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Adrianne Fontoura


 

Sonho lúcido

 

 

Como a chuva que tomba desordenada
em gotas que bem seriam meu pranto
ou em prantos que não vistos são nada,
dias findam sem que se saiba como;
noites amanhecem e não sei sabe onde;
razões e amores docemente deformo
sem que descubra a verdade que se compreende
atrás dos olhos em que escorre o tempo.
Desenho secretamente o Destino que se vê em sonho
e sonho o desenho do compasso lento
que daqui me arranca para a vida que componho
enquanto os espinhos do coração sangram
a hora que tarda a ser meu momento;
e pranteio rosas que sonham
cada espanto de falso contentamento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Frederic Leighton (British, 1830-1896), Memories, detail

 

Adrianne Fontoura


 

Duelo
(em conjunto com Michelle)


Olho-me e duas sombras se afrontam
numa dança macabra e presente.
Há quem olhe e nada entenda;
há quem acerte sem nunca ter visto.
Vivencio o agora, o perdido e o irrevelado
que já se revela.
Estendida sobre a realidade perplexa,
por vezes tão ausente quanto um sol
que se omite em sua força vital
pois uma nuvem passa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

John Martin (British, 1789-1854), The Seventh Plague of Egypt

Adrianne Fontoura


 

Contemplas o mar...

 

 

Contemplas o mar, imóvel e extasiado
à minha procura porque não me enxergas.
A água que te banha os pensamentos
e te carrega a ânsia sem fim,
o vento que teus silêncios move do céu ao chão
e teu grito desprende dos lábios,
partes são de tudo o que sou e há em mim.
Não chores pela ausência dos meus dedos
e braços e rostos e risos e olhares.
Não chores porque tens a mim em tua memória,
muito mais doce, eterna e palpável.
Não chores porque hei de ser o que te acompanha
por toda vida, a cada onda, a cada sopro,
a todo instante sem que precise partir
- caso a morte me chame.
Deixo que assim partas e permito que me leves
nos teus olhos mareados que contemplam imanentes formas vivas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

Adrianne Fontoura


 

Essência

 

 

Não escrevo coisas lindas
pois minha alma é de aço,
amargo passo, armadura, duras penas
que me lançam ao chão; me desfaço
em raio que no céu amorfo se funde.
Escrevo o desamparo anti-musical,
atônito anti-movimento que confunde
o argumento lógico, racional.
Palavras vagas sobrevoam meus destroços, vivos restos,
fragmentados sentimentos.
Existência surreal de sonhos concretos
mesmo que distantes, irrealizados pensamentos.
Não sei se assombro, se morte, se vida,
fixa idéia, longínquo ponto que me norteia...
entre atos, fatos, a verdade desmedida:
essência que me permeia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

Adrianne Fontoura


 

Acalento

 

 

Vê, amor, que a escuridão do mundo é vento
e ouvirás minha voz, que te chama.
Ausenta-te em ti mesmo por um momento
e sentirás em ti o amor que de mim emana.
Fecha teus olhos e sonha com distantes Universos
e me saberás contigo; ainda que não me vejas
adormeço ao teu lado, escrevo-te versos,
secretos enigmas que te guiam, onde quer que estejas.
Ouço entre dois silêncios o teu pranto.
Alcanço-te e roubo-te a dor
e ouço teu riso, alegre espanto.
Percorre suavemente o piano e traz a cor
que envolve com sonhos meu pensamento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Bathsheba

Adrianne Fontoura


 

Nostalgia

 

 

Eu cortaria esta carne
se a mesma não ardesse tanto
ao menor contato da lâmina afiada.
Meu espírito preso entoa o triste canto
dos que almejam o retorno ao irrevelado nada,
grande mãe das origens universais
que vejo em sonho sem jamais toca-la,
posto que meus braços são deveras carnais.
Errante sigo entre brumas, mares e busco
a amada terra, pátria ancestral,
e vejo sem ver este lugar fusco
de cor indizível e queda abissal...
Atiro-me e livre contemplo os restos mortais
do que fora corpo vivo e limitada matéria.
Vem minha barca-guia aportar no cais
daquela que recorda-se da vida etérea.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

Adrianne Fontoura


 

Free Fallin'

 

 

Meu corpo
mede a altura do abismo,
queda livre;
peso imenso de toda humanidade.
Caio e cismo.
Visualizo outra verdade
ao erguer meus olhos
para o espaço percorrido
entre a terra e o céu.
A própria vida se mostra imensa
e tudo o que já foi pensado,
jaz morto, num papel.
Só esta dor que me consome é real.
Só este silêncio me importa agora.
Estou livre e sinto como louca
cada respiro do Universo.
Toda metáfora, frase, palavra é pouca;
o amor não cabe em prosa, grito ou verso.

 

 

 

 

 

 

10.11.2005