasileiros têm preferências muito rígidas, ou gostam de prosa ou gostam de poesia, e como nos teus livros estás cada vez mais abolindo essas distinções, eles não sabem do que se trata, acham estranho. Creio que Samuel estava certo, afinal, pelos anos de convivência, desde 88, já havíamos nos torna bons amigos. Entendi a mensagem. Foi como se ele estivesse me dizendo que os meus leitores ainda estão por nascer e me pedisse paciência. A paciência de ser póstumo. O livro finalmente saiu, mas saiu em outras circunstâncias culturais: Portugal não é o Brasil, que é grande e lê pequeno, Portugal é pequeno mas lê grande: lê esse abismo obscuro cintilante que é Fernando Pessoa, lê o poeta complexo que é Herberto Helder, lê as arriscadas aventuras de linguagem de Maria Gabriela Llansol e já é a Europa, aquela Europa a quem foi oferecida a libertação da Razão Maníaca pelo Dadá, pelo Surrealismo, onde a ficção que se lê é Kafka, Beckett, Proust, Joyce, o Musil incalculável de O homem sem qualidades, o Hermann Broch sonâmbulo de A morte de Virgílio, esse outro sonâmbulo que é o Bruno Schulz de Sanatório sob o signo da clepsidra e de As lojas de canela, o Julien Gracq supremo do alegórico O litoral das Sirtes, belo como um Kafka paralelo a Kafka, o Incomparável, o Dino Buzati também kafkiano a seu modo de O deserto do tártaros, o iconoclasta maravilhoso que é Withold Gombrowicz, o autor de Trans-Atlântico e de Bakakai, o Breton de Nadja, romance, poema, invocação xamânica e nada disso porque se trata da própria vida como realidade e sonho, juntos, captados para dentro das páginas de um livro, e sobre tudo isso seguem pairando as asas que jamais pousam para um instante sequer de repouso de Lautréamont, agitando aqueles ares com seu Os cantos de Maldoror - para citar só alguns dos mais recentes, dos mais próximos de nós. Porque se fôssemos mais longe, até Jonathan Swift, até Rabelais, até Sade, até John Bunyan, até Dante, onde iríamos parar?

 

Essas dificuldades levaram à edição do livro em Portugal e não no Brasil?

 

Cecim: As dificuldades aumentam na medida em que não só os livros de Andara, mas também os de outros autores brasileiros que não pactuam com as concessões do mercado editorial aumentam suas dificuldades para o leitor que não se doa suficientemente à literatura, talvez porque não ame suficientemente a literatura, talvez porque não ame suficientemente a si próprio, talvez porque não ame suficientemente a vida, não sei. Não é só viver que é muito perigoso, como disse Guimarães Rosa: escrever também é muito perigoso. Mas aqui, repara, temos um paradoxo: é preciso não esquecer que os livros de Andara foram publicados primeiro no Brasil, pela Iluminuras, com expressiva receptividade da crítica, e só depois é que saíram em Portugal. Como se explica isso? Teria a literatura de Andara andado rápido demais, deixando os leitores brasileiros para trás?

Emparelhou o passo com os leitores portugueses? Leitores mais qualificados: editores mais qualificados: escritores mais qualificados: essa é a seqüência em que as coisas devessem se dar. Podendo ser também na ordem inversa. Sem terra para construir uma casa, sem casa para morar nela, onde colocar uma estante de livros? Nós precisamos sentir uma Grande Fome de tudo, fazermos jejum até não suportarmos mais a nossa fome de uma revolução que dê às pessoas acesso ao feijão e ao sonho, palavras que fazem lembrar o título de um livro hoje quase esquecido de Orígenes Lessa.

 

Bem, e aconteceu que Andara, com o lançamento lá do seu Ó Serdespanto, acabou por ter, também, uma entusiasmada acolhida da parte dos críticos de Portugal.

 

Cecim: Foi, aconteceu.

 

O mais surpreendente é ler de um crítico tão bem informado, como o filósofo Eduardo Prado Coelho, esta declaração: "Aluno de História da Cultura Medieval, cheguei à prova oral sem saber quem era Raimundo Lúlio. Nas semanas seguintes, este nome aparecia-me em todo o lado - uma verdadeira perseguição. E pode ser que suceda o mesmo com Vicente Franz Cecim. Conheço razoavelmente bem a literatura brasileira, tenho muitos amigos brasileiros que me mantêm informado, mas nunca me lembro de ter visto mencionado, ou lido uma linha, de (ou sobre) Vicente Franz Cecim. Até que António Cabrita resolve editar um livro intitulado "O Serdespanto". E o espantado sou eu. Uma extraordinária revelação! Leo Gilson Ribeiro fala-nos, referindo um Guimarães Rosa que obviamente está presente nestes textos, em "peregrinação álmica" (da palavra "alma"), e a expressão está certa para nos dizer a estranheza, a perturbação, os momentos de arrebatamento que nos podem vir destes textos inclassificáveis, que oscilam entre uma espécie de deliberada monotonia do ser e o sentido golpeante das cintilações verbais."A citação foi um pouco longa, mas necessária para situar os leitores no impacto da reação do crítico.

 

Cecim: Isso só prova a enorme distância cultural que mantemos de Portugal. Só superada pela que mantemos em relação aos outros países da América Latina. Sabemos quem foi Borges, o argentino, pelo menos, mas observa a expressão remota, buscando longe um saber desconhecido, que aparece no rosto de um leitor brasileiro quando se pergunta a ele: quem foi César Vallejo? E Vallejo é simplesmente o maior poeta deste nosso subcontinente, em todos os tempos. Mas, peruano, coitado. E onde fica o Peru? Alguém sabe?

 

O problema, então, não está localizado unicamente na Escritura que você pratica nos livros de Andara, nem no próprio universo inusitado que seus livros visíveis de Andara estão criando. Existem graves barreiras culturais.

 

Cecim: Sim, muito graves. O surgimento de Andara, como território verbal onírico que escava o solo da realidade, para dela emergir, já que falamos de Borges, é como aquela hipótese que ele propõe sobre o Castelo de Kubla Kan: é algo que está tentando nascer, existir na vida, e já fez suas primeiras tentativas. A primeira, quando Kubla Kan sonhou o castelo em pedras e iniciou sua construção, mas foi impedido de concluir a construção e do castelo só restaram ruínas. A segunda, quando Coleridge sonhou o castelo de Kubla Kan em palavras, mas ao despertar, interrompeu o poema sobre o castelo para atender seu alfaiate, e foi punido, por isso, com o esquecendo do restante do poema, que também ficou inconcluso. Borges então se pergunta, nos pergunta: qual será a próxima forma que assumirá isso que se apresenta como o Castelo de Kubla Kan quando tentar mais uma vez irromper na vida? Talvez por ser também uma hipótese extraviada, um Lugar de Todos os Lugares, ou de Lugar Algum, Andara atravesse as águas do Atlântico sem naufragar.

 

Sim, mas as ondas que faz são bastante agitadas, quando chegam na praia. A crítica Regina Louro, que citou Ó serdespanto como o melhor lançamento do ano, em Portugal, escreveu no jornal Público: É um livro total, na sua fusão de poesia, prosa, viagem utópica, divagação onírica, pensamento filosófico, reinvenção da palavra e reinvenção do mundo. Uma obra assim pode transformar a vida de quem a lê, se quem a ler estiver disposto a deixar-se transformar; mas, mesmo sem correr o risco dessa entrega, é impossível permanecer indiferente ao poder mágico da palavra de Cecim, palavra livre e vagabunda que cria uma cosmogonia própria, a um tempo estranha e familiar, reconhecível. Chamar-lhe inclassificável é, talvez, cobardia. Há um nome para esta espécie - rara - de acontecimentos, mas é um nome ousado e, nestes tempos de suspeita, pronto a ser banido: estamos perante um livro sagrado. Não importa quem o escreveu: foi escrito por um visionário.

 

Cecim: Foi uma leitura vertiginosamente generosa.

 

E o que você diria do que escreveu o crítico, também português, Manoel de Freitas, no jornal Expresso? Cito alguns trechos mais expressivos: "Há livros assim, que dispensariam - num mundo ideal - o lúgubre ofício da crítica. Livros que começam por dizer que «alguém vive, alguém escreve// Esse é o ponto de partida, o ponto de chegada». Alarmada, a nossa competência literária pode, quando muito, balbuciar o nome de Mallarmé e o seu maiúsculo projecto: «O Livro é a vida? Não, o Livro não é a vida. É a outra vida» (pág. 9). Mas permaneceremos incapazes de verbalizar o inconfundível fulgor desta obra de Vicente Franz Cecim. (...) Houve já quem falasse em Amazónias, transfigurações natais de um paraense, quando uma voz destas excede qualquer regionalismo básico. Também Herberto não é a ilha em forma de cão sentado ou Pessoa a Rua dos Douradores. O cosmos, esse, fica-lhes demasiado bem. (...) São raros os livros que, como "Ó Serdespanto", elidem perguntas e respostas, abrindo-se à desmesura e à estranheza: «Benvindo ao estranho mundo» (pág. 129). Poderíamos, no entanto, esboçar (e não mais do que isso) a genealogia em que este livro entronca. Nesse caso, teríamos de evocar essa espécie de «comunidade» de que fazem parte os nomes de Michaux, Herberto Helder ou Maria Gabriela Llansol. Contudo, a escrita de V. F. Cecim não se confunde, prossegue «amanhedescendo» e torna subitamente mais verdadeira a certeza de que «não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer supremo» (Eduardo Lourenço)."

 

Cecim: E com isso voltamos ao início desta nossa conversa. Tu me disseste: Vamos falar um pouco mais a respeito de Ó Serdespanto. E eu te disse: um livro não sabe falar outra linguagem além daquela em que foi escrito. O respeito de um crítico pela integridade essencial de certos livros, é o que dele mais esperam certos escritores que se propõem a desafiar os dentes da Engrenagem triturante do mercado de consumo editorial. Escritores fantasmas: Literatura fantasma.

 

Você insiste em afirmar que o natural é sobrenatural. E novamente diz que o que faz é literatura fantasma. Você está fazendo só literatura, ou propondo algo mais: algo iniciatório? Você quer mudar a vida com os seus livros? Pelo menos o crítico Oscar D’Ambrosio, aqui no Brasil, muito antes da crítica portuguesa Regina Louro, achou que sim, e que você consegue isso. No artigo Os divinos autores da década que escreveu no Jornal da Tarde de São Paulo, ele garante: "Os textos de Cecim fundem profano e sagrado. Após ler Vicente Cecim a transformação interna do leitor é inevitável."

 

Cecim: Eu projeto à minha frente uma Utopia libertária. Eu sonho com uma literatura além da literatura, como Nietzsche sonhava com um homem além do homem. Por isso prenuncio o advento de uma Literatura Fantasma. Mas, antes, ainda teremos que deixar para trás a Literatura como hoje a maioria de nós, escritores, ainda a praticamos, e como a quase totalidade dos leitores ainda a lêem, e atravessar a ponte oscilante da Escritura. Então, depois, muitos passos ou não-passos adiante, ou atrás – pois tudo pode muito bem consistir em um mero se desfazer dos nossos lastros culturais - teríamos livros, ou já não-livros, como quer ser o Livro Invisível de Andara, algo que foi literatura, mas se libertou de si mesmo e se tornou capaz de revelar minuciosamente o homem e seu mistério ao mistério do homem: digo isso assim: A literatura praticada como ontologia, a palavra praticada como vida. Sonho com que esse algo que terá poderes mágicos, imensos poderes, capazes de transpassar as Aparências do Real. Nas desorientações em que me guio, e das quais me nutro, com outras bocas, menos e mais humanas, lembro do que disse Novalis: Só a insuficiência dos nossos sentidos nos impede de perceber que vivemos num mundo feérico. Para mim, e não só os artistas, os criadores, também todas as pessoas, não devemos nos contentar com menos. Isso me faz lembrar John Coltrane, que queria fazer milagres com o seu sax através do jazz. Ele disse uma vez, pouco antes de morrer, que eu prefiro chamar de fenecer assim como prefiro dizer florescer em vez de nascer, que queria fazer uma música – que, também, estaria certamente além da música - que quando um amigo estivesse desempregado, ele tocasse e o amigo teria emprego, que quando alguém estivesse doente, ele tocasse e a pessoa ficaria curada, que quando estivesse chovendo, ele tocasse e fizesse sol. 

 

Assim, o Serdespanto não sentiria tanto o espanto de nascer.

Cecim: Assim, finalmente, nos pudéssemos ser Seres de Alegria. E contaminar a Vida não mais tanto com as nossas lágrimas, mas com essa Alegria.

 

Você está terminando de escrever um novo livro visível de Andara: K: O escuro da semente. Todo desenrolar literário, que faz parte de um só projeto, tem lá seus níveis, seus estágios. Em que estágio está esta nova obra, se é que devamos classificar assim, ou mesmo classificar?

 

Cecim: Para que classificar, o que se ganha com isso? Já classificamos os insetos, as pedras preciosas, os sentimentos, os gêneros literários. E o que ganhamos com isso? Só dividimos mais o mundo, a vida, cada vez mais a extraímos do Um e a lançamos ainda mais fragmentada no Vários. Este livro, agora, prossegue as buscas de Andara, que já vinham sendo feitas, seguindo rastros apagados, esquecidos pela espécie humana, muito inconsciente desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de 1979, o que agora me parece se fazer cada vez mais claramente, pelo que eu chamo de O Um Vários: ponto de fusão de todas as dualidades. Onde todas as aparências cedam profundamente a uma Unidade, sem exigir que o real abra mão de sua Diversidade. Dobras dentro de dobras, ora se desdobrando, ora se redobrando. Isso é a Viagem a Andara, isso é o livro invisível convivendo com os livros visíveis de Andara. Enfim: uma Harmonia Assimétrica, uma Nudez Vestida, em todas as coisas. Relê aquele trecho, que ficou como epígrafe desta entrevista, de K: O escuro da semente, este novo livro escrito de Andara que eu estou sonhando, escrevendo, sonhando, ele em mim se sonhando, emergindo, não sei de onde, nunca se sabe exatamente de Onde – como o castelo de Kubla Kan, na hipótese de Borges. Então, estou jorrando esse livro para fora de mim, para tentar tornar mais claro isso, para mim e para os outros, isto: Nós nos tornamos seres viciados em ver as diferenças nas semelhanças. Está errado, essa é a visão mais superficial da vida: tente ver a Semelhança nas diferenças, é só assim que conseguíssemos ver nas profundidades mais escuras do coração da condição humana, de outra forma só iremos nos tornando seres cada vez mais cegos, homens-toupeiras, no aquém do homem, e nem a Toca de Kafka nos servirá de abrigo. Então, não classificando, mas arborizando passo a passo a escritura de um livro, deixando que ele se amplie ou se retraia, espontaneamente, porque se trata de uma semeadura de palavras sem garantias de que teremos boa safra, o que faço é observar as metamorfoses por que vai passando a obra, que como bom filho da Floresta Sagrado chamo de versões: semente, arbusto, árvore, floresta. Poderia ir também da lagarta à borboleta, seria a mesma coisa. São metamorfoses que estão aí, ao nosso redor, no mundo natural, e no entanto sobrenatural, isso nada tem a ver com as classificações do mundo conceitual. Nesse outro mundo, observa. O que vês? Imensas aves do mal se voltando contra o próprio Mal que as criou em conseqüência do egoísmo perverso, perversor, pervertido do mundo civilizado, esse mundo oco, que escava cada mais fundo as fronteiras entre ricos e pobres. Para dar um só exemplo abrangente. Os acontecimentos que agora eu vejo, me dizem que ainda estamos muito atrasados. Que estamos ainda na versão arbusto do que a vida poderia ser, mas que, tendo perdido a semente original, não chegaremos à versão arvore e muito menos à versão floresta. Nossas metamorfoses modernas parecem querer nos afastar cada vez mais de nós próprios, quando deveria ser exatamente o contrário. Se impõe reverter esse caminho, se impõe desviar pelo saber, como, citando alguém que não lembro, disse numa entrevista talvez o mais sábio dos diretores de cinema, Robert Bresson. Eu proporia ainda mais: desviar de todo o saber, por um outro saber. Que saber seria esse? Esse não-saber? É isso que Andara busca. O que, quem sabe, o Zen já achou, quando nos recomenda Ouvir com os olhos, ver com os ouvidos. Suspeito que pelos velhos caminhos tantas vezes navegados, só acabaremos chegando à Terra Devastada do Rei Pescador da Demanda do Santo Graal, a Waste Land de Eliot, à Terra Gasta.

 

Se todos nós somos seres de espanto, o que você acha que mais nos espanta? O que lhe espanta? A vida é um espanto? Não é um milagre?

 

Cecim: Os milagres não são coisas separadas da vida, toda ela é um milagre, é O Milagre. Tudo é epifania, quer dizer: toda essa irrupção do sagrado na Natureza. Não se pode entender nada se não se entender primeiro isso. E tendo entendido isso, o que mais pode nos espantar? Tudo está contido no próprio espanto de ser, de ser-se. O que me espanta é que nós, as pessoas, demoremos tanto tempo para nos dar conta desta evidência: que todos somos seres de espanto. Todos somos O Vazio que transborda e enche a Vida de formas. Sabes exatamente onde nós estamos, agora? Num Lugar Sem Lugar que é ao mesmo tempo o Lugar de Todos os Lugares. Mestre Eckhart disse um dia: Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes. Eu já citei essa frase de Eckhart num dos livros de Andara, foi em Os animais da terra, de 1981. Acho que escrevi esse livro só para levar essa frase a um número maior de pessoas. Os benefícios da compreensão do seu sentido profundo podem ser imensos.

 

Como é seu impulso literário? Vem de inspiração, sonhos, lembranças? O que move você a escrever um novo livro?

 

Cecim: Eu não escrevo o Livro, eu apenas pareço estar escrevendo o livro, mas isso é mera aparência: o livro é que se escreve através de mim. Sou apenas um Instrumento. Um outro Kubla Kan. Um escritor vaidoso da sua obra é um perfeito ignorante, e é uma contradição nos termos.

 

O que você prefere ler, quando não está empenhado nos seus próprios projetos?

 

Cecim: Tudo. O rosto de uma pessoa que passa, uma lembrança que volta, as pedras, uma marca de passo num caminho, uma ave caída no chão, suas asas já virando terra, outra ave ainda no céu, a chuva, as lágrimas, a água correndo na calçada depois da chuva, a noite estrelada, que aprendi a ver melhor com Van Gogh, sonhos, finjo ler mãos, leio as antigas ilusões perdidas, que ensinam muito quando relidas, leio formiguinhas carregando folhas fazendo de contas estou só olhando, a lua numa gota de orvalho, como o mestre zen Dögen, e o pensamento do próprio Dögen, e às vezes até os livros que ele escreveu, e os de Beckett, Kafka, que prefiro ler cintilando no escuro transformado em homem vaga-lume, Schopenhauer, leio ao mesmo tempo Plotino falando do Uno e Nagarjuna falando da Originação Dependente e entendo que não foi mera coincidência eles terem vivido ao mesmo tempo no século III DC, cada um num hemisfério do cérebro da Terra, tento ler os sentimentos das pessoas quando estão tristes para saber como posso ajudar, tento ler os sentimentos das pessoas quando estão alegres, é uma leitura mais fácil, para saber como posso não estragar, gosto de reler os meus filhos, gosto de reler os meus livros, estou sempre fazendo isso porque se comecei a escrever foi para poder ler os livros que eu gostaria de ler e não achava na vida porque ainda não haviam sido escritos, leio também as notas da música de Bach como palavras de uma frase misteriosa nos falando a Frase mais misteriosa que já foi lançada no ar por um homem. Enfim, leio todo o visível enquanto posso, antes que, invisível, comece a ser lido, como dizia São Paulo: Agora vejo através de um cristal escuro, mas amanhã verei como sou visto. Olha aqui, o importante é entender que os livros, esses que se escreve, não devem ser a nossa leitura favorita, que a nossa leitura favorita deve ser diretamente, mas sem dúvida sempre de surpresa, de soslaio, o Livro, a vida. Só lendo primeiro este é que se pode ler aqueles, como conseqüências. Ainda que seja verdade, também, que A vida imita a arte, como queria Oscar Wilde.

 

A crítica literária não lhe interessa (- Não escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida.). Por que? Ao confessar isso, você mesmo não se torna uma espécie de crítico?

 

Cecim: Grande parte da crítica ainda não aprendeu a ler o Livro, a vida, como poderia ler essas coisas tão pequenas, os livros que os homens escrevem? Eu espero uma literatura que seja cada vez mais capaz de fazer, enquanto se faz, a sua própria crítica, como o Dom Quixote de Cervantes, e autores como Kafka, que enquanto escrevia sua obra que não nos cabe julgar, porque devemos apenas agradecer por ela existir, como disse Alexandre Vialatte, mantinha um Diário rigoroso, minucioso do que significava para ele estar vivendo, ser um Serdespanto. Mas não tenho nada contra os críticos, nenhuma aversão. Até gosto deles, mesmo que finjam serem outra coisa, percebo que são homens como eu. Só não me submeto. Na verdade, quando disse que não escrevia para agradar estava me referindo mais ao leitor. Eu não gosto de ser lido. É estranho, não é? Acho que é porque acho um desperdício as pessoas estarem lendo livros em vez de estarem lendo, instantaneamente, a própria vida, que é mais emocionante, muito mais secreta e mais bela do que qualquer livro que se possa escrever.

 

Para terminar: o que é para você a leitura?

 

Cecim: Ler é nutrir. Só devemos ler o que nos nutre. Não somos obrigados a ler, como um papel a desempenhar na vida. Mas que sirvam primeiro o feijão a quem tem fome, depois virão naturalmente os sonhos. Não se pode exigir que as pessoas leiam enquanto correm pelas ruas em busca de alimento, virando lixo. Aqui devemos inverter urgentemente Oscar Wilde, quando dizia: Dêem-me o supérfluo e eu dispenso o essencial.

 

O que você quer dizer com o natural é sobrenatural e vice-versa?

 

Cecim: Eu não quero dizer nada e estou dizendo isso. Foi mais ou menos o que disse um vez John Cage, que fazia música de silêncio. Mas por que tu estás me perguntando isso sobre o natural ser sobrenatural e o sobrenatural ser natural, como se já não soubesses? É claro que as coisas são assim. A tua pergunta me espanta.