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Zemaria Pinto


 

Retrato


Meu velho espelho noturno
meu companheiro de insônia
inda vês a mesma face
de outros tantos anos findos
nesta que te se apresenta
com as estrelas da manhã?

 

- Não mais há luz, posso ver
na noite que se derrama
dos girassóis de teus olhos
e a revolta cabeleira
ressonha revoluções
nos arredores da calva.

 

- No canto esquerdo da boca
uma rubra flor de herpes
afina inda mais teus lábios.
Dentes a menos, há muitos
em tua boca emoldurada
por essa pífia papada.

 

O silêncio da parede
reflete apenas a ausência
daquele que eu nunca fui.
Na madrugada vazia
ouço rasgar meu soluço
ressonando a solidão.


Em qual Cecília, meu rosto,
ficou meu espelho perdido?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Zemaria Pinto


 

Canção da moça da praça


leve feito uma asa-delta
a moça atravessa a praça
na tarde lavada em gris
a moça não anda, plana
vestida de azul-turquesa
nas asas dum bem-te-vi


(a chuva não molha a moça
que flutua sobre a praça
espargindo girassóis)


sons e cores arquitetam
um carnaval inquieto
ao tênue passar da moça


súbito, a escuridão
invade a praça de chumbo:
evola-se a moça em nuvens


(a moça deixa no ar
uma estranha melodia
de perfumados silêncios)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ingres, 1780-1867, La Grande Odalisque

Zemaria Pinto


 

Buritis silvestres


o meu primeiro poema
foi escrito sob a sombra
dos buritizais em flor


não tinha papel nem lápis
apenas as mãos nervosas
e a boca ressecada
buscando tuas mãos geladas
e teu hálito de rosas


as palmas alvoroçadas
acenando contra o vento
da tarde o vasto silêncio
teciam a cada assobio
a melopéia do tempo


no chão de areia gravado
meu poema era um navio
de amarras soltas no mundo
a procura da ventura
de navegar outros rios


caía uma chuva fina
de frágeis cristais de luz
e buritis amarelos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

 

Zemaria Pinto


 

As portas


talvez por influência do Borges à cabeceira,
pela 3a. vez sonhei que voava.
o curioso é que ao contrário das outras vezes
- quando atingi o orgasmo -
caí em um rio pantanoso
apedrejado por duas crianças
que não acreditaram em mim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Morte de César, detalhe

 

Zemaria Pinto


 

Totem


a língua percorre ávida
o rosto molhado
os olhos cerrados
a boca afogada
os seios em fogo sob a água


minhas pernas sustentando
tuas pernas bailarinas
metamorfose dos corpos
fundidos, totem armado
no quadrilátero âmbar


cantam crianças
pássaros cantam
fulgor na tarde avermelhada
asas-deltas ultraleves
e um blues
na sala solitária


a água no corpo
o corpo no corpo
bocas e pernas e mãos
teu gozo estremece
meu corpo
meu sêmen chove de mim


teu dorso incandescente
a parede fria
o grito sufocado
e a alegria
- ah, a alegria
  de fazer parte de ti!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Antigona,detail

 

Zemaria Pinto


 

Paixão


a nona sinfonia explode
tua lâmina me rompe o ventre
e faz jorrar o sangue da minha carne
plantando-me tua semente


a paixão violenta - o grito
a lágrima sufocada - ah, a alegria
língua que lambe o mundo


o beijo a dentada
contigo, eu pelo espaço:
Beethoven & boleros


sou uma égua de fogo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922), Belleza Pompeiana, detail

 

Zemaria Pinto


 

Poema de todas as ausências

from ginsberg/to dedé (ou vice-versa)


ar-condicionado
diamante risca o vinil,
um poema de ginsberg sobre poetas suicidados
não há torquato - pronome pessoal intransferível
não ana c. - pássaro de nuvens céu cinza
      copacabana:


lua sobre bourbon street - brilhando ouro cabelo
                       ferrão - esta noite
blues chorosos, canções, verão, mãe eu
                       concorrerei à presidência,
                       oh! darling


e o poeta enlouqueadormecido pela mescalina
                      apodrece diante do espelho
                      seu crânio calvo, seus lábios
                      chupadores de caralhos, sua
                      vida inútil de lavador de
                      pratos e analista de dados


da parede pendem poemas, pôsteres de
                     guevara e joplin, retratos
                     de carol e baudelaire,
                     além de um falso van gogh


na estante, entre miríades de sonhos e sons,
                     marcianos loucos materializam
                     suas fantasias de luzes
                     fosforescentes


mas nada disso me vale porra nenhuma
                            se você não está aqui!

 

 

 

 

 

 

20.10.2005