Márcia
Carvalho entrevista Vicente
Franz Cecim
Vicente Franz Cecim: O natural é sobrenatural
Tudo vem como sombra do Um e para o Um volta como
sombra. Aqui, na breve Residência, a vida, imersos nesta luz cheia
de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá
no Um enquanto aqui até parece que somos, as sombras estão no
Vários, e se tornam coisas
Vicente Franz
Cecim/
K: O escuro da
semente, livro inédito de Andara
O escritor paraense Vicente Franz Cecim é um
sucesso de crítica, no Brasil e em Portugal, embora nem tanto de
público, mas parece não dar a menor importância para esse fato:
Não escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida.
Os especialistas atribuem isso às características inovadoras da
sua literatura. Segundo já foi dito, no caldeirão de uma
escrita em absoluta liberdade, a literatura como alquimia, em sua
obra o autor abole as fronteiras entre a prosa e a poesia, funde o
natural e o sobrenatural e incorpora o profano ao sagrado, para se
lançar numa intensa busca metafísica do sentido do ser e da vida.
Cecim, por sua vez, diz que os livros visíveis de Andara, que
escreve em livros, ainda podem ser lidos como literatura
fantástica. Mas ao irem se reunindo em Viagem a Andara, o
livro invisível - que é o título geral de toda a sua obra - o
não-livro que o autor não escreve e que vai se formando à medida
que os livros individuais de Andara vão sendo escritos, o
resultado final, segundo ele, já é literatura fantasma.
Nesta entrevista, Cecim fala do seu novo livro recém-lançado em
Portugal, Ò Serdespanto (Íman Edições, Lisboa, 2001), que
a crítica portuguesa apontou como o segundo melhor livro do ano, em
consulta feita pelo jornal Público, da Amazônia transfigurada em
Andara, dos limites da literatura e do advento de uma literatura
fantasma.
Já não faço literatura, faço Escritura, ele
diz. E afirma: - O natural é sobrenatural.
O que é o livro
Ó Serdespanto,
ou talvez fosse mais apropriado perguntar: o que é um ser de
espanto?
Cecim: Serdespanto
sou eu, és tu, é
quem está lendo esta entrevista. Seres de espanto somos
todos nós. Não é difícil ser um serdespanto, para isso
basta nascer, surgir na vida como ser humano. Um trecho do
livro nos diz assim: Em Andara, é quando os homens esperam um
anoitecer mais calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras
de sombras e asas de areia vêm nos açoitar. Sendo assim em Andara:
ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto. Passando, pois,
aquele homem a se chamar assim. Serdespanto. Pois esse o nome que
lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina
uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser
outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com
melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer Em Andara, pois. Mais um tendo vindo. De rastros,
humano.
Vamos falar um pouco mais a respeito de
Ó
Serdespanto: ser de espanto. A expressão Ó, por si só,
já demonstra sentimento de espanto.
Cecim: O livro
Ó Serdespanto já acabou
de se falar, por si próprio, nesta entrevista. E um livro não sabe
falar outra linguagem além daquela em que foi escrito, é
preferível não falarmos mais por ele.
E Andara, o que é Andara?
Cecim:
Andara é uma região imaginária,
toda ela onírica, que eu criei, ou que quis se criar através de
mim, de qualquer maneira: que eu sonhei, mas sua matéria prima é a
Amazônia, a Floresta Sagrada onde eu nasci, com suas águas, seus
peixes, suas aves, seus insetos, seus animais, suas árvores. Só
que em Andara tudo pode acontecer e ainda mais do que acontece na
Amazônica, que em si já é uma região naturalmente encantada:
árvores podem falar com os homens, aves que caem do céu se
transformam instantaneamente em terra, retornando ao pó, o vento
vem nos contar histórias, tu podes te deparar com uma mulher alada
como Caminá, do segundo livro visível de Andara, Os
animais da terra, há muitos outros seres alados em Andara,
talvez anjos ou sejam demônios, que descem do céu com suas asas
negras, com suas asas brancas para conviver com os seres humanos.
Também é grande a presença de serpentes em Andara. Pois o que
está no Alto é como o que está Embaixo, como disse Hermes
Trimegisto. Andara é lugar de sonhar, em Andara tudo
é possível, Andara é a imaginação em liberdade, Andara quer
abolir a razão do ato de escrever. Andara é quase um manifesto
prático contra a literatura regionalista, mimética, que geralmente
se limitava a copiar, e copiar mal, a realidade amazônica. Mas a
realidade é oculta em si mesmo: se disfarça em sua epiderme. Fazer
literatura assim é ampliar o ilusório. Heráclito, que entendia
dessa Obscuridade, já nós advertiu há quase 25 séculos atrás: -
Vida ama ocultar-se. Andara quis romper, desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de 1979, com essa tradição que quer nos
reduzir a criadores de uma literatura superficial, anedótica,
supérflua, com raras e parciais exceções. Quais? Só cito nomes
quando chegar o Dia do Juízo Final, então os bons serão separados
dos maus, segundo as Escrituras. Por enquanto, digo apenas isso.
Escrever, sonhar os livros de Andara foi uma opção muito
solitária, e do que havia sido escrito aqui na Amazônia, pelos
escritores cultos, chamemos assim, eu não me nutri de quase nada.
Meu único alimento foi a literatura oral, as lendas, os mitos, que
aprendi desde criança a admirar através da minha mãe, Yara Cecim,
hoje também escritora, que nos contava, não os contos dos irmãos
Grimm, de Perrault, que tem coisas geniais, de Andersen, que é todo
ele um gênio, mas umas histórias delirantes da região, para nos
fazer dormir, a mim e aos meus irmãos. O sono vinha, mas como um
portal de acesso a todo esse mundo feérico. Não sabíamos mais o
que era natural e o que era sobrenatural.
Ó Serdespanto faz parte
de um longo projeto literário, que é Viagem a Andara, o livro
invisível. Livro que contém outros livros, que são histórias
imaginárias fisgadas de uma memória guardada da infância, vivida
na Amazônia. Andara é uma história infinita?
Cecim: Não se pode dizer que essa Andara que se
criou através de mim é a Amazônia, não é a verdade. E dizer que
a Amazônia é Andara, também não é a verdade. Não há uma
verdade única nesse caso. Onde está a verdade, então? Se tu
olhares com olhos de alquimista, que são os únicos que interessam,
vais perceber que o que se dá é uma transmutação: a
Amazônia é a matéria prima, Andara é o resultado. O que sobra,
fica de fora: é o que os alquimistas chamavam resídua. A
transmutação da Amazônia em Andara deixou muita resídua,
material imprestável para literatura. E como em toda a Alquimia, e
a alquimia da criação literária não é diferente, para entender
o que acontece é preciso compreender estas palavras de Raimundo
Lúlio: Deves saber, meu filho, que o curso da natureza é
transformado, para que tu (...) possas ver, sem grande agitação,
os espíritos que se evolam (...) condensados no ar, sob a forma de
diversas criaturas ou seres monstruosos que vagueiam de um lado para
o outro como nuvens. São palavras misteriosas, mas não há
outras melhores para se iniciar na transfiguração da vida pela
arte. É por isso que, como eu disse: Andara é lugar de sonhar.
E eu digo: A viagem a Andara não tem fim. Porque depois de
mim, outros, que vierem, poderão dar continuidade à viagem a
Andara e habitar seu território, com outros livros, outros sonhos,
outros seres de espanto.
Os críticos têm sido generosos em elogios aos
livros de Andara. Leo Gilson Ribeiro, em entrevista a O Estado de
São Paulo, após o lançamento de Viagem a Andara, o livro
invisível (Iluminuras, 1988) que lhe valeu o Grande Prêmio da
Crítica da APCA, disse: "Quem escreve como Vicente Cecim hoje
em dia na França, na Inglaterra. Ele tem um talento
desmesurado." E por ocasião do lançamento de Silencioso
como o Paraíso (Iluminuras, 1994), completou: "A
fulminante trajetória literária de Cecim, que se iniciara com o
belo, poético e enigmático poema em prosa Viagem a Andara, o
livro invisível, prossegue com um livro, se possível, mais
rico e fascinante ainda: Silencioso como o Paraíso. Um dos
mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos,
imbuído de poesia, encanto e o que Guimarães Rosa chamava de ‘peregrinação
álmica’ (da alma)." Não foi a primeira vez que os
críticos evocaram Guimarães Rosa ao falarem da sua obra.
Cecim: Muito me alegra a sua companhia, mas
é evidente que se há ecos dele em Andara, são desprezíveis.
Guimarães Rosa é infinitamente superior a tudo o que foi escrito
em ficção na língua portuguesa, incluindo Clarice Lispector, a
enfeitiçadora de palavras, e o Machado de Assis daquele
inacreditável, lunar, Memorial de Aires, escrito, já no fim
da vida, com uma serenidade encantatória assombrosa, como se diz
que o arqui-anjo Bach compunha as suas últimas obras.
E ao que você atribui essas
aproximações que fazem da sua obra com Guimarães Rosa? E isso em
vários pontos do país. Por exemplo, o crítico gaúcho Antônio
Hohlfeldt, no Correio do Povo, escreveu: "Depois de Guimarães
Rosa, o paraense Vicente Cecim é o responsável por um dos
mergulhos mais fantásticos e essenciais que a literatura brasileira
já realizou sobre o sentido do homem." E Oscar D’Ambrosio,
no Jornal de Tarde, de São Paulo, não deixou por menos: "Ler Viagem
a Andara é penetrar em narrativas poéticas subversivas e
míticas que trazem à tona, sempre renovado, o aforismo roseano: Viver
é perigoso."
Cecim:
Talvez seja é porque são literaturas
de invenção de linguagem, ou porque minha escritura tem a
mesma má intenção da de Guimarães Rosa: abolir as fronteiras
artificialmente demarcadas entre a prosa e a poesia. Mas,
talvez, principalmente, porque Rosa fez com o Sertão a mesma coisa
que eu estou tentando fazer com a Amazônia: transmudar, ele, o
Sertão, eu, a Amazônia, no que eu chamo de regiões metáforas
da vida.
Você já anunciava esse seu projeto
em Flagrados em delito contra a noite, o Manifesto Curau que
lançou em 1983. Nele, você dizia: Aqui, procuro um nome numa
região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome
exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar. Falo
do Sertão de João Guimarães Rosa. (...) Em sua geografia, como
nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do
seu destino individual com o destino da sua região, mais ainda,
soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele,
em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de
iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam
também as mitologias da sua região.
Cecim:
Logo o Flagrados em delito contra a
noite/Manifesto Curau vai completar 20 anos de lançado
(1983-2003), mas a sua Palavra principal, aquela que faz uma
auto-acusação grave, pois nos acusa de sonharmos pouco ainda que
vivamos numa região em si mesma naturalmente onírica, pouco foi
ouvida. Praticamente quase nada mudou desde então, nesse sentido.
Assim como a literatura de Andara, que logo chegará aos seus 25
anos de invenção (1979-2004), semeou muito pouco do que pretendia
com sua Presença, mas aqui provavelmente a culpa é minha: eu
apenas consigo fazer um esboço do que poderia ser a invenção de
Andara. Por isso, aguardo pelos que virão, que sejam melhores
dotados. Poeticamente, politicamente, insisto no que foi dito
no Manifesto Curau: - Nossa História só terá realidade quando
o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.
Você se empenha nisso em sua literatura, pelo que
se vê nos seus livros.
Cecim:
Mas não é só na literatura, também na
vida, que mesmo oculta em si mesma sempre nos permite entrever que
é sempre mais secreta e mais bela que a literatura: a Literatura
quer a amplidão, a ampliação e provoca estranhos milagres nas
fronteiras das impossibilidades da Vida, mas é precisamente nela,
vida, vivendo, nos vivendo em nós, e certamente também escrevendo, que se corre o
risco de obter a Revelação essencial: a de que o natural
é sobrenatural e sua versão refletida num espelho: a de que o
sobrenatural é natural. Essa consciência é o alimento, o
Único, que devesse nos nutrir enquanto seres e enquanto criadores,
e o que dá sentido à literatura.
A crítica parece perceber bem isso nos seus livros.
E já há algum tempo. Mais uma vez aqui citado, Leo Gilson Ribeiro,
por exemplo, escreveu uma página no Jornal da Tarde de São Paulo
após o lançamento das suas primeiras obras, intitulada O
universo de Vicente Cecim criado por inspiradas metáforas e
alegorias, em que dizia: "Há um real submerso no homem que
a literatura linear, de mera denúncia da disparidade social, não
alcança e quase como o grande visionário, o poeta Novalis, Vicente
Cecim também confirmaria que je poetischer, umso wahrer: quanto
mais poético, mais verdadeiro."
Cecim:
Essa comparação com Novalis, um
poeta sublime, me deixou atordoado por alguém tempo, sem conseguir
escrever nada. Foi um exagero do Leo Gilson Ribeiro. Mas enquanto
declaração de princípios, sim: é isso mesmo o que busco e no que
creio.
Mas não é só ele. A revista Vogue também disse:
"O lírico, o fantástico, a imaginação em sua total
liberdade: a linguagem de Cecim é poética e única." E
Benedito Nunes, escrevendo sobre o seu livro Os animais da terra,
disse: "Uma invenção poética. Que melhor
denominação para este texto libertário, insurrecto?"
Cecim:
Sim, mas o preço de ter feito essa
opção por uma linguagem que admite o poético e transgride e
dilacera a camisa de força da prosa na ficção é bem grande.
E a alegria não deve ser menor. Por exemplo, o que
você sente quando lê coisas como a que escreveu sobre a sua obra
Carlos Emílio Correa Lima no Jornal do Brasil? Ele afirma: "É
provável que seja a melhor literatura fluindo no Brasil." E
há comparações entre você e autores que são verdadeiros
clássicos modernos de várias línguas, como Nietzsche e
Láutreamont, que deixariam qualquer escritor feliz, como a que faz
Moacir Amâncio em O Estado de São Paulo: "Lembra Zaratustra
e Maldoror e se esses livros são poesia, a prosa de Cecim
não seria outra coisa. O fascínio sobre o leitor é
permanente."
Cecim:
O que não impede que curiosos
desastres aconteçam. Por exemplo, o livro Ó Serdespanto,
editado pela Íman, de Portugal, havia sido oferecido antes ao
Samuel Leon, da Iluminuras, de São Paulo, que já havia editado as
minhas duas reuniões de livros de Andara anteriores: Viagem
a Andara, o livro invisível e Silencioso como o Paraíso.
Samuel é um editor criterioso, que lê o que edita, eu sei. Mas às
vezes não basta a vontade do editor: existe uma economia, umas leis
de mercado editorial, uns vícios e umas estruturas mortas
arqueológicas que se erguem entre o livro e o leitor. Samuel me
falou algo assim, tentando me explicar o fenômeno: Estás
escrevendo cada vez melhor, Vicente, mas nós temos um problema: os
leitores brasileiros têm preferências muito rígidas, ou gostam de
prosa ou gostam de poesia, e como nos teus livros estás cada vez
mais abolindo essas distinções, eles não sabem do que se trata,
acham estranho. Creio que Samuel estava certo, afinal, pelos
anos de convivência, desde 88, já havíamos nos torna bons amigos.
Entendi a mensagem. Foi como se ele estivesse me
dizendo que os meus leitores ainda estão por nascer e me pedisse
paciência. A paciência de ser póstumo. O livro finalmente saiu,
mas saiu em outras circunstâncias culturais: Portugal não é o
Brasil, que é grande e lê pequeno, Portugal é pequeno mas lê
grande: lê esse abismo obscuro cintilante que é Fernando Pessoa,
lê o poeta complexo que é Herberto Helder, lê as arriscadas
aventuras de linguagem de Maria Gabriela Llansol e já é a Europa,
aquela Europa a quem foi oferecida a libertação da Razão Maníaca
pelo Dadá, pelo Surrealismo, onde a ficção que se lê é Kafka,
Beckett, Proust, Joyce, o Musil incalculável de O homem sem
qualidades, o Hermann Broch sonâmbulo de A morte de
Virgílio, esse outro sonâmbulo que é o Bruno Schulz de Sanatório
sob o signo da clepsidra e de As lojas de canela, o
Julien Gracq supremo do alegórico O litoral das Sirtes, belo
como um Kafka paralelo a Kafka, o Incomparável, o Dino Buzati também kafkiano a seu modo de
O
deserto do tártaros, o iconoclasta maravilhoso que é Withold
Gombrowicz, o autor de Trans-Atlântico e de Bakakai,
o Breton de Nadja, romance, poema, invocação xamânica e
nada disso porque se trata da própria vida como realidade e sonho,
juntos, captados para dentro das páginas de um livro, e sobre tudo
isso seguem pairando as asas que jamais pousam para um instante
sequer de repouso de Lautréamont, agitando aqueles ares com seu Os
cantos de Maldoror - para citar só alguns dos mais recentes,
dos mais próximos de nós. Porque se fôssemos mais longe, até
Jonathan Swift, até Rabelais, até Sade, até John Bunyan, até
Dante, onde iríamos parar?
Essas dificuldades levaram à edição do livro em
Portugal e não no Brasil?
Cecim: As dificuldades aumentam na medida em que
não só os livros de Andara, mas também os de outros
autores brasileiros que não pactuam com as concessões do mercado
editorial aumentam suas dificuldades para o leitor que não se doa
suficientemente à literatura, talvez porque não ame
suficientemente a literatura, talvez porque não ame suficientemente
a si próprio, talvez porque não ame suficientemente a vida, não
sei. Não é só viver que é muito perigoso, como disse Guimarães
Rosa: escrever também é muito perigoso. Mas aqui, repara, temos um
paradoxo: é preciso não esquecer que os livros de Andara
foram publicados primeiro no Brasil, pela Iluminuras, com expressiva
receptividade da crítica, e só depois é que saíram em Portugal.
Como se explica isso? Teria a literatura de Andara andado rápido
demais, deixando os leitores brasileiros para trás?
Emparelhou o passo com os leitores portugueses?
Leitores mais qualificados: editores mais qualificados: escritores
mais qualificados: essa é a seqüência em que as coisas devessem
se dar. Podendo ser também na ordem inversa. Sem terra para
construir uma casa, sem casa para morar nela, onde colocar uma
estante de livros? Nós precisamos sentir uma Grande Fome de tudo,
fazermos jejum até não suportarmos mais a nossa fome de uma
revolução que dê às pessoas acesso ao feijão e ao sonho,
palavras que fazem lembrar o título de um livro hoje quase
esquecido de Orígenes Lessa.
Bem, e aconteceu que Andara, com o
lançamento lá do seu Ó Serdespanto, acabou por ter,
também, uma entusiasmada acolhida da parte dos críticos de
Portugal.
Cecim: Foi, aconteceu.
O mais surpreendente é ler de um crítico tão bem
informado, como o filósofo Eduardo Prado Coelho, esta declaração:
"Aluno de História da Cultura Medieval, cheguei à prova
oral sem saber quem era Raimundo Lúlio. Nas semanas seguintes, este
nome aparecia-me em todo o lado - uma verdadeira perseguição. E
pode ser que suceda o mesmo com Vicente Franz Cecim. Conheço
razoavelmente bem a literatura brasileira, tenho muitos amigos
brasileiros que me mantêm informado, mas nunca me lembro de ter
visto mencionado, ou lido uma linha, de (ou sobre) Vicente Franz
Cecim. Até que António Cabrita resolve editar um livro intitulado
"O Serdespanto". E o espantado sou eu. Uma extraordinária
revelação! Leo Gilson Ribeiro fala-nos, referindo um Guimarães
Rosa que obviamente está presente nestes textos, em
"peregrinação álmica" (da palavra "alma"), e
a expressão está certa para nos dizer a estranheza, a
perturbação, os momentos de arrebatamento que nos podem vir destes
textos inclassificáveis, que oscilam entre uma espécie de
deliberada monotonia do ser e o sentido golpeante das cintilações
verbais."A citação foi um pouco longa, mas necessária
para situar os leitores no impacto da reação do crítico.
Cecim:
Isso só prova a enorme distância
cultural que mantemos de Portugal. Só superada pela que mantemos em
relação aos outros países da América Latina. Sabemos quem foi
Borges, o argentino, pelo menos, mas observa a expressão remota,
buscando longe um saber desconhecido, que aparece no rosto de um
leitor brasileiro quando se pergunta a ele: quem foi César Vallejo?
E Vallejo é simplesmente o maior poeta deste nosso subcontinente,
em todos os tempos. Mas, peruano, coitado. E onde fica o Peru?
Alguém sabe?
O problema, então, não está
localizado unicamente na Escritura que você pratica nos livros de
Andara, nem no próprio universo inusitado que seus livros visíveis
de Andara estão criando. Existem graves barreiras culturais.
Cecim:
Sim, muito graves. O
surgimento de Andara, como território verbal onírico que escava o
solo da realidade, para dela emergir, já que falamos de Borges, é
como aquela hipótese que ele propõe sobre o Castelo de Kubla Kan:
é algo que está tentando nascer, existir na vida, e já fez suas
primeiras tentativas. A primeira, quando Kubla Kan sonhou o castelo
em pedras e iniciou sua construção, mas foi impedido de concluir a
construção e do castelo só restaram ruínas. A segunda, quando
Coleridge sonhou o castelo de Kubla Kan em palavras, mas ao
despertar, interrompeu o poema sobre o castelo para atender seu
alfaiate, e foi punido, por isso, com o esquecendo do restante do
poema, que também ficou inconcluso. Borges então se pergunta, nos
pergunta: qual será a próxima forma que assumirá isso que
se apresenta como o Castelo de Kubla Kan quando tentar mais uma vez
irromper na vida? Talvez por ser também uma hipótese extraviada,
um Lugar de Todos os Lugares, ou de Lugar Algum, Andara atravesse as
águas do Atlântico sem naufragar.
Sim, mas as ondas que faz são
bastante agitadas, quando chegam na praia. A crítica Regina Louro,
que citou Ó serdespanto como o melhor lançamento do ano, em
Portugal, escreveu no jornal Público: É
um livro total, na sua fusão de poesia, prosa, viagem utópica,
divagação onírica, pensamento filosófico, reinvenção da
palavra e reinvenção do mundo. Uma obra assim pode transformar a
vida de quem a lê, se quem a ler estiver disposto a deixar-se
transformar; mas, mesmo sem correr o risco dessa entrega, é
impossível permanecer indiferente ao poder mágico da palavra de
Cecim, palavra livre e vagabunda que cria uma cosmogonia própria, a
um tempo estranha e familiar, reconhecível. Chamar-lhe
inclassificável é, talvez, cobardia. Há um nome para esta
espécie - rara - de acontecimentos, mas é um nome ousado e, nestes
tempos de suspeita, pronto a ser banido: estamos perante um livro
sagrado. Não importa quem o escreveu: foi escrito por um
visionário.
Cecim: Foi uma leitura vertiginosamente
generosa.
E o que você diria do que escreveu o crítico,
também português, Manoel de Freitas, no jornal Expresso? Cito alguns
trechos mais expressivos: "Há
livros assim, que dispensariam - num mundo ideal - o lúgubre
ofício da crítica. Livros que começam por dizer que «alguém
vive, alguém escreve// Esse é o ponto de partida, o ponto de
chegada». Alarmada, a nossa competência literária pode, quando
muito, balbuciar o nome de Mallarmé e o seu maiúsculo projecto:
«O Livro é a vida? Não, o Livro não é a vida. É a outra vida»
(pág. 9). Mas permaneceremos incapazes de verbalizar o
inconfundível fulgor desta obra de Vicente Franz Cecim. (...) Houve já quem falasse em Amazónias,
transfigurações natais de um paraense, quando uma voz destas
excede qualquer regionalismo básico. Também Herberto não é a
ilha em forma de cão sentado ou Pessoa a Rua dos Douradores. O
cosmos, esse, fica-lhes demasiado bem.
(...) São raros os livros que, como
"Ó Serdespanto", elidem perguntas e respostas, abrindo-se
à desmesura e à estranheza: «Benvindo ao estranho mundo» (pág.
129). Poderíamos, no entanto, esboçar (e não mais do que isso) a
genealogia em que este livro entronca. Nesse caso, teríamos de
evocar essa espécie de «comunidade» de que fazem parte os nomes
de Michaux, Herberto Helder ou Maria Gabriela Llansol. Contudo, a
escrita de V. F. Cecim não se confunde, prossegue
«amanhedescendo» e torna subitamente mais verdadeira a certeza de
que «não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer
supremo» (Eduardo Lourenço)."
Cecim: E com isso voltamos ao início desta
nossa conversa. Tu me disseste: Vamos falar um
pouco mais a respeito de Ó Serdespanto. E eu te disse: um
livro não sabe falar outra linguagem além daquela em que foi
escrito. O respeito de um crítico pela integridade essencial de
certos livros, é o que dele mais esperam certos escritores que se
propõem a desafiar os dentes da Engrenagem triturante do
mercado de consumo editorial. Escritores fantasmas: Literatura
fantasma.
Você insiste em afirmar que
o natural é
sobrenatural. E novamente diz que o que faz é
literatura fantasma.
Você está fazendo só literatura, ou propondo algo mais: algo
iniciatório? Você quer mudar a vida com os seus livros? Pelo menos
o crítico Oscar D’Ambrosio, aqui no Brasil, muito antes da
crítica portuguesa Regina Louro, achou que sim, e que você
consegue isso. No artigo Os divinos autores da década que
escreveu no Jornal da Tarde de São Paulo, ele garante: "Os
textos de Cecim fundem profano e sagrado. Após ler Vicente Cecim a
transformação interna do leitor é inevitável."
Cecim: Eu projeto à minha frente uma Utopia
libertária. Eu sonho com uma literatura além da literatura,
como Nietzsche sonhava com um homem além do homem. Por isso
prenuncio o advento de uma Literatura Fantasma. Mas, antes,
ainda teremos que deixar para trás a Literatura como hoje a
maioria de nós, escritores, ainda a praticamos, e como a quase
totalidade dos leitores ainda a lêem, e atravessar a ponte
oscilante da Escritura. Então, depois, muitos passos ou
não-passos adiante, ou atrás – pois tudo pode muito bem
consistir em um mero se desfazer dos nossos lastros culturais -
teríamos livros, ou já não-livros, como quer ser o Livro
Invisível de Andara, algo que foi literatura, mas se
libertou de si mesmo e se tornou capaz de revelar minuciosamente
o homem e seu mistério ao mistério do homem: digo isso assim: A
literatura praticada como ontologia, a palavra praticada como vida.
Sonho com que esse algo que terá poderes mágicos, imensos
poderes, capazes de transpassar as Aparências do Real. Nas
desorientações em que me guio, e das quais me nutro, com outras
bocas, menos e mais humanas, lembro do que disse Novalis: Só a
insuficiência dos nossos sentidos nos impede de perceber que
vivemos num mundo feérico. Para mim, e não só os artistas, os
criadores, também todas as pessoas, não devemos nos contentar com
menos. Isso me faz lembrar John Coltrane, que queria fazer milagres
com o seu sax através do jazz. Ele disse uma vez, pouco antes de
morrer, que eu prefiro chamar de fenecer assim como prefiro
dizer florescer em vez de nascer, que queria fazer uma
música – que, também, estaria certamente além da música - que
quando um amigo estivesse desempregado, ele tocasse e o amigo teria
emprego, que quando alguém estivesse doente, ele tocasse e a pessoa
ficaria curada, que quando estivesse chovendo, ele tocasse e fizesse
sol.
Assim, o Serdespanto não sentiria
tanto o espanto de nascer.
Cecim:
Assim, finalmente, nos pudéssemos ser
Seres de Alegria. E contaminar a Vida não mais tanto com as nossas
lágrimas, mas com essa Alegria.
Você está terminando de escrever um novo
livro
visível de Andara: K: O escuro da semente. Todo desenrolar
literário, que faz parte de um só projeto, tem lá seus níveis,
seus estágios. Em que estágio está esta nova obra, se é que
devamos classificar assim, ou mesmo classificar?
Cecim:
Para que classificar, o que se ganha com
isso? Já classificamos os insetos, as pedras preciosas, os
sentimentos, os gêneros literários. E o que ganhamos com isso? Só
dividimos mais o mundo, a vida, cada vez mais a extraímos do Um e
a lançamos ainda mais fragmentada no Vários. Este livro,
agora, prossegue as buscas de Andara, que já vinham sendo feitas,
seguindo rastros apagados, esquecidos pela espécie humana, muito
inconsciente desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de
1979, o que agora me parece se fazer cada vez mais claramente, pelo
que eu chamo de O Um Vários: ponto de fusão de todas as
dualidades. Onde todas as aparências cedam profundamente a uma
Unidade, sem exigir que o real abra mão de sua Diversidade. Dobras
dentro de dobras, ora se desdobrando, ora se redobrando. Isso é a
Viagem a Andara, isso é o livro invisível convivendo com os livros visíveis
de Andara. Enfim: uma Harmonia Assimétrica,
uma Nudez Vestida, em todas as coisas. Relê aquele trecho, que
ficou como epígrafe desta entrevista, de K: O escuro da semente,
este novo livro escrito de Andara que eu estou sonhando,
escrevendo, sonhando, ele em mim se sonhando, emergindo, não sei de
onde, nunca se sabe exatamente de Onde – como o castelo de
Kubla Kan, na hipótese de Borges. Então, estou jorrando esse livro
para fora de mim, para tentar tornar mais claro isso, para mim e
para os outros, isto: Nós nos tornamos seres viciados em ver as
diferenças nas semelhanças. Está errado, essa é a visão mais
superficial da vida: tente ver a Semelhança nas diferenças,
é só assim que conseguíssemos ver nas profundidades mais escuras
do coração da condição humana, de outra forma só iremos nos
tornando seres cada vez mais cegos, homens-toupeiras, no aquém do
homem, e nem a Toca de Kafka nos servirá de abrigo. Então,
não classificando, mas arborizando passo a passo a escritura
de um livro, deixando que ele se amplie ou se retraia,
espontaneamente, porque se trata de uma semeadura de palavras sem
garantias de que teremos boa safra, o que faço é observar as metamorfoses
por que vai passando a obra, que como bom filho da Floresta Sagrado
chamo de versões: semente, arbusto, árvore, floresta.
Poderia ir também da lagarta à borboleta, seria a mesma coisa.
São metamorfoses que estão aí, ao nosso redor, no mundo natural,
e no entanto sobrenatural, isso nada tem a ver com as
classificações do mundo conceitual. Nesse outro mundo, observa. O que vês? Imensas aves
do mal se voltando contra o próprio Mal que as criou em
conseqüência do egoísmo perverso, perversor, pervertido do mundo
civilizado, esse mundo oco, que escava cada mais fundo as fronteiras
entre ricos e pobres. Para dar um só exemplo abrangente. Os
acontecimentos que agora eu vejo, me dizem que ainda estamos muito
atrasados. Que estamos ainda na versão arbusto do que a vida
poderia ser, mas que, tendo perdido a semente original, não
chegaremos à versão arvore e muito menos à versão floresta.
Nossas metamorfoses modernas parecem querer nos afastar cada vez
mais de nós próprios, quando deveria ser exatamente o contrário.
Se impõe reverter esse caminho, se impõe desviar pelo saber,
como, citando alguém que não lembro, disse numa entrevista talvez
o mais sábio dos diretores de cinema, Robert Bresson. Eu proporia
ainda mais: desviar de todo o saber, por um outro saber. Que
saber seria esse? Esse não-saber? É isso que Andara busca. O que,
quem sabe, o Zen já achou, quando nos recomenda Ouvir com os
olhos, ver com os ouvidos. Suspeito que pelos velhos caminhos
tantas vezes navegados, só acabaremos chegando à Terra Devastada
do Rei Pescador da Demanda do Santo Graal, a Waste Land de
Eliot, à Terra Gasta.
Se todos nós somos seres de espanto, o que você
acha que mais nos espanta? O que lhe espanta? A vida é um espanto?
Não é um milagre?
Cecim:
Os milagres não são coisas separadas da
vida, toda ela é um milagre, é O Milagre. Tudo é epifania, quer dizer: toda
essa irrupção do sagrado na Natureza. Não se pode entender nada
se não se entender primeiro isso. E tendo entendido isso, o que
mais pode nos espantar? Tudo está contido no próprio espanto de
ser, de ser-se. O que me espanta é que nós, as pessoas,
demoremos tanto tempo para nos dar conta desta evidência: que todos
somos seres de espanto. Todos somos O Vazio que transborda
e enche a Vida de formas. Sabes exatamente onde nós estamos, agora?
Num Lugar Sem Lugar que é ao mesmo tempo o Lugar de Todos os
Lugares. Mestre Eckhart disse um dia: Ali onde os anjos supremos,
a mosca e a alma são semelhantes. Eu já citei essa frase de
Eckhart num dos livros de Andara, foi em Os animais da
terra, de 1981. Acho que escrevi esse livro só para
levar essa frase a um número maior de pessoas. Os benefícios da
compreensão do seu sentido profundo podem ser imensos.
Como é seu impulso literário? Vem de inspiração,
sonhos, lembranças? O que move você a escrever um novo livro?
Cecim:
Eu não escrevo o Livro, eu apenas pareço
estar escrevendo o livro, mas isso é mera aparência: o livro é
que se escreve através de mim. Sou apenas um Instrumento. Um
outro Kubla Kan. Um escritor vaidoso da sua obra é um perfeito
ignorante, e é uma contradição nos termos.
O que você prefere ler, quando não está empenhado
nos seus próprios projetos?
Cecim: Tudo. O rosto de uma pessoa que passa,
uma lembrança que volta, as pedras, uma marca de passo num caminho,
uma ave caída no chão, suas asas já virando terra, outra ave
ainda no céu, a chuva, as lágrimas, a água correndo na calçada
depois da chuva, a noite estrelada, que aprendi a ver melhor com Van
Gogh, sonhos, finjo ler mãos, leio as antigas ilusões perdidas,
que ensinam muito quando relidas, leio formiguinhas carregando
folhas fazendo de contas estou só olhando, a lua numa gota de
orvalho, como o mestre zen Dögen, e o pensamento do próprio
Dögen, e às vezes até os livros que ele escreveu, e os de
Beckett, Kafka, que prefiro ler cintilando no escuro transformado em
homem vaga-lume, Schopenhauer, leio ao mesmo tempo Plotino falando
do Uno e Nagarjuna falando da Originação Dependente
e entendo que não foi mera coincidência eles terem vivido ao mesmo
tempo no século III DC, cada um num hemisfério do cérebro da
Terra, tento ler os sentimentos das pessoas quando estão tristes
para saber como posso ajudar, tento ler os sentimentos das pessoas
quando estão alegres, é uma leitura mais fácil, para saber como
posso não estragar, gosto de reler os meus filhos, gosto de reler
os meus livros, estou sempre fazendo isso porque se comecei a
escrever foi para poder ler os livros que eu gostaria de ler e não
achava na vida porque ainda não haviam sido escritos, leio também
as notas da música de Bach como palavras de uma frase misteriosa
nos falando a Frase mais misteriosa que já foi lançada no ar por
um homem. Enfim, leio todo o visível enquanto posso, antes que,
invisível, comece a ser lido, como dizia São Paulo: Agora vejo
através de um cristal escuro, mas amanhã verei como sou visto.
Olha aqui, o importante é entender que os livros, esses que
se escreve, não devem ser a nossa leitura favorita, que a nossa
leitura favorita deve ser diretamente, mas sem dúvida sempre de
surpresa, de soslaio, o Livro, a vida. Só lendo
primeiro este é que se pode ler aqueles, como conseqüências.
Ainda que seja verdade, também, que A vida imita a arte,
como queria Oscar Wilde.
A crítica literária não lhe interessa (-
Não
escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida.).
Por que? Ao confessar isso, você mesmo não se torna uma espécie
de crítico?
Cecim:
Grande parte da crítica ainda não
aprendeu a ler o Livro, a vida, como poderia ler essas coisas
tão pequenas, os livros que os homens escrevem? Eu espero uma
literatura que seja cada vez mais capaz de fazer, enquanto se faz,
a sua própria crítica, como o
Dom Quixote de Cervantes, e autores
como Kafka, que enquanto escrevia sua obra que não nos cabe julgar,
porque devemos apenas agradecer por ela existir, como disse
Alexandre Vialatte, mantinha um Diário rigoroso, minucioso do que
significava para ele estar vivendo, ser um Serdespanto. Mas
não tenho nada contra os críticos, nenhuma aversão. Até gosto
deles, mesmo que finjam serem outra coisa, percebo que são homens
como eu. Só não me submeto. Na verdade, quando disse que não
escrevia para agradar estava me referindo mais ao leitor. Eu não
gosto de ser lido. É estranho, não é? Acho que é porque acho um
desperdício as pessoas estarem lendo livros em vez de estarem
lendo, instantaneamente, a própria vida, que é mais emocionante,
muito mais secreta e mais bela do que qualquer livro que se possa
escrever.
Para terminar: o que é para você a leitura?
Cecim:
Ler é nutrir. Só devemos ler o
que nos nutre. Não somos obrigados a ler, como um papel a
desempenhar na vida. Mas que sirvam primeiro o feijão a quem tem
fome, depois virão naturalmente os sonhos. Não se pode exigir que
as pessoas leiam enquanto correm pelas ruas em busca de alimento,
virando lixo. Aqui devemos inverter urgentemente Oscar Wilde, quando
dizia: Dêem-me o supérfluo e eu dispenso o essencial.
O que você quer dizer com
o natural é
sobrenatural e vice-versa?
Cecim:
Eu não quero dizer nada e estou
dizendo isso. Foi mais ou menos o que disse um vez John Cage,
que fazia música de silêncio. Mas por que tu estás me perguntando
isso sobre o natural ser sobrenatural e o sobrenatural ser natural,
como se já não soubesses? É claro que as coisas são assim. A tua
pergunta me espanta.
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