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Ana Guimarães


 

HOMENAGEM A PESSOA


Sem filosofia. É melhor viver
só com os sentidos
falar da natureza sem saber o que ela é
só por amá-la
ser um carro de boi e não um homem:
não ter esperanças, só rodas
nem rugas ou cabelo branco
para quando tirar a máscara
e se olhar no espelho
(que reflete certo porque não pensa)
não ter envelhecido

Uma vez Portugal foi só nevoeiro
tudo disperso, nada inteiro
mas, tendo sido todo e inteiro, pra que serviu?
qualquer mendigo invejo agora
só por não ser eu

Senta-te à porta de casa
para apreciar os campos
que, afinal, são mais verdes
para quem foi rejeitado
contenta-te com o espetáculo do mundo
só de sentir calor e frio e vento
já vale a pena ter nascido
mesmo não tendo sido amado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Plaza de toros

 

 

 

 

 

Ana Guimarães


 

ESTÁTUA


Eu me contento em olhar
o seu olhar
escutar
a sua música
sem vida própria
cascalho batido pelo mar
banco de calçada em manhã de sol
de quase primavera

Contento-me em ser
dado de jogo pra lá e pra cá
ao acaso
rodopiando na mesa
enquanto você
cheiro de café invadindo minh’alma,
me acalma
copo de luar que embriaga
perfuma a noite
e a dor de ser anestesia

Deixo-me passar
areia entre seus dedos, contente
o tudo e o nada do momento
pipoca no cinema
incapaz
de um gesto a mais
que perturbe esse instante
brincando de estátua na vida

 

 

 

Da Vinci, Homem vitruviano

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Marco Lucchesi

 

 

 

 

 

 

 

 

Entardecer, foto de Marcus Prado

 

 

 

 

 

Ana Guimarães


 

O BÊ-Á-BÁ DE JOYCE


Todos os idiomas da dúvida são meus
mesmo com tradução
mistério e enigma fazem parte
do meu dicionário

O verbo oceânico persigo
conjugar o inefável, o intangível,
o paradoxal: não elidir os contrários

Se minha dicção é múltipla
almejo uma sintaxe própria
enquanto isso, soletro a ponte
entre o efêmero e o estável

Coar a nata do sentido para seu deleite
o poema – o leite no copo –
esperando pela interpretação

Os buracos no texto, como borra de café,
o seu deciframento

A arquitetura da ficção,
sua desconstrução

Antes que se queixe ou interrogue, explico
não é a forma nem o conteúdo do que lemos
o que está aqui em cogitação
é só a coisa em si, nada mais, nada menos

 

 

 

Valdir Rocha, Fui eu

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Majela Colares

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904), Consummatum est Jerusalem

 

 

 

 

 

Ana Guimarães


 

VERTIGENS


Ontem, puxaram-me o tapete
– ainda que mágico, voador –
e o chão me faltou:
vertigens
Corri para um piso/pouso seguro
a poesia,
meu inutensílio favorito
depois da psicanálise
Só elas me aprumam
me rumam
me fumam
até que só fique a guimba,
o bagaço
até que só reste um traço
como na tela, o eletro de um morto
um porto,
onde a alma ancora
e o corpo é que vai embora

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Braulio Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Ana Guimarães


 

VIAJOR DE CERTA VEREDA


Rasgar essa roupa já em trapos, farrapos
outra qualquer, na pele, costurar
não se é doido de viver
sem fantasia. Vagar canoas rio acima
o mau tempo nos surpreendendo
e supervenientes enchentes, por fim arrefecidas

Seguir vozes clamando no deserto, espírito
aberto. Olhos fechados, sem desconfiança alguma
esquecendo os (outrora) cerrados punhos
Orientar-se – nua de saberes – pela lua
tresdobrar atenções, intentando captar
engenhoso e sutil argumento, em forma de lamento

 

 

 

Sophie Anderson, Portrait Of Young Girl

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Abílio Terra Junior

 

 

 

 

 

 

 

 

Rubens, Julgamento de Paris

 

 

 

 

 

Ana Guimarães


 

INSÓLITO XADREZ


Às ordens de déspota rainha
começara pelo fim, abatendo os reis
que lhe eram só estorvo.
Torres derrubadas
bispos, e suas missas proibidas
cavalos alados.
Por último, os peões:
se ainda fossem peinhos...
Restaram os diminutivos de ra no tabuleiro,
face a face

 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

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Natalício Barroso

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

Ana Guimarães


 

PATCHWORK


Um passo pra frente, dois passos pra trás
assim me (des)construo
tecendo e destecendo a trama de minha vida
atribuindo-lhe novos significados, matizes, texturas
Penélope de mim mesma

Sigo veredas que não levam a lugar algum
utilizo métodos que já se mostraram improdutivos
aro terras inférteis
rego sementes que não germinam
Ouço profecias – utopias – de oráculos cegos
acredito no canto das sereias

Nada em vão, no entanto: como Sócrates,
aprendendo uma ária com flauta
enquanto se lhe preparavam a cicuta
Pra que? Pra aprendê-la antes de morrer,
só isso

Estendo a mão para um vilão
dou (mais) uma chance ao traidor amigo
Como uma criança
que de nada desconfia
me dôo para amores que não se concretizam

Explodo em lágrimas após cada – previsível – perda
quando não, resignada, sorrio
Mas jamais me esqueço de retornar ao caminho
porque a verdadeira viagem nunca é de ida
e sim de volta, como a de Ulisses


 

 

 

Um cronômetro para piscinas

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José Inácio Vieira de Melo

 

 

 

11/11/2005