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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Abandonada

Ao meu irmão Odilon dos Anjos

Bem depressa sumiu-se a vaporosa
Nuvem de amores, de ilusões tão bela;
O brilho se apagou daquela estrela
Que a vida lhe tornava venturosa!

Sombras que passam, sombras cor-de-rosa
- Todas se foram num festivo bando,
Fugazes sonhos, gárrulos voando
- Resta somente um’alma tristurosa!

Coitada! o gozo lhe fugiu correndo,
Hoje ela habita a erma soledade,
Em que vive e em que aos poucos vai morrendo!

Seu rosto triste, seu olhar magoado,
Fazem lembrar em noute de saudade
A luz mortiça d’um olhar nublado.



 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Aberração

Na velhice automática e na infância,
(Hoje, ontem, amanhã e em qualquer era)
Minha hibridez é a súmula sincera
Das defectividades da Substância.

 

Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia,
Como Belerofonte com a Quimera
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!


Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto
De anomalias lúgubres. Existo
Como o cancro, a exigir que os sãos enfermem...


Teço a infâmia; urdo o crime; engendro o iodo
E nas mudanças do Universo todo
Deixo inscrita a memória do meu gérmen!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Soneto

Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No badalar monótono dos sinos.
Hermeto Lima

 

Adeus, adeus, adeus! E, suspirando,
Saí deixando morta a minha amada,
Vinha o luar iluminando a estrada
E eu vinha pela estrada soluçando.

Perto, um ribeiro claro murmurando
Muito baixinho como quem chorava,
Parecia o ribeiro estar chorando
As lágrimas que eu triste gotejava.

Súbito ecoou do sino o som profundo!
Adeus! - eu disse. Para mim no mundo
Tudo acabou-se, apenas restam mágoas.

Mas no mistério astral da noute bela
Pareceu-me inda ouvir o nome dela
No marulhar monótono das águas!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

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Soneto

A praça estava cheia. O condenado
Transpunha nobremente o cadafalso,
Puro de crime, isento de pecado,
Vítima augusta de indelével falso.
 

E na atitude do Crucificado,
O olhar azul pregado n’amplidão,
Pude rever naquele desgraçado
O drama lutuoso da Paixão.

Quando do algoz cruento o braço alçado
Se dispunha a vibrar sem compaixão
O golpe na cabeça do culpado

Ele, o algoz - o criminoso - então,
Caiu na praça como fulminado
A soluçar: perdão, perdão, perdão!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Soneto

Aurora morta, foge! Eu busco a virgem loura
Que fugiu-me do peito ao teu clarão de morte
E Ela era a minha estrela, o meu único Norte,
O grande Sol de afeto - o Sol que as almas doura!
 

Fugiu... e em si a Luz consoladora
Do amor - esse clarão eterno d’alma forte -
Astro da minha Paz, Sírius da minha Sorte
E da Noute da vida a Vênus Redentora.

Agora, oh! Minha Mágoa, agita as tuas asas,
Vem! Rasga deste peito as nebulosas gazas
E, num Pálio auroral de Luz deslumbradora,

Ascende à Claridade. Adeus oh! Dia escuro,
Dia do meu Passado! Irrompe, meu Futuro;
Aurora morta, foge - eu busco a virgem loura!

Pau d’Arco - 1902

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

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Agonia de um filósofo

Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nêle tolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!


No hierático areopago heterogêneo
Das idéas, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...


Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

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Soneto
 

 

Ao meu primeiro filho nascido
morto com 7 meses incompletos
2 fevereiro 1911.

 


Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto lubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronia
 


Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinérgia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!


Porção de minha plásmica substância,
Em que logar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!...


Ah! Possas tu dormir feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

Augusto dos Anjos

Alucinação à beira-mar


Um medo de morrer meus pés esfriava.
Noite alta. Ante o telúrico recorte,
Na diuturna discórdia, a equórea coorte
Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros me assombrava!


Mas a alga usufructuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
Que um castigo de espécie emudeceu,


No eterno horror das convulsões marítimas
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!



 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Amor e crença

E sê bendita!
H. Sienkiewicz

 

Sabes que é Deus?! Esse infinito e santo
Ser que preside e rege os outros seres,
Que os encantos e a força dos poderes
Reúne tudo em si, num só encanto?

Esse mistério eterno e sacrossanto,
Essa sublime adoração do crente,
Esse manto de amor doce e clemente
Que lava as dores e que enxuga o pranto?!

Ah! Se queres saber a sua grandeza,
Estende o teu olhar à Natureza,
Fita a cúp’la do Céu santa e infinita!

Deus é o templo do Bem. Na altura Imensa,
O amor é a hóstia que bendiz a Crença,
ama, pois, crê em Deus, e... sê bendita!


 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Augusto dos Anjos

 

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Amor e religião

Conheci-o: era um padre, um desses santos
Sacerdotes da Fé de crença pura,
Da sua fala na eternal doçura
Falava o coração. Quantos, oh! Quantos
 

Ouviram dele frases de candura
Que d’infelizes enxugavam prantos!
E como alegres não ficaram tantos
Corações sem prazer e sem ventura!

No entanto dizem que este padre amara.
Morrera um dia desvairado, estulto,
Su’alma livre para o Céu se alara.

E Deus lhe disse: "És duas vezes santo,
Pois se da Religião fizeste culto,
Foste do amor o mártir sacrossanto."