Anderson de Araújo Horta
Sonho
Há muito tempo que eu venho
tentando forçar o sonho.
Como carne, bebo vinho,
mas apenas sinto sono.
Hoje, entretanto, acordado,
lembrei-me dos tempos idos.
Pus a preguiça de lado
e sentei de qualquer modo.
Desde então pude notar
que tudo é fácil fazer.
Basta só querer mentir
um pouquinho, por favor.
De modo que vou contar
esse sonho de mentira.
Fico no mesmo lugar
e nem preciso de lira.
Era uma vez um poeta
— menestrel da idade média.
Tanto cantava na rua,
como na feira ou na mata.
Eu era moço, era velho,
segundo o tempo corresse.
Minha vida era um baralho,
conforme a cigana disse.
Só uma coisa podia
me curar — ela dizia:
Vestir ao menos um dia
as vestes da poesia.
Vesti, então, a roupagem
que o tal poeta me deu.
E logo a formosa imagem
de uma deusa apareceu.
Então parece que Píndaro
falou pela minha voz.
(Embora morresse Píndaro
há dois mil anos, talvez.)
— Escuta, formosa imagem
(não sei se deusa ou mulher,
pois sendo assim como és
qualquer mulher será deusa):
Eu quero que tu me ensines
o segredo da composição.
— Não há segredo nenhum
para quem sabe sonhar.
Mas até no sonho existem
os motivos de escolher.
E detrás de qualquer sonho
tem imagem de mulher.
— Não me avexo em confessar,
não me fiz compreender.
O que é que você prefere:
métrica tradicional
ou o tal ritmo livre?
Assonância, verso branco
ou rima parnasiana?
— Eu não prefiro nem nada.
Pois quem prefere é você.
Entretanto, meu poeta,
uma coisa eu vou dizer:
Você pode cozinhar
consoantes com vogais.
Pode até nasalizar
muito pouco ou muito mais.
Porque isso, naturalmente,
é lá com o seu paladar.
Na boa composição
do soneto ou redondilha,
seja uma simples canção
ou seja coisa que o valha,
seja fresco como o linho
ou quente como fornalha,
eu lhe digo: — Não faz mal.
Precisa muito cuidado
é com a música verbal.
— Só com a música verbal?
— Qual o quê, senhor Mistral!
A coisa está no talento.
Porque se não há talento...
também música não há!...
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