Renato Suttana
Estudos, Catálogos & Mãos
Prezado Soares:
Uma vez, durante uma
viagem de ônibus (não me lembro entre
qual e qual cidade, mas sei que foi num ônibus), um amigo - que
estudava a física, mas que tinha certo interesse por livros,
principalmente romances e poesias - me perguntou se eu conhecia a
prosa de Pedro Nava. Respondi-lhe que não a conhecia a fundo, mas
que tinha lido alguns trechos. Então ele me perguntou o que eu
achava dessa prosa, mesmo com a pouca experiência que tinha dela.
Como não me ocorresse nenhum adjetivo para qualificar a escrita
desse autor, e na tentativa de dar uma idéia do que eu pensava de
uma prosa que para mim me parecia consistente, fundada numa vivência
profunda do mundo e das coisas - principalmente, uma escrita calcada
na memória e na ancestralidade do ser e da palavra -, eu apenas lhe
disse que a achava "substanciosa". O amigo riu, julgando inusitada a
expressão, e redargüiu que o fazia pensar em qualquer coisa como uma
sopa, um caldo ou uma iguaria qualquer, rica em proteínas. Mas tinha
entendido o que eu quisera dizer e por isso acrescentou que também
achava a prosa de Nava bastante consistente, embora, de sua parte,
como eu mesmo, a conhecesse pouco e muito de ouvir falar.
Leio agora o seu
"Estudos & catálogos: mãos" e esse breve episódio da alguns anos
atrás me vem à memória. Como qualificar essa prosa que você me
envia, senão recorrendo àquele adjetivo, isto é, dizendo-a
"substanciosa" também - num sentido que implica agora não tanto o
que eu tinha visto em Nava, mas num sentido que implica certa
relação do espírito com a terra, com as coisas do chão e do mundo ao
redor, que você tão bem consegue evocar nesse prefácio que não só é
ele mesmo uma peça de grande interesse, mas que, ao apontar tão
delicadamente para a poesia do prefaciado, nos traz também um desejo
imenso de mergulhar nela, para descobrir mais tesouros, mais seiva,
e nutrir o espírito com a substância grossa da vida? Muitas coisas
me evocou esse prefácio: nordestes, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa
(no estilo entrecortado das frases e naquilo que João Cabral de Melo
Neto chamaria de palavra "colada à coisa", da qual extrai o seu ser
e a sua substância e com a qual você consegue lidar de maneira tão
própria e pessoal, apesar de tudo) - mas me evocou principalmente a
personalidade do Feitosa, a cada dia mais da terra, a cada dia mais
à espera de que o mundo se abra numa grande aparição reveladora.
Neste ponto, sou
obrigado a repetir a expressão do Mauro Mendes: "Cadê o livro? Cadê
o meu"? Assim, na expectativa de ler, além do belo prefácio, também
o livro do Virgílio Maia propriamente dito (para o qual, acredito, o
prefácio constitui um excelente chamariz), deixo aqui o meu elogio e
o meu pedido de que, quando possível, você nos dê a informação de
como consegui-lo (o livro), impresso ou em versão digital (na
eventualidade de que exista alguma), para que possamos conferir a
coisa e ver se o prefácio não ultrapassou o objeto a prefaciar, o
que estou certo - num bom sentido - não será o caso.
Para aproveitar esta
carta, gostaria ainda de lhe perguntar uma coisa. Conheci
recentemente, no Jornal de Poesia, alguns poemas de Affonso Manta,
que muito me agradaram. Leio, em seu "Estudos & catálogos", uma
notícia, fornecida por Maria da Conceição Paranhos, de que o poeta
faleceu recentemente, o que terá sido, com certeza, uma grande perda
para a poesia brasileira, conforme a própria Paranhos comentou.
Assim, minha pergunta é: que acesso podemos ter a outros poemas do
autor, para além do pequeno vislumbre que tivemos de sua obra no
Jornal de Poesia? Existem livros publicados dele e estão acessíveis
no mercado ou, como receio seja o caso, tudo não passará de raridade
- como, por exemplo, a poesia de Orides Fontela, que só podemos ler
por fragmentos na Internet e que está, esta última, a esperar por
uma boa edição completa de seus poemas, já que se trata de uma
presença tão nobre na poesia de língua portuguesa dos últimos anos?
Você teria alguma informação a me dar?
Bem, com os votos de
que outros prefácios, outros poemas, catálogos, estudos e mãos
venham por aí, num sempre crescente nível de qualidade, vai aqui o
meu abraço.
Renato Suttana
Nota do Editor:
Vejam como a coisa funciona em rede-web: Conceição Paranhos fala em
Affonso Manta, o que leva Sutanna a falar de Orides Fontella. O JP
promete uma bela página para Orides; e complementará, no possível, a
de Affonso Manta. Viva a Internet!
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